Família dá volta ao mundo em dez meses para aprender mais sobre ele

“É muito mais interessante aprender sobre o Khmer Vermelho no Camboja do que na sala de aula”, afirma Miles Maurer que, aos quinze anos, em vez de cursar o primeiro ano do ensino médio em Flagstaff, no Arizona, esse ano vai viajar ao redor do mundo. Difícil discordar. No país vizinho, a Tailândia, sua irmã, […]

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“É muito mais interessante aprender sobre o Khmer Vermelho no Camboja do que na sala de aula”, afirma Miles Maurer que, aos quinze anos, em vez de cursar o primeiro ano do ensino médio em Flagstaff, no Arizona, esse ano vai viajar ao redor do mundo. Difícil discordar.

No país vizinho, a Tailândia, sua irmã, Lily, de doze anos, teve uma lição muito mais pessoal: descobriu que não podia ser vista a sós com o pai. “Porque eu fui adotada da Coreia do Sul, não podia passear sozinha com o meu pai. É por causa da história dos caras mais velhos com mulheres novinhas. Todo mundo ficava olhando para a gente com cara feia.”

De todas as criaturas com que me deparei nos três dias que passei no Parque Nacional Kruger, na África do Sul, em fevereiro – chacais, javalis, babuínos, civetas, cobras, aranhas – as mais esquisitas eram os Maurer, na barraca ao lado da minha no acampamento de Lower Sabie Rest. A família estava há dez meses explorando o mundo – e, acredite se quiser, não tinha nenhuma equipe de reality show atrás dela, nenhum site arrecadando fundos e nenhuma aspiração à fama viral. Eles estavam apenas viajando a US$150/dia, orçamento que, para quatro pessoas, sem dúvida poderia ser considerado frugal.

Seu itinerário os levou do Sudeste Asiático ao Nepal, depois à Europa e, agora, no último trecho de quatro meses, ao sul da África em uma 4×4 alugada, com uma barraca no teto, contando com sugestões e conselhos do pessoal local e outros viajantes para traçar seu itinerário.

“O mundo está mudando”, disse o pai, Jeff Maurer, quando entrevistei o quarteto, na semana passada, via Skype (por um breve período eles tiveram acesso a internet estável em um hotel de Swakopmund, na Namíbia). “Praticamente já foi todo descoberto. Achamos que a coisa está ficando homogênea demais e, por isso, decidimos vê-lo enquanto ainda há tradições que provavelmente daqui a cinco anos já terão desaparecido.”

E acrescentou: “Muita gente disse que seria impossível tirá-los um ano inteiro da escola, que era muita irresponsabilidade nossa” (outro casal, Charlotte e Eric Kaufman, está sendo muito mais achincalhado por ter levado consigo os filhos, bem mais novos, em uma viagem por mar que durou um mês e terminou com um resgate complicado). Miles deixou para trás o início do ensino médio e a primeira temporada de hóquei; Lily, a sétima série, a equipe de ginástica e o acesso contínuo ao Snapchat. Na verdade, eles não perderam o ano letivo – afinal sua mãe, Kari Tuomisto Maurer, ex-professora, está ministrando aulas em casa, mesmo que o termo “em casa” seja estranhíssimo ao se referir às casas de chá (pousadas) do Circuito de Annapurna, no Nepal, um apartamento alugado em Lisboa ou um acampamento improvisado no pátio de uma escola no Zimbábue.

Jeff e Kari deixaram a pequena empresa nas mãos de gente de confiança e alugaram a casa para cobrir as despesas da hipoteca (para as passagens, que saíram por um valor considerável – cerca de US$20 mil para a família toda – eles usaram o dinheiro ganho com o aluguel de parte da casa ao longo dos anos através do Airbnb.com. Os pacotes de volta ao mundo sairiam mais baratos, mas oferecem mais limitações).

E garantem que, em termos de despesas diárias, estão gastando menos do que se estivessem em casa. “Gastamos menos com comida, combustível, despesas com o carro. Cancelamos o seguro, suspendemos as atividades extracurriculares das crianças”. Tem também a economia com o plano de saúde, pois o seguro de viagem é bem mais em conta e inclui a volta para casa em caso de emergência. E os presentes de Natal? Cada membro da família tinha exatamente um euro para gastar com cada presente. Haja contenção!

