Urinar na rua não é necessariamente ato obsceno
Segundo noticiou a imprensa carioca, nos dias 19 e 20 de fevereiro de 2011, 80 pessoas foram detidas e conduzidas às Delegacias de Polícia, eis que flagradas urinando em via pública, durante a passagem de blocos carnavalescos. Fiquei, como advogado, militante na área criminal, intrigado: prisão em razão de quê? Qual seria a tipificação penal? […]
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Segundo noticiou a imprensa carioca, nos dias 19 e 20 de fevereiro de 2011, 80 pessoas foram detidas e conduzidas às Delegacias de Polícia, eis que flagradas urinando em via pública, durante a passagem de blocos carnavalescos. Fiquei, como advogado, militante na área criminal, intrigado: prisão em razão de quê? Qual seria a tipificação penal? As próprias matérias jornalísticas esclareceram que as autoridades policiais enquadraram os jovens foliões por ato obsceno, capitulado no artigo 233 do Código Penal.
Resolvi, ao ler as reportagens, tentar abstrair tamanha teratologia. Logo no Rio de Janeiro, cidade onde as pessoas são alegres, extrovertidas, divertidas, recepcionam com carinho quem vem de fora, e, no clima do carnaval, por causa do xixi de alguns, prisões, delegacias, depoimentos, camburões, entre outros, viraram notícia. Chega a ser ridículo, na minha humilde opinião. Como se não tivéssemos problemas graves de segurança pública, Polícia, Guarda Municipal e prefeitura detendo gente e levando diante de delegados, em virtude, repita-se, de urinarem em via pública.
Brinquei, inúmeras vezes, o carnaval nas ruas do Rio. Todo ano se repete a mesma situação: pouquíssimos banheiros químicos à disposição dos foliões. Pessoas se amontoam, numa aglomeração enorme de gente apertada, em todos os sentidos. Não há guarda ou funcionário da prefeitura para organizar a bagunça.
É inevitável que alguns procurem um canto para urinar. Nunca presenciei, todavia, alguém mostrando a genitália em público, de forma a ultrajar o pudor. Mas a cerveja que entra tem que sair. E como há ambulantes vendendo, sem controle, cerveja e todos os tipos de bebidas e comidas.
A Prefeitura do Rio de Janeiro ainda não entendeu e confunde o conceito de ordem pública, que não se pode transformar em caso de polícia situações que não demandam a intervenção do Direito Penal. Há outras, e melhores, formas de mediar conflitos ou evitar transgressões.
Aquele que está de costas para o público, fazendo xixi em um muro, não está cometendo crime algum, não podendo ser preso e levado para uma delegacia. Se isso acontece, há mais do que uma simples violência de agentes públicos, mas ilegalidade odiosa, que parte de gestores que desconhecem a lei e estão atrasados no tempo. Mais fácil, parece-me, na visão deles, prender, impondo o terror, do que espalhar quantidade suficiente de banheiros pela cidade e coibir a farra dos ambulantes.
Praticar ato obsceno é muito diferente de fazer xixi na rua. Aliás, juridicamente, o conceito passa longe. O legislador, quando criou esse tipo penal, mirou a proteção ao pudor público, que varia de acordo com os costumes de cada lugar.
Para não parecer que se trata da opinião isolada de um advogado, socorro-me do saudoso Celso Delmanto, jurista consagrado, e de seu festejado Código Penal Comentado: “A conduta punida é praticar ato obsceno, isto é, ato que ofenda o pudor público, objetivamente, de acordo com o meio ou circunstância em que é praticado. O ato pode ser real ou simulado, mas deve ter conotação sexual, não se enquadrando no dispositivo a manifestação verbal obscena (…)” (3a ed., Ed. Renovar, p. 376).
Ademais, o Direito Penal, explicando com simplicidade, é arrimado na intenção, no dolo. Assim, é necessário que o agente, ao praticar o ato, tenha a vontade livre e consciente de ofender o pudor coletivo. Há de existir nas ações, para serem apodadas obscenas, conotação sexual, como ensinou o mestre. Pergunto: aquele que está fazendo xixi num muro, numa árvore ou mesmo no pneu de um carro, quase sempre, de costas para o público, possui o desiderato de ultrajar o pudor de alguém? O que há de sexual nisso?
Nossos tribunais costumam incriminar, a título do delito de ato obsceno, aquele que corre nu, em meio a transeuntes, ou mostra o órgão sexual, colocando-o para fora da roupa, a indeterminadas pessoas; que faz sexo na via; que se masturba publicamente; que apalpa, em público, os seios da acompanhante, por exemplo, mas não quem faz xixi, em pleno carnaval, num canto de praça, por estar apertado, pois “urinar de costas para a rua, sem exibir o pênis, é grosseria, mas não tipifica o artigo 233 (Tribunal de Alçada Criminal – SP, 67/464)”.
Não podemos tolerar, a título de um panfletário choque de ordem, de senda evidentemente propagandista, prisões ilegais, de quem não cometeu crime algum, que lembram as detenções para averiguação, de um tempo que se pensava passado, mas que se vem mostrando presente, em atitudes autoritárias, que copiam jogadas de marketing de Prefeitos que se foram e que muito mal fizeram ao Rio de Janeiro.
Se é para copiar outras administrações, outras cidades, outros países, que se espelhe no que realizaram de bom, não no ultrapassado oportunismo eleitoreiro, que visa a passar a ideia de que se está prestando um serviço relevante, quando não se está, muito menos a deturpada e desviada aplicação do Direito Penal a cidadãos de bem, porquanto, no Rio de Janeiro, há muitos criminosos perigosos a serem alcançados pela mão da polícia e submetidos ao crivo do Poder Judiciário, que não pode, agora, e só faltava essa, ser abarrotado de processos de jovens que urinaram na via pública, em meio a brincadeiras de carnaval.
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