Em vigor desde 1984, Lei de Execução Penal pode ser reformada

O ano de 2010 certamente ficará marcado na memória dos brasileiros pela mega-operação policial e militar que libertou as favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, das garras do narcotráfico, entre 25 e 28 de novembro. Um dos aspectos mais importantes da estratégia arquitetada pelas autoridades de segurança foi a transferência de chefes […]

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O ano de 2010 certamente ficará marcado na memória dos brasileiros pela mega-operação policial e militar que libertou as favelas do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, das garras do narcotráfico, entre 25 e 28 de novembro. Um dos aspectos mais importantes da estratégia arquitetada pelas autoridades de segurança foi a transferência de chefes do crime organizado, que estavam presos no Rio, para a Penitenciária Federal de Catanduvas, no Paraná.

No dia 5 de dezembro, 12 dos presos mais perigosos do Rio, entre eles os traficantes conhecidos como Marcinho VP e Elias Maluco, foram afastados da cidade para evitar que continuassem a ter influência sobre as ações dos traficantes responsáveis por uma onda de terror iniciada no dia 21 do mês anterior. Encurralados pela ação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), de um lado, e das milícias, de outro, os traficantes incendiaram um número nunca visto de carros e ônibus. 

O afastamento dos chefões do crime para Catanduvas foi amparado da Lei de Execução Penal (Lei 7.210), texto de 1984 que poderá ser atualizado no ano que vem pelo Senado, segundo desejo expresso pelo presidente da Casa, José Sarney. A idéia é que o novo código seja mais efetivo para punir criminosos e dificultar ações das quadrilhas executadas pelos próprios presos, por meio de ligações telefônicas e contatos com familiares, namoradas e advogados. 

Segundo o site de notícias G1, a transferência dos 12 presos foi autorizada pela Justiça Federal do Paraná, a pedido do governo do Rio de Janeiro. No Paraná, eles passaram ao Regime Disciplinar Diferenciado por um período mínimo de quatro meses. Catanduvas é onde está preso o traficante Fernandinho Beira-Mar, o primeiro chefe de facção a ocupar uma cela naquela penitenciária.  

Escola do crime 

Conforme o mesmo G1, investigações da Polícia Militar apontam Marcinho VP e Elias Maluco como mandantes dos ataques que aterrorizaram o Rio. Eles haviam sido, junto com mais quatro presos, isolados na mesma galeria, no presídio de segurança máxima Bangu 1. 

A transferência dos criminosos para Catanduvas mostra como é delicada e complexa a tarefa de prender criminosos; mantê-los presos em condições seguras, para eles e para a sociedade; e prepará-los para a vida social, depois de cumprirem suas penas. 

Já se tornou uma espécie de consenso nacional que a prisão “é uma escola do crime”. Apesar de conhecer as graves ineficiências do sistema prisional, no que se refere à recuperação dos criminosos, a população reclama da dificuldade em se mandar alguém para a cadeia e da facilidade com que os bandidos fogem ou são liberados de suas penas pela Justiça. 

O traficante Elias Maluco, por exemplo, foi condenado pela morte do jornalista da TV Globo Tim Lopes. Um de seus comparsas, igualmente condenado pelo crime que vitimou o repórter, Eliseu Felício de Sousa, oZeu, foi preso durante a tomada do Alemão. Condenado a 23 anos e seis meses de prisão pela morte de Tim, Zeu havia ficado apenas cinco anos e 25 dias preso. Em 2007, recebeu o benefício do cumprimento da pena em regime semi-aberto e não retornou mais. 

Prisão online 

Conforme ainda o G1, a Penitenciária Federal de Catanduvas é a primeira das cinco unidades previstas para compor o Sistema Penitenciário Federal, previsto na Lei de Execuções Penais, cuja implementação começou só 2006.

O presídio é monitorado por 200 câmeras de vídeo. As imagens são enviadas em tempo real para centrais de monitoramento em Catanduvas e para o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) em Brasília. Com a transferência dos bandidos do Rio, a lotação da penitenciária atingiu o número de 125 detentos. 

Infelizmente, Catanduvas é uma ilha de eficiência.  

Divulgado no dia 20, em São Paulo, o 4º Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil, elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a Comissão Teotônio Vilela, aponta um aumento do déficit de vagas no sistema prisional do país entre 2005 e 2007, conforme noticiou o site Globo Online. De acordo com o estudo, entre 2005 e 2007 a população carcerária brasileira cresceu 35,6% e a quantidade de vagas, apenas 18%, o que elevou a relação entre quantidade de presos e números vagas de 1,4 para 1,8 no período. Ou seja, há quase dois presos para cada vaga. 

– As prisões brasileiras apresentam condições deploráveis de superlotação – afirmou Fernando Salla, um dos responsáveis pelo estudo. 

Segundo Sarney, a reforma da Lei de Execução Penal, assim como a dos Códigos de Processo Penal, de Processo Civil, de Defesa do Consumidor e também Eleitoral fazem parte de um verdadeiro mutirão de iniciativa do Senado Federal para modernizar e tornar mais efetiva a ação da justiça brasileira. 

Visitas íntimas

O anúncio da proposta de instalação de comissão para apresentar uma proposta à nova Lei de Execuções Penais foi feito por Sarney no início de dezembro, ainda no calor dos acontecimentos no Rio. O senador chegou a mencionar aspectos da administração do sistema prisional que deveriam chamar a atenção dos legisladores. Um deles é a permissão para visitas íntimas nos presídios de segurança máxima. O presidente do Senado é de opinião que tais momentos não podem servir para troca de informações ou envio de instruções às quadrilhas. