Grupo de professores considera ECA ‘excessivamente liberal’

Antigamente, as mães eram tão severas que, quando chamadas na escola para resolver um problema de má conduta do filho, começavam a bater neles, e os professores precisavam contê-las. Hoje, elas começam a bater no professor. Essa é a “brincadeira” que muitos educadores descrevem para exemplificar as situações de indisciplina que enfrentam no ambiente escolar. […]

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Antigamente, as mães eram tão severas que, quando chamadas na escola para resolver um problema de má conduta do filho, começavam a bater neles, e os professores precisavam contê-las. Hoje, elas começam a bater no professor.

Essa é a “brincadeira” que muitos educadores descrevem para exemplificar as situações de indisciplina que enfrentam no ambiente escolar. E foi com esse argumento que, ao participar de uma pesquisa desenvolvida pelo Observatório de Violência e Práticas Exemplares da Universidade de São Paulo (USP), muitos disseram considerar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) “excessivamente liberal”. “Os professores se viram despossuídos dos organizadores pedagógicos. Dizem que, antes, podiam advertir, reprovar, e que essa autoridade foi acabando de tal forma que se viram impotentes. E um dos primeiros bodes expiatórios encontrados foi o ECA”, avalia Sergio Kodato, professor de psicologia social da USP, coordenador do Observatório e orientador de Daniel Massayuk, líder do estudo.

Os resultados da pesquisa ainda são preliminares, mas Kodato afirma que, durante as entrevistas, já foi possível perceber dois segmentos entre os educadores. O primeiro deles, que ficaria entre 60% e 65%, diz acreditar que o estatuto é muito liberal e dá mais direitos do que deveres aos alunos. “Estes geralmente têm uma visão estigmatizada do adolescente rebelde, entendem que esse comportamento é decorrente da falta de educação em casa, defendem a redução da maioridade penal e se eximem de exercer a ação educativa na escola”rdquo; aponta. Com isso, haveria uma criminalização dos episódios de indisciplina, que antes eram resolvidos dentro dos limites pedagógicos e agora ganhariam forma de delito, virando caso de polícia ou de Ronda Escolar. Para o docente, um dos motivos para a visão estereotipada do ECA pode ser explicado pelo desconhecimento do estatuto – em vez de usá-lo como respaldo e modelo de Justiça, que delimita conflitos.

Já o outro segmento de docentes, que ficaria em aproximadamente 35% dos entrevistados, diz acreditar que o ECA é avançado e essencial para garantir direitos à população jovem, mas que, na prática, não funciona tão bem. Para Kodato, uma das grandes diferenças nas visões dos docentes tem origem na própria formação. Professores e gestores com formação mais conservadora, com base no autoritarismo, tendem a culpar o ECA por “passar a mão na cabeça de infratores”, diferentemente daqueles que tiveram uma educação mais liberal. “O controle na escola não deve ser pelo autoritarismo, mas envolvendo o aluno com atividades desafiadoras, estimulantes. Escola é lugar de conflito, os jovens estão em idade de conflito, então o conflito é inevitável, e temos que entender isso”, opina o pesquisador. Ele ressalta, ainda, que ver o ensino com perspectiva punitiva cria um clima de hostilidade entre pais, alunos e escola.

Até o momento, foram entrevistados 20 educadores – professores, coordenadores, gestores, auxiliares de ensino, entre outros – de 10 instituições do ensino fundamental e médio das regiões de Barretos e Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. As entrevistas serão ampliadas, usando o critério de saturação de dados (quando as informações começam a se repetir) com o objetivo de entender como se construiu essa percepção do ECA e que consequências isso tem no cotidiano escolar.

ECA como aliado em sala de aula

Um dos caminhos para reverter essa percepção limitada do estatuto pode ser trazê-lo para dentro do âmbito escolar e trabalhá-lo com os próprios alunos – que, na maior parte dos casos, também desconhecem seus direitos e deveres. Foi pensando nisso que a pedagoga Patrícia Saboya, então senadora pelo Estado do Ceará, elaborou a lei federal 11.525, sancionada em 2007, tornando obrigatório o ensino do ECA no ensino fundamental.

Para ela, a percepção de que o estatuto é “liberal” não está restrita aos professores, mas encontra respaldo em diversos setores da sociedade, que têm dificuldade em compreender que o estatuto estabelece direitos, mas também obrigações, e que nele constam, inclusive, as penalidades que cabem ao adolescente que comete delito. “No momento que se tem o conhecimento da lei, e o professor tem o discernimento do que ocorre em sala de aula, isso é introjetado. É mais fácil conviver com tranquilidade quando todos sabem seus direitos e deveres”, afirma.

Professora na Escola Estadual Onório Guimarães, em Uberlândia (MG), Aline Cantalogo trabalha o estatuto há cinco anos com alunos de 1º a 3º ano do ensino fundamental, e assegura que o conhecimento é útil não apenas para resolver conflitos no âmbito escolar. Segundo a docente, é visível que, ao conhecerem seus direitos, muitos estudantes percebem que eles nem sequer são cumpridos nas próprias famílias – esse, inclusive, foi um dos motivos que a levaram a incluir o estatuto nas aulas, quando uma estudante contou que vivenciava situações de violência em casa.

A estratégia da professora foi incluir o ECA como um conteúdo comum, atrelado a outros assuntos nas disciplinas de história e geografia. “Ele entra com um aspecto mais histórico, o que não gera conflito com as famílias, muitas vezes em situação de risco, que não se adequam muito à legislação”, explica.

Para ela, um dos focos do aprendizado é mostrar que o ECA contempla direitos e deveres e não está contra as famílias nem contra os professores. Certa vez, uma mãe foi procurá-la, dizendo que o estatuto “era a pior coisa que já haviam inventado”. O filho mais novo precisava ir à escola, e já não havia vagas. Por isso, ela tinha medo que o Conselho Tutelar tomasse a criança dela por estar descumprindo o estatuto no que diz respeito à permanência na escola. Aline mostrou à mulher que, pelo contrário, graças ao ECA ela garantiria a vaga a seu filho: acionaram o Conselho Tutelar para fazer valer o direito “de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, e a criança foi matriculada.

Na Escola Municipal Inspetora France Abadia Machado Santana, também em Uberlândia, Tânia Spironello usa o ECA desde os primeiros dias de aula ao montar as regras da sala com os alunos do 2º ano do ensino fundamental. “A convivência melhora muito. Eles aprendem a se respeitar, a respeitar o próximo e também que temos deveres a cumprir, não só direitos”, afirma, ressaltando que há diversas possibilidades para abordar o tema e que ele deve estar presente todos os dias.

Em 2013, as discussões sobre o ECA na turma foram embasadas por depoimentos de avós dos alunos, que relataram as punições usadas quando eram crianças, como apanhar com a palmatória na escola ou ajoelhar no milho. “Os alunos estavam muito bem informados, todos alegaram que, naquela época, ainda não haviam leis que protegiam as crianças e os adolescentes”, conta a professora.

Uberlândia tem ainda outro exemplo de uso do estatuto em sala de aula. Delize Aparecida Campos Oliveira, pedagoga na Escola Municipal Amanda Carneiro Teixeira, também elaborou uma proposta para incluir o ECA no aprendizado das crianças de 1º a 3º ano. “A ideia é trabalhar a cidadania e a capacidade crítica da criança, ver as coisas pela questão dos direitos e dos deveres. Temos várias situações de falta de limites na escola, e quando se fala em um direito, automaticamente estamos falando em um dever”, explica.

Há quatro anos, Delize criou uma situação fictícia de adoção na escola. Desde então, anualmente, ela passa nas turmas fantasiada e se apresenta como coordenadora de um orfanato, propondo que um bebê – no caso, um boneco – seja adotado. A partir daí, delibera com a turma sobre como passarão a cuidar do novo “filho”. Quando o bebê chega, há uma discussão para saber quais os direitos daquela criança, como ela deve ser tratada e quais cuidados são necessários – aí, então, é apresentado o estatuto.

Cada criança leva o boneco para casa e cuida dele por alguns dias, para depois fazer um relatório. Caso haja alguma situação negativa – o que, segundo a professora, é bastante raro -, como o “bebê” ficar sem roupas ou se a criança esquece o boneco em casa, abre-se um espaço para se discutir por que isso é errado e como seria o correto. Segundo a professora, durante o ano, o ECA é utilizado ainda para embasar diversos conteúdos, como a alfabetização, a partir do trabalho com seus artigos.

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