Um orçamento diário implica em um mínimo de flexibilidade. Na Ásia, por exemplo, o valor era suficiente para os hotéis e muito mais, já que a diária das chamadas “casas de chá” saem por apenas alguns dólares. Em Portugal a história foi bem diferente: só o aluguel dos apartamentos saiu por US$150. “Todo dia de manhã a gente lembrava que tinha 40 euros, o que dá uns US$55, para gastar, e pronto”, conta Kari. Ou seja: nada de restaurantes e só uma única atração paga por dia.

Os garotos estão tirando as restrições de letra – ou pelo menos encarando a economia como se fosse um jogo. Lily lamenta só não poder comprar mais souvenires e diz que a economia já afeta o seu guarda-roupa. “É meio estranho usar a mesma roupa durante uma semana inteira, mas não há muito espaço no carro e não temos muita grana, então melhor deixar as roupas boas em casa mesmo.”

Miles se interessa por esportes radicais, mas também se mostra compreensivo. “Prefiro ver mais coisas a pagar US$100 por um salto de bungee jump”, resume.

Os quatro estão passando muito tempo juntos, mas isso não parece ser problema. “As discussões são bem raras”, me garantiu Jeff, embora a informação não possa ter sido verificada de forma independente. O que eu vi foi muita cantoria e dança, hábito que presenciei apesar da imagem ruim da conexão Skype: Lily cantou uma canção nepalesa que ouviram o tempo todo que estiveram no país enquanto Miles a acompanhava com uma dança que aprendeu com um carregador adolescente com quem fez amizade durante uma caminhada no Himalaia. E esse não foi o único “legado” da temporada passada no Nepal: ficou também o apelido dado à menina, Lollie, já que ninguém conseguia pronunciar seu nome.

Os pais também parecem lidar com a situação de uma forma admirável, pelo menos a maior parte do tempo. Jeff confessa que sente falta de comida mexicana; Kari diz que gostaria de ter um tempinho para si (“Um copo de vinho à noite faz milagres”, brinca ela).

Ao longo do caminho, várias lições. Miles, por exemplo, notou que muita gente na África parece ter o cifrão nos olhos ao se deparar com a família de brancos. “Eles nos encaram como dinheiro fácil. Devem achar que todos os EUA são como os reality shows e Hollywood”.

Por outro lado, Lily teve que aguentar os africanos querendo mexer em seu cabelo o tempo todo. E os mesmo problemas que teve na Tailândia continuaram no continente, embora com outra conotação. “Davam bronca nos meus pais toda hora, dizendo que tinham me roubado. Queriam me levar para a casa deles porque achavam que eu não pertencia à minha família”.

Kari confirmou que a viagem estava sendo mais difícil para a menina, explicando que as barreiras do idioma geralmente os impediam de explicar o processo de adoção. “Quando temos guias, já explicamos a situação logo de cara e deixamos que eles expliquem aos nativos”.

No entanto, ela não é a única a ser tratada de forma diferente; enquanto Jeff pode fazer uma lista das pessoas geniais que conheceu – como o chefe da segurança da escola em que acamparam no Zimbábue, por exemplo, com quem ficou conversando sobre a educação dos filhos – Kari descobriu ter mais dificuldade em interagir com as pessoas. “Talvez por causa da cultura, acho mais complicado conhecer gente”. E uma solução que encontrou, pelo menos parcial, foi levar de carro as moças que estavam viajando de carona na África, permitindo assim que conhecesse muitas professoras e mulheres das tribos regionais.

No todo, garantem terem sido muito bem recebidos. “Estivemos em partes do mundo onde o passado dos EUA é, no mínimo, duvidoso e, no entanto, fomos muito bem acolhidos, no Laos, Camboja, África. Sinceramente? Acho que tem muito a ver com o fato de estarmos viajando em família. É um fator humanizador”.

Perguntei a Lily, que escreveu um artigo para o jornal de seu bairro e mantém um blog chamado Don’t Use My Toothbrush, se tinha um conselho para o pessoal da sua idade que estivesse prestes a sair no mesmo tipo de aventura.

“Você nunca sabe se terá outra chance de fazer algo semelhante. Foi o que me disseram também, mas agora que voltei é que entendo. Não é preciso se preocupar em sair de casa porque quando voltar, tudo vai estar exatamente no mesmo lugar”.

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