Municípios apresentam casos graves de desvio de recursos públicos

Os municípios de Curralinho (PA), São Sebastião (PA) e Tefé (AM) receberam recursos do governo federal para gastos em Saúde, Educação e saneamento básico, mas milhões de reais acabaram sendo desviados, segundo avaliação da Controladoria Geral da União (CGU), responsável pela fiscalização das cidades brasileiras. Uma das missões da CGU é defender o dinheiro público. […]

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar

Os municípios de Curralinho (PA), São Sebastião (PA) e Tefé (AM) receberam recursos do governo federal para gastos em Saúde, Educação e saneamento básico, mas milhões de reais acabaram sendo desviados, segundo avaliação da Controladoria Geral da União (CGU), responsável pela fiscalização das cidades brasileiras.

Uma das missões da CGU é defender o dinheiro público. “Nós sorteamos 60 municípios de cada vez, no auditório da Caixa Econômica, no mesmo lugar onde se faz o sorteio da megasena, aberto para a imprensa, para todo mundo que quiser ver, de modo que não há nenhuma possibilidade de indução política”, afirmou o ministro Jorge Hage, da Controladoria Geral da União.

Em oito anos, foram feitos 33 sorteios, de acordo com a CGU. No último deles, os relatórios da CGU apontaram São Sebastião da Boa Vista, Curralinho e Tefé como os casos mais graves de desvio de dinheiro público, o que acaba por prejudicar a população destes municípios.

Seringas no lixo
São Sebastião da Boa Vista é uma cidade de 22 mil habitantes que fica a 12 horas de barco de Belém, a capital do Pará. No hospital da cidade, funcionárias jogam fora o lixo hospitalar como se fosse lixo comum.

“Olha o absurdo que é. A universidade ali, o prédio do INSS que estão construindo lá, o estádio lá, a quadra aqui, tudo próximo do lixão, tudo no lado do lixão, e o lixão no meu quintal, praticamente”, afirmou Benedita Magalhães, dona de casa.

No local, estão seringas usadas, com as agulhas prontas para espetar, ferir e contaminar. O carpinteiro Sebastião Pinto conta que o filho já se feriu no lixão. “Meu filho, o Júlio, já foi furado com agulha umas duas vezes já, com seringa. E ninguém toma providência nenhuma”, disse ele.

O professor de Infectologia Edimilson Migowski, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ficou impressionado. “Meu Deus do céu, seringa com ponta. Porque a seringa desse jeito, qualquer outro material perfuro-cortante no ambiente hospitalar, tem que ser acondicionado em uma caixa apropriada. Essa caixa tem que ser transportada de forma apropriada, por uma equipe que foi treinada, para ser incinerado”, explica o professor de Infectologia Edimilson Migowski, da UFRJ.

Curralinho, outra cidade apontada pela CGU como tendo desvio de verbas públicas, possui 28 mil habitantes e fica a 12 horas de barco de Belém, capital do Pará. Na cidade, o repórter Eduardo Faustini encontra o mesmo problema: seringas usadas misturadas com o lixo comum.

“Já sou vereador nesse município há seis anos. São seis anos cobrando, colocando no orçamento, a construção do forno crematório e até agora nada. Não tem resposta nenhuma”, afirmou o vereador Marquinho. Segundo a CGU, Curralinho não conseguiu comprovar como gastou R$ 9,7 milhões.

Já em Tefé, município que tem 65 mil habitantes e fica a 36 horas de barco de Manaus, a população também enfrenta o problema com as seringas no lixo, que piora quando as chuvas escondem as agulhas na lama.

“Alguém que for tentar catar lixo ali para poder reciclar uma garrafa pet, por exemplo, pode se ferir. Ao se ferir, pode então adquirir algumas doenças. As principais são hepatite B, hepatite C ou o próprio HIV”, ressalta o professor de Infectologia Edimilson Migowski, da UFRJ.

Saúde
Os problemas com seringas não são os únicos destes municípios. Em São Sebastião da Boa Vista, os cidadãos têm dificuldade marcar consulta no hospital público, tendo de esperar várias horas para marcar o exame.

Em Tefé, a agricultora Neide da Costa de Castro não conseguiu ser atendida nem marcar consulta. “Eu fui ao médico, só que o médico não me atendeu, porque não tinha médico, tinha só uma enfermeira no hospital”, disse ela.

