RS: tratar intoxicação por cianeto foi desafio, diz chefe de UTI

Passadas quase duas semanas do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), que deixou mais de 230 mortos e centenas de feridos, os hospitais que receberam os sobreviventes continuam com os tratamentos e avaliam a evolução dos pacientes. Na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, onde estão internados […]

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Passadas quase duas semanas do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria (RS), que deixou mais de 230 mortos e centenas de feridos, os hospitais que receberam os sobreviventes continuam com os tratamentos e avaliam a evolução dos pacientes. Na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, onde estão internados sete feridos, a maior preocupação foi a intoxicação por cianeto, liberado após a queima da espuma que revestia o teto da boate.

Referência no atendimento a queimados, o Cristo Redentor nunca havia recebido vítimas da inalação do gás tóxico. “O que foi novidade no caso de Santa Maria para nós foi a questão da intoxicação por cianeto, que realmente não estávamos habituados a lidar. Procurou-se medicação, mas não existia no Brasil (a hidroxicobalamina). O Ministério da Saúde foi atrás, conseguiu, buscou e nos trouxe esse medicamento (vindo dos Estados Unidos)”, conta a chefe da UTI do hospital, a médica Deisi Fonseca.

Segundo ela, todos os pacientes internados na instituição receberam a medicação. “A indicação seria usar em quem tivesse sintomas neurológicos ou algum outro sintoma mais clássico, mas como todos os nossos pacientes estavam sedados e em ventilação mecânica, optamos por usar em todos. É uma droga que não tem paraefeitos graves, então achamos que valia a pena. Das dosagens feitas aqui, três pacientes ainda tinham níveis elevados no dia que receberam a hidroxicobalamina”, explica.

Dos sete pacientes do Cristo Redentor, um já recebeu alta da UTI, dois estão em ventilação espontânea e quatro respiram por aparelhos – sendo que dois, os casos mais graves, passam por hemodiálise. Todos eles têm queimaduras de até 2º grau. De acordo com Deisi, a maior parte das lesões se concentra na parte superior do corpo. “A maioria é na face, no pescoço, região cervical – anterior e posterior -, no dorso, nas costas e nos braços e antebraços. Alguns têm lesões nas pernas, alguns têm nas mãos. Temos pacientes que ajudaram a socorrer outras vítimas, então estão muito machucados, porque saíram e voltaram para socorrer outras pessoas. Estes são os nossos pacientes mais graves. São rapazes, fortes. No início (do incêndio), ainda não tinha atendimento, não tinha equipes de bombeiros, de socorro, então uns ajudaram os outros e provavelmente nessa situação se queimaram.”

Tratamento

Além da aplicação do antídoto contra a fumaça tóxica, os pacientes do Cristo Redentor também passam pelo tratamento típico de queimados. “O resto do tratamento do grande queimado é hidratação. Por evaporação, eles perdem muito líquido, umidade, calor e água. Usamos mantas de aquecimento porque são pacientes que ficam muito resfriados. A pele é um protetor de calor e umidade, então eles perdem calor, ficam hipotérmicos. Colocamos uma manta que não toque no paciente, porque eles têm dor, até com o lençol. Então a gente tem um material especial para que não encoste, o paciente fica como se fosse numa gaiola e, ali embaixo, ele fica aquecido”, explica Deisi.

A médica conta que a sedação dos feridos, nestes casos, é essencial. “É uma situação muito dolorosa, a pele dói muito. Queimaduras de 2º grau são muito dolorosas, e esses pacientes foram queimados em áreas que doem muito fácil: pescoço, regiões que a mobilização dói muito.”

Alguns feridos também têm passado por enxertos de pele, para ajudar na evolução da cicatrização das queimaduras. Este tipo de tratamento é feito após um tempo de internação. “A enxertia não é feita na primeira hora. Precisamos esperar aquela pele que está sendo tratada com curativos, com antibiótico, ser debridada (remover o tecido desvitalizado), raspada, e, no momento que vemos que não há infecção, resíduos de pele necrosada, colocamos ali uma camada de enxerto. Alguns dos pacientes já estão enxertando, uns enxertaram ontem, outros amanhã. É um processo demorado. Muitas vezes precisa repetir várias vezes na mesma área o enxerto. Eventualmente não pega, eventualmente pega em uma área e em outra não”, explica a médica.

De acordo com a chefe da UTI do Cristo Redentor, o tratamento para os pacientes chamados de “grandes queimados” é longo. “É de muitos anos, cinco anos, dez, 20 anos, ou mais, dependendo do grau de sequela”, afirma.

