Clubes devem R$ 4,7 bi e agravam caos financeiro

Quem olha para o noticiário esportivo brasileiro desde o início do ano já sabe. O Vasco enfrenta sérias dificuldades desde o ano passado. O time que chegou perto de eliminar o Corinthians da Libertadores-2012 foi desmanchado aos poucos e hoje o clube sofre para pagar em dia os atletas que ficaram. O Flamengo, desde que […]

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Quem olha para o noticiário esportivo brasileiro desde o início do ano já sabe. O Vasco enfrenta sérias dificuldades desde o ano passado. O time que chegou perto de eliminar o Corinthians da Libertadores-2012 foi desmanchado aos poucos e hoje o clube sofre para pagar em dia os atletas que ficaram. O Flamengo, desde que trocou de presidente, embarcou em um processo semelhante, com atletas deixando o clube não pelo rendimento esportivo, mas pelo alto custo de seus salários. O mesmo acontece no Palmeiras: a nova diretoria assumiu há pouco e já avisou que não serão feitas grandes contratações e que os tempos são de contenção de gastos.

Os três exemplos são a prova de que a situação financeira precária do futebol brasileiro, aos poucos, vai vencendo os clubes. O processo é rápido e cresce com velocidade ainda maior do que a evolução das receitas. Desde 2003, os maiores clubes do país aumentaram em 235% a verba que entra nos cofres, passando de R$ 800 milhões em 2003 para R$ 2,7 bilhões em 2011. No mesmo período, porém, as dívidas cresceram 306%, de R$ 1,2 bi para R$ 4,7 bi.

“Muita gente fala que a gestão dos clubes está melhorando só porque tem mais dinheiro entrando. Mas essa análise mostra que os dirigentes estão fazendo o que sempre fizeram: trabalham com o dinheiro futuro. O custo do futebol atual está no patamar de 2016, mas está sendo praticado em 2012. Nesse modelo, os custos vão subir sempre. O déficit é garantido”, diz Amir Somoggi, especialista em marketing e gestão esportiva. A pedido do UOL Esporte, o especialista calculou uma série de números que mostram o tamanho do buraco em que o esporte nacional está entrando.

Os R$ 5 bilhões em dívidas

O principal indicador de que as contas do futebol brasileiro não vão bem é a análise das dívidas que os clubes acumulam. Como já foi dito, esse rombo é de R$ 4,7 bilhões até 2011 e deve crescer mais quando os números de 2012 forem divulgados. Além disso, levando em conta apenas os clubes com as 12 maiores arrecadações do país, nenhum deve menos que R$ 100 milhões.

Em alguns casos a situação é controlável. O Corinthians, por exemplo, tinha dívidas de R$ 178 milhões até 2011. Mas, com receitas de R$ 390 milhões, precisaria, hipoteticamente, de pouco mais de meio ano para zerar as contas.

Em outros, o problema é gigantesco. Em 2011, por exemplo, o Botafogo arrecadou apenas R$ 59 milhões. Sua dívida, no entanto, batia R$ 564 mi. O indicador é de 9,6 – o que significa que o clube precisaria ficar quase dez anos sem gastar um centavo, mas mantendo a arrecadação, para quitar seus débitos.

E o patamar caótico não é exclusivo do Bota. O indicador do Fluminense, por exemplo, é de 5,1. Mesmo lembrando que o patrocinador do clube, a Unimed, banca o salário de boa parte do elenco. A situação de Atlético-MG e Vasco da Gama também é parecida. O indicador mineiro é de 3,7. O carioca, de 2,8.

Nos demais clubes, essa nota não passa de dois. E apenas Corinthians, Cruzeiro (0,9), Internacional (1) e São Paulo (0,7) estão em um patamar que seria aceitável em empresas privadas. “No mercado financeiro, a partir do indicador 1 você pode considerar a empresa em situação falimentar. Isso quer dizer que a maioria dos clubes brasileiros está em situação falimentar atualmente”, diz Somoggi.