Ainda em Tefé, enfermeiros e técnicos de enfermagem trabalham no lugar de médicos. Eles fazem consultas e prescrevem remédios sem diagnóstico feito por um médico.

“A verdade é que no município a maior parte do serviço do médico quem faz são os técnicos de enfermagem, não por irresponsabilidade, mas por não querer se omitir ao atendimento”, diz o vereador Reinaldo de Souza e Silva, de São Sebastião da Boa Vista.

Em atendimentos feitos sem a orientação de um médico, podem haver danos à saúde dos pacientes. “Esse remédio é usado diariamente aqui. Todo santo dia, qualquer paciente toma esse remédio, a gentamicina. É um remédio que é feito diretamente aqui para todos os pacientes. É um antibiótico, antiinflamatório. Acredito que seja isso. Para dores musculares. Tudo foi receitado por um enfermeiro”, comentou uma técnica em enfermagem.

Em um único dia, esse antibiótico foi receitado pelo menos 21 vezes. “A gentamicina pode provocar dano tanto ao rim quanto ao ouvido. Não pode ser passado de qualquer maneira”, alerta o presidente da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Carlindo Machado e Silva.

Em Curralinho, onde antibiótico é receitado indiscriminadamente, milhares de remédios são desperdiçados. Pílulas, ampolas, vacinas, muitos comprados pelo Ministério da Saúde, estão com a validade vencida, enquanto faltam medicamentos para atender à população.

O repórter Eduardo Faustini vai à outra comunidade, também em Curralinho, e encontra péssimas condições de trabalho da técnica de enfermagem Francisca Sá Barreto, que não tem nem luvas para tirar os pontos da cesariana de uma paciente. “Não estou com luva, porque não tem”, afirma ela, que diz que lava o material depois do uso.

“A gente vê que a lavagem do material que ela vai fazer não guarda nenhuma das normas, das regras para se esterilizar material. É feito tudo de uma maneira muito rudimentar, colocando em risco os próximos pacientes nos quais ele for usar esse material, que certamente estará contaminado”, afirma o presidente da Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro, Carlindo Machado e Silva.

Atendimento médico e reutilização de material
Segundo o vereador e prefeito interino de São Sebastião da Boa Vista, Doriedson Teixeira da Silva, um médico ganha cerca de R$ 1,3 mil por dia para consultar 15 pessoas de manhã e dez à tarde. “Depois, ele não atende mais e vai para o consultório dele particular”, diz o vereador.

Este é o caso do médico Itamar Cardoso. Em um mesmo dia, ele atende no hospital público e depois no consultório particular, onde está o único aparelho de ultrassonografia do município.“No dia em que ele está batendo ultrassom, ganha como ultrassom, como médico de ultrassom, e ganha também como médico do nosso município. Ele acumula dois salários só em um dia”, disse o prefeito interino.

Há problemas também com reutilização de lâminas para exames, que são lavadas no banheiro. “Se você tiver que reutilizar um material. Uma lamina de vidro, por exemplo, tem que ser autoclavado. Autoclavar é um aparelho que esteriliza realmente. Ele é a uma temperatura extremamente elevada que mata vírus, mata bactéria”, disse o infectologista, Edimilson Migowski.

Essa precariedade ocorre em um município com altíssimo índice de malária, cerca de metade dos 28 mil moradores já contraiu a doença. Muitos deles, mais de uma vez. “Aqui na minha casa todo mundo já pegou malária. Meu pai pegou 14 vezes já. Eu peguei cinco. Todos os anos, nós pegamos”, afirmou o estudante Michel Gonçalves.

Matadouros municipais
A situação do matadouro municipal, que é vizinho de uma creche, também é alarmante. “O pessoal não tem o equipamento de proteção individual. O chão está totalmente imundo. As paredes e o chão não são apropriados. O transporte é totalmente irregular. A carne tem que ser transportada sob proteção, refrigerada. Não tem muita diferença do ponto de vista sanitário você transportar a carne na carroça e em uma caçamba de lixo”, avaliou o professor de Infectologia Edimilson Migowski, da UFRJ.

No matadouro municipal de Tefé, no Amazonas, o que os funcionários entendem como higiene é lavar o estabelecimento com água, e tudo vai parar no rio que é de onde sai a água usada pela população. “Quando você joga sangue in natura na água, você acaba favorecendo a proliferação de bactérias”, explicou Edimilson Migowski.