Algumas vítimas de queimaduras também podem correr o risco de ter membros removidos em função da trombose. Segundo Deisi, nenhum dos internados no hospital sofreu amputação até agora. “Há o que chamamos de queimadura circunferencial. Por exemplo, um braço todo queimado, a pele aperta, ela fica como se fosse uma carapaça, fica dura, como se fosse um plástico. Quando queimamos um plástico, ele encolhe; acontece o mesmo com a pele: ela impede o fluxo sanguíneo também. Como se trata isso? Assim que os pacientes chegam, são feitos cortes longitudinais, contrários a esse garroteamento. Alguns dos nossos pacientes aqui têm esses cortes em braços, antebraços e pernas, para o sangue continuar passando. Sangra, é uma coisa feia de ver, doeria – se o paciente estivesse acordado -, mas o sangue volta a passar”, explica.

Pacientes jovens

De acordo com Deisi, o quadro dos queimados costuma se agravar com a inalação de gases tóxicos provocados por incêndios, dificultando o tratamento dos pacientes. No entanto, o fato de a maioria das vítimas da Boate Kiss ser jovem, faz com que aumentem as chances de recuperação.

“Essa lesão de via aérea é realmente um problema grave, agrava muito o quadro do queimado, aumenta o risco de mortalidade destes pacientes. Mas existem coisas a se fazer, tem como tratar. E o que tem de fundamental nesta turma de pacientes de Santa Maria é que eles são muito jovens. E isso ajuda, a cicatrização é melhor, a maioria não era fumante, tinha boa função pulmonar. Então eles respondem bem e rapidamente ao tratamento e não têm doenças de bases, aquelas que poderiam complicar a evolução”, afirma.

Nenhuma das vítimas internadas no Cristo Redentor precisou passar pela ventilação extracorpórea, técnica aplicada pelo médico chefe da equipe da Universidade de Toronto, no Canadá, Marcelo Cypel, que veio ao Rio Grande do Sul para ajudar no tratamento dos feridos. “O doutor Marcelo esteve aqui, nos deu uma aula, viu nossos pacientes e, dentro dos critérios de indicação, nenhum deles estava tão grave a ponto de precisar. Para queimados com superfície de pele, que tem debridamento, enxertia, os critérios são ainda mais rígidos. Nenhum dos nossos pacientes se enquadrou, em um primeiro momento”, conta Deisi.

Segundo a médica, alguns pacientes podem ficar com sequelas em função do tempo na ventilação mecânica e da inalação da fumaça. “Esse tipo de vítima pode ficar com sequelas pulmonares, ter alterações na função pulmonar, eventualmente ter alguma dificuldade respiratória. Estamos fazendo o acompanhamento pulmonar para termos a ideia de quantos vão ficar com sequelas e o que a gente pode fazer pra ajudar esses pacientes. Eles estão recebendo fisioterapia desde o dia que chegaram aqui. Os três que foram extubados já foram avaliados por fonoaudiólogos e estão bem, já estão comendo – o tempo de entubação também altera a deglutição”, explica.

Equipe abalada

A chefe da UTI do Cristo Redentor afirma que é a primeira vez que o hospital recebe vítimas de uma tragédia de grande comoção. “Eu trabalho no Cristo há 6 anos e não tinha passado por nenhuma situação tão grave. Tenho colegas muito mais antigos, há 20 anos, 25 anos, que também não lembram de uma catástrofe assim no Rio Grande do Sul”.

Segundo ela, as equipes que participaram da força-tarefa para socorrer as vítimas ficaram abaladas com a situação incomum. “Isso sensibilizou muito a equipe, têm sido dias difíceis. Nos últimos dias, estamos mais aliviados porque os pacientes estão melhorando. Mas, nos primeiros dias, a gente estava com uma sobrecarga de trabalho, porque precisávamos de uma equipe extra dentro do hospital. E muitos materiais, porque não estávamos preparados – ninguém estava preparado para receber tantos queimados ao mesmo tempo. Além disso, são jovens, todo mundo conhece alguém dessa idade, então realmente é bem comovente, as circunstâncias em que aconteceu. Agora, a equipe está um pouco menos abalada. Os pacientes vão melhorando e isso vai passando”, diz.

De acordo com a médica, as próprias famílias das vítimas se ajudam entre si e comemoram a evolução de todos os pacientes. “O fato de alguns estarem muito bem aumenta a esperança das famílias daqueles que não estão tão bem ainda, mas podem melhorar”, afirma. Segundo Deisi, o hospital disponibiliza uma estrutura para os parentes e amigos dos internados. “Nós temos uma sala para as famílias, onde eles recebem apoio psicológico, de serviço social, alguma demanda que precisem. Fornecemos alimentação e eles ficam juntos. Eles trocam muita experiência e um apoia o outro, um conta para o outro que o filho está bem, que está melhorando. Eles têm se ajudado, têm tido um bom convívio”, conta.

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