Juros e bloqueio de renda

A dívida não seria um problema se os clubes tivessem um plano para pagá-la. Sem esse planejamento, um time não tem como equilibrar gastos e ganhos. Funciona mais ou menos assim: sem dívidas, o dinheiro que entra de patrocinadores, acordos das TVs ou bilheteria cai na conta do clube e, ao fim de cada mês, é usado para pagar gastos como salários de jogadores.

Com dívidas, as verbas entram na conta do clube e são usados para pagar as contas atrasadas. Quando os salários vencem, os clubes têm de ir a um banco para pedir empréstimos. Apresenta o contrato de direito de transmissão, por exemplo, como garantia. Com esse dinheiro emprestado, paga os salários de um mês. No mês seguinte, porém, além dos gastos mensais, é preciso pagar ainda o que foi emprestado, mais os juros.

Nessa bola de neve, o valor de encargos financeiros que o futebol brasileiro paga chega a patamares impressionantes. Donos dos maiores contratos de transmissão com a TV, Corinthians e Flamengo gastaram, em 2011, mais de R$ 30 milhões cada só para antecipar contratos. Os paulistanos listaram R$ 33,8 milhões nessa modalidade no balanço de 2011, contra R$ 32,6 milhões dos cariocas. “Quem empresta dinheiro paga juro bancário. Isso é normal e as grandes empresas fazem. Só que clubes estão errando a mão. Esses números de Corinthians e Flamengo mostram isso”, analisa Somoggi.

Um exemplo de como um planejamento ruim para o pagamento de contas pode complicar um clube é o Vasco. Graças a dívidas não pagas com a Receita Federal, 100% das rendas de jogo são penhoradas. Pior ainda, por causa disso, o clube não tem certidão negativa e, consequentemente, não pode receber de sua patrocinadora, a estatal Eletrobrás. A média de salários atrasados é de três meses e os funcionários só recebem quando entram com uma ação junto ao Sindicato dos Clubes. O clube deve R$ 43,4 milhões apenas para a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e possui uma dívida total de R$ 387 milhões.

Cristiano Koehler, diretor geral, assumiu o Vasco nessa condição e está trabalhando para mudar o modelo de administração. Em contato por telefone, ele admitiu que a meta é manter os gastos abaixo do que o clube recebe, tornando o pagamento dos débitos a prioridade. Segundo ele, em entrevista anterior, esse processo será longo e o clube vai precisar de no mínimo cinco anos para se reestruturar financeiramente.

Salários atrasados

O resultado do aumento das dívidas, principalmente a com instituições bancárias, é a dificuldade dos clubes para pagar suas contas mensais. Pelo menos oito dos 20 clubes que disputaram a Série A do Brasileirão no ano passado atrasaram salários ou direitos de imagem. O Cruzeiro, por exemplo, atrasou salário de jogadores e funcionários em janeiro de 2012, referentes à folha de pagamento do mês de dezembro de 2011.

O clube precisou fazer um empréstimo para quitar a dívida, mas o problema se arrastou até 1º de fevereiro. Antes de pagar, porém, o presidente do clube, Gilvan de Pinho Tavares, criou um mal-estar com os jogadores com uma frase irônica: “Os atletas ganham muito pouco, ganham uma miséria. E atrasar três ou quatro dias faz uma falta danada”. Insatisfeitos, os jogadores reagiram e entregaram à imprensa uma carta de repúdio pelas declarações do presidente, afirmando que não deixaram de trabalhar, mesmo sem receber os vencimentos.