Saneamento básico
Segundo a Controladoria Geral da União, o município de São Sebastião da Boa Vista recebeu do Ministério da Saúde R$ 1,2 milhão para implantar o sistema de esgoto. Uma construtora recebeu o dinheiro, mas a prefeitura não comprovou a execução dos serviços.

“Nós não ficamos só no processo para ver a comprovação da despesa, para ver se houve a licitação ou não, porque, às vezes, o processo é muito bonitinho. Quando veem no processo que houve uma licitação, quais as empresas que ali apareceram como tendo participado, os nossos auditores vão procurar a empresa no endereço”, afirmou o ministro da CGU, Jorge Hage.

Licitações para materiais de escritório e limpeza
A reportagem do Fantástico também foi até duas empresas que venceram licitações da prefeitura de Curralinho, no Pará. Uma foi convidada a disputar o fornecimento de materiais de escritório; a outra, o de materiais de higiene e limpeza.

A empresa de Anisérgio da Silva Oliveira foi uma das vencedoras da licitação para fornecer material de escritório. Sobre a empresa do pai, ele diz que não sabe nada. “É parte de papelaria. É do meu pai. Eu não sei”, disse ele, apesar de as empresas ficarem lado a lado.

A empresa do pai se chama Oliver Comércio e Serviços de Obras e foi uma das escolhidas para fornecer material de higiene e limpeza. A CGU desconfia que o processo foi fraudado, porque as compras custaram mais R$ 200 mil para cada tipo de material. A lei diz que, se o valor passa de R$ 80 mil, não pode haver licitação por convite. A prefeitura tinha que ter feito era outro tipo de licitação, a chamada tomada de preços.

“E vocês sabem que na minha administração eu sempre respeito o dinheiro do povo”, declarou o ex-prefeito de Tefé, Sidônio Gonçalves.

Educação
Sidônio perdeu o mandato no ano passado, porque foi eleito prefeito pela quarta vez, o que é proibido. Quando ele era prefeito, a cidade recebeu do governo federal R$ 24,6 milhões para a educação. A CGU descobriu que a prefeitura não comprovou como gastou quase a metade desse dinheiro: R$ 11 milhões.

De acordo com o novo prefeito, que tomou posse esta semana, a situação das escolas é péssima. “Nós temos mais de 48 escolas sem condições, totalmente sem condições de ter aula. Infelizmente, é essa a nossa realidade”, afirmou o novo prefeito Jucimar.

O aluno que não leva comida de casa passa fome. “Chegava lá e, às vezes, não tinha merenda, e voltava porque não tinha merenda”, comenta Neide da Costa de Castro, mãe de alunos.

A situação não é melhor nas outras duas cidades fiscalizadas pela CGU. “Não tem carteira para todos. A carteira que tem são poucas, não é para todos. Quando vêm todos os alunos, tem um que tem que sentar no chão”, conta a professora Maria do Socorro de Farias, de Curralinho (PA).

“Quando chove, enche, e a gente tem que pular pela janela para poder dar aula, para os alunos terem acesso às salas de aula. Esse pátio enche tudo. As salas enchem. Está precisando de uma boa reforma”, disse a professora Francisca Rodrigues da Costa, de São Sebastião da Boa Vista (PA).

Prefeitos
A reportagem do Fantástico procurou o prefeito de São Sebastião da Boa Vista, mas ele não quis receber a equipe. Já o prefeito de Curralinho afirmou que todo o dinheiro recebido do governo foi aplicado corretamente.

“O recurso da Educação foi aplicado na Educação. Os outros recursos, no caso, da saúde, mesma coisa”, diz o prefeito de Curralinho (PA), Miguel Santa Maria. Mas, em seguida, ele admite que as contas da cidade não fecham: “Quando a CGU vai ao nosso município, é bom. Ela achou os problemas, e a gente vai responder já consertando”, declarou.

Jorge Hage, ministro da CGU, avaliou que, atualmente, nenhum gestor, seja prefeito de município, seja dirigente de órgãos estadual ou federal, pode mais confiar integralmente na impunidade.

“Mesmo que o processo judicial demore, que ele possa confiar que dificilmente chegará a ser posto na cadeia, mas há outros tipos de sanções. São punições administrativas, são providências que o obrigam a devolver ao erário o dinheiro desviado. Além disso, há aquela sanção difusa da opinião pública, da sociedade que a imprensa divulga, toda a população fica sabendo o que aconteceu”, afirmou Hage.

Conteúdos relacionados