Fotógrafo ferido por bala de borracha no olho planeja retomar trabalho

“Todos os dias, quando eu acordo, eu vou me olhar no espelho. E a imagem que eu tenho é essa que você está vendo agora. Uma imagem da violência… O meu olho está fechado. Todos os dias eu lembro. Não tem como. Todos os dias…” Com a fala pausada e alguma resignação, é dessa maneira […]

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“Todos os dias, quando eu acordo, eu vou me olhar no espelho. E a imagem que eu tenho é essa que você está vendo agora. Uma imagem da violência… O meu olho está fechado. Todos os dias eu lembro. Não tem como. Todos os dias…”

Com a fala pausada e alguma resignação, é dessa maneira que o fotógrafo Sérgio Silva, 31 anos, se recorda da noite do último dia 13 de junho, data em que foi atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar do Estado de São Paulo. Na ocasião, os policiais tentavam impedir o avanço de milhares de manifestantes que estavam diante da Praça Roosevelt e pretendiam seguir até a avenida Paulista. Até aquele momento, tudo transcorria em perfeita ordem.

Àquela altura, o pleito ainda era pela redução no preço das tarifas dos ônibus e do Metrô de São Paulo. Seis dias depois, os governos do Estado e do município recuariam e o preço de R$ 3 voltaria a ser estampado nos coletivos. No início daquele mesmo mês, ambos tinham autorizado o aumento para R$ 3,20.

Passados mais de três meses, Silva tenta reorganizar a sua vida. Sobre a possibilidade de voltar a enxergar pelo olho atingido, ele é direto. “É irreversível”. Tão direto como quando se refere ao poder público diante do episódio. “O Estado, de nenhuma maneira se ofereceu com uma ajuda, não só financeira, mas mesmo médica. Como oferecer uma opinião terceira de um especialista em trauma ocular (…) Psicólogo, nada. É silêncio total, silêncio absoluto”.

Naquela noite, as primeiras bombas de gás lacrimogênio lançadas pela Polícia Militar, às 19h15, na rua da Consolação, deram início a uma sequência de atos violentos por parte dos militares, que se espalharam até por volta da meia-noite. A manifestação, que até ali transcorria sem qualquer incidente, deu lugar a inúmeros conflitos, que se espalharam pelas ruas do Centro da capital. A avenida Paulista foi o palco principal de uma noite em que o bom senso foi revogado, ainda que momentaneamente.

Silva conta que vivia da fotografia havia três anos. Momentos antes de ser atingido, ele descreve a situação de segurança pessoal como crítica. Bombas de efeito moral (barulho), de gás lacrimogênio e tiros com balas de borracha eram, naquele momento, usados de maneira indiscriminada nas imediações da igreja da Consolação. Houve reação dos manifestantes e cenas de violência passaram a ser registradas noite adentro.

O fotógrafo narra o momento em que percebeu que cegara de seu olho esquerdo. “Eu estava na rua da Consolação, perto da Caio Prado. Foi exatamente para o lado que aquela tropa, que saiu da rua Maria Antonia, atirava. Eu estava me protegendo atrás de uma banca de jornal, por conta do número de bombas que caiam naquele momento. Foi isso o que me fez, em um instante, sair de trás da banca para fotografar a tropa que estava atirando contra aquelas pessoas (…) Foi o momento que eu baixei a câmera e fui atingido. Além de eu estar cego, eu tinha inalado muito gás lacrimogênio. Então, eu já estava sofrendo uma asfixia”.

Mesmo com o impacto, não havia ficado claro para ele o que tinha acontecido. “Eu pensei: será que foi uma pedra? Será que foi um estilhaço? A sensação do impacto que eu tive não foi de nada pontiagudo. Não foi uma pedra, aquela coisa que bate e você sente a ponta te acertando. Meio que amorteceu. A bala de borracha bateu e deu uma amortecida. Eu não senti ela fisicamente. Eu senti o meu olho inchado, sangrando muito”, recorda-se.

Para os próximos anos, um novo caminho é planejado. “Eu tenho certeza que meu trabalho fotográfico vai tomar outra direção. Que vai ser justamente com causas sociais. Eu me sinto agora, numa certa obrigação, entre aspas, de lutar por essa causa da desmilitarização (da polícia). Da violência contra a sociedade. Vou usar a fotografia como ferramenta dessa causa”.

Rotina

A partir de então, Silva relata a mudança na sua vida e de seus familiares. “Eu mantenho a minha casa. Eu tenho duas filhas. Pago a escola, por causa da educação falida que a gente tem nesse País. Pago convênio médico para elas. Tem a questão de saúde delas, medicamento, divertimento. São gastos que um pai de família tem de manter. Isso eu não estou conseguindo fazer”.

Silva afirma que ainda terá de passar por pelo menos duas cirurgias. “Uma delas é para reparar duas fraturas ósseas que eu ainda tenho na região do olho. A segunda cirurgia é para a colocação de uma prótese. Estamos discutindo se é o momento ideal de colocar agora”.

Ele conta que tem recebido o auxílio da família e somente por isso não atravessa dificuldades ainda maiores. “A gente vai apertando, diminuindo consumo. Minha esposa está se desdobrando no trabalho. Ela é jornalista também. Então a gente está nesse aperto. Mas graças a Deus eu também não vou poder falar que sou um cara que está totalmente desamparado. Tenho uma família que está dando um apoio”, diz.

Em até três semanas, Silva afirma que deverá acionar o Estado na Justiça pelo dano que sofreu. “A gente está aguardando primeiramente esse cuidado médico. Essa preocupação médica em primeiro plano, reunindo toda essa questão de custos para fazermos a ação de um modo geral, contabilizando cada centavo nas custas do Estado. Juridicamente, não sei qual é o termo correto, mas a orientação que eu recebo dos meus advogados é que vai ser por danos morais e físicos. Físico eu tenho um dano eterno. E isso é imensurável, não tem como calcular”, diz ele.

Futuro profissional

Na profissão, ele também vive um período de incertezas. “Tecnicamente eu estou muito abaixo de uma pessoa normal, de um fotógrafo normal. Tem a questão não só técnica, em relação à fotografia, mas de até enxergar o caminho que eu estou seguindo, pegar um transporte público sozinho, pegar um Metrô lotado. Eu retornei à vida social recentemente, há três semanas mais ou menos. Mas a trabalho, por exemplo, não. Estou saindo, indo na casa de familiares, na casa de um amigo. Estou estudando. Primeiro fazendo uma adaptação. Uma questão social mesmo. Tenho de me recolocar novamente na sociedade para pensar em exercer minha profissão como antes”, diz.

Ele se recorda plenamente do seu primeiro contato com o equipamento fotográfico após o incidente. “A primeira coisa que eu fiz foi tentar fazer uma fotografia. Fazer um autorretrato. Eu usei a minha própria imagem e foi muito difícil. Eu nunca senti tanta dificuldade de fazer uma foto. Você posiciona a câmera em um tripé, o que tecnicamente é fácil para um fotógrafo fazer. Aos poucos eu estou retomando para praticar a fotografia na rua, que é o que eu gosto de fazer. Mas ainda está sendo muito difícil por essa questão de enxergar o ambiente sem um campo de visão mais amplo. Coisa que hoje eu tenho reduzido a 50%. Estou saindo aos poucos. Mas fotografia é a minha paixão. Eu não vou deixar nunca de fotografar”, diz ele.

Antes de retomar o trabalho, quer convencer o secretário de Segurança Pública, Fernando Grella Vieira, de abandonar o uso das balas de borracha no Estado. Silva disse ter colhido mais de 45 mil assinaturas demonstrando apoio à causa. “Pretendo mostrar que são pessoas contra o uso dessas armas nas ruas. Vamos discutir uma política. Não sou eu que estou pedindo, é a sociedade. Mudança e alteração no modo e no tipo de armamento que está solto pelas ruas”, diz.

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