Outros dois clubes admitiram que venderam atletas (ou fatiaram direitos econômicos) para bancar a folha salarial. É o caso do Santos, que utilizou o dinheiro da venda de Paulo Henrique Ganso para pagar a salários de dezembro e 13º de 2012, e do Botafogo, que durante o ano se desfez de 40% do zagueiro Dória para não pagar seus jogadores em dia. “Hoje, o clube não precisa mais se desfazer do jogador para fazer dinheiro. Em 2012, por exemplo, vendemos 20% do Dória para o BMG por valor alto, fizemos dinheiro e o atleta seguiu no clube”, disse o vice de futebol do Botafogo, Chico Fonseca, em entrevista do início de janeiro.

Fair Play Financeiro da Uefa

Em resumo, o futebol brasileiro tem dívidas astronômicas, a cada ano paga mais juros bancários e não paga seus salários em dia. Se jogassem na Europa, a grande maioria seria proibida de jogar competições internacionais e ainda seria multada pelas regras do Fair Play Financeiro. Os únicos que sobreviveriam seriam Corinthians, São Paulo e Atlético-PR.

Mas o que é esse Fair Play Financeiro da Uefa? Em 2009, a entidade e a associação dos clubes resolveu adotar medidas práticas para manter os custos do futebol em um patamar sustentável. Naquele ano, o futebol europeu percebeu o perigo que bilionários russos e árabes investindo no futebol, dando potencial de compra quase infinito a alguns clubes, representava.

O problema é mais ou menos esse: olhe para o Manchester City. Em três anos, o clube gastou 418 milhões de libras em contratações, mas não arrecadou o suficiente para pagar por tudo isso. O dinheiro veio, na verdade, do xeque Mansour bin Zayed bin Sultan Al Nahyan, membro da família real de Abu Dhabi. O mesmo aconteceu com o Chelsea, do russo Roman Abramovich, e com o PSG, do catariano Nasser Al-Khelaifi.

Os clubes endinheirados, então, criam dois problemas para a entidade. O primeiro, um desnivelamento esportivo. O segundo, clubes gastando mais do que podem para se equiparar a esses novos-ricos (e, consequentemente, deixando de honrar seus compromissos). Como as leis europeias impedem uma limitação de investimento nas empresas (a maioria dos clubes por lá são assim), a saída encontrada foi regular os déficits das equipes: com as novas regras, os times só poderiam gastar o que ganhassem.

As regras foram oficializadas em 2009, mas a Uefa deu aos clubes três anos para se adaptar. As regras são complexas, envolvem uma série de fatores, mas pode ser resumida em alguns pontos. Para disputar as lucrativas competições europeias, os clubes do continente precisam de uma licença. E a entidade só fornece essa licença aos clubes que, por meio de auditorias externas, comprovarem que estão dentro dos parâmetros fiscais estabelecidos. Um time, por exemplo, não pode atrasar salários ou deixar de pagar acordos para contratar atletas. Quem fizer isso está sujeito a multas, bloqueio de premiação ou direitos de transmissão e, em último caso, exclusão de competições.

Além da punição aos maus pagadores, a regra mais importante do Fair Play Financeiro é a do “break even”: um clube só pode gastar com seu departamento de futebol o que arrecada, com uma margem de cinco milhões de euros de déficit em um período de três anos.

Existem, no entanto, uma série de exceções. Os clubes, por exemplo, podem descontar os gastos com categorias de base e com construção de estádios ou centros de treinamento. Nos dois primeiros anos, o salário de jogadores assinados antes de 2010 também pode ser desconsiderado. E, nos primeiros cinco anos, os limites de déficit são maiores, um prazo para os clubes deixarem para trás o modelo gastador para adotar modelos sustentáveis. Nos dois primeiros anos, por exemplo, é possível ter um déficit geral de 45 milhões de euros, desde que essa dívida seja coberta por investidores.

Na prática, as regras impedem que clubes com donos ricos gastem sem se importar com o retorno financeiro desses investimentos. “Quando as regras foram criadas, a Uefa estava muito preocupada com o nível de endividamento dos clubes. Como não poderia limitar investimentos, ela usou a arma que tinha e limitou os gastos aos ganhos. Hoje, esses limites estão sendo aplicados e, no fim das contas, o objetivo é chegar ao zero. Mas não tenho muita certeza se é possível obrigar os clubes a operarem em déficit zero”, explica o especialista no assunto Ed Thompson, editor do site financialfairplay.co.uk.

No Brasil, governo é alternativa

Olhando o cenário, o analista Amir Somoggi só vê uma alternativa para evitar que os clubes piorem ainda mais sua situação: a ação governamental. O Governo Federal é o maior credor do futebol brasileiro, responsável por pouco menos de 50% dos R$ 4,7 bilhões que os clubes nacionais devem.

“Os clubes brasileiros estão em seu melhor momento histórico, ganhando muito dinheiro e vendo as receitas aumentarem. Só que as dívidas só estão aumentando. Quando a arrecadação parar de subir, os clubes estarão em um buraco financeiro enorme, sem possibilidade de saída”, explica Somoggi.

Em outros países, foram estabelecidas regras duras para os clubes operarem. Na Alemanha, por exemplo, a Bundesliga aplica sérias multas a quem não paga salários em dia e tem regras que equilibram os gastos. O resultado são times que não fazem loucuras disputando um campeonato muito equilibrado. E os números de torcedores mostram isso, com o Campeonato Alemão mostrando as maiores taxas de ocupação de estádio do planeta.

“É um exemplo do que pode ser feito. Mas é uma liga. Aqui, dependeríamos da CBF, mas todos sabem que ela não está interessada em fazer isso. A outra solução é o governo. Se o governo tivesse o interesse e executasse as dívidas, todos os clubes teriam de fechar. Ninguém faria isso, porque as implicações políticas seriam enormes. Mas poderia ser feito o que foi feito na Espanha e propor a criação de uma linha de crédito específica para o futebol. E, para que o clube conseguisse acesso a esse dinheiro mais barato, teria de se adequar aos parâmetros exigidos pelo governo”, propõe Somoggi.

Seria algo parecido com o que foi feito com a Timemania, a loteria dos clubes criada pelo governo para pagar as dívidas fiscais do futebol. O modelo, porém, ficou abaixo da arrecadação esperada. Além disso, não exigiu contrapartidas suficientes para os clubes, que mantiveram modelos de gestão deficitários. Novo secretário de Futebol e Defesa dos Direitos do Torcedor, o jornalista Toninho Nascimento concorda com a opinião.

Ao assumir o cargo, ele admitiu que o governo pode ajudar os clubes a renegociarem as dívidas, desde que com gestão profissional e transparente. “O governo não pode dar dinheiro em troca de nada”, afirmou o secretário à Agência Brasil. “Acho que os dirigentes não podem mais administrar os clubes como um hobby, um segundo trabalho ou somente uma paixão. Tudo caminha para que esses dirigentes assumam responsabilidades cada vez maiores. A paixão obviamente tem que continuar, mas acho que é a hora de profissionalização, e o poder público tem um papel muito importante nesse processo. As dívidas dos clubes são uma âncora que os prendem ao passado”.

Outra alternativa é ver os patrocinadores exigindo mudanças nos clubes em troca de seu apoio. Pense em empresas cancelando o patrocínio caso um clube atrase os salários, por exemplo, para que ninguém faça a ligação negativa entre o patrocinador e um mau pagador. “O problema é que os clubes não ligam para essa imagem negativa. Atrasam pagamentos e não consideram a publicidade que isso gera negativa”, conta Somoggi.

Esse cenário, porém, está mudando. No início do ano, o movimento “Por um Futebol Melhor” anunciou um projeto para premiar o clube com a melhor gestão na temporada. O movimento reúne uma série de empresas, capitaneadas pela Ambev, em um programa de sócio-torcedor gigante, que já conta com 15 clubes e deve chegar a 23 até o fim do ano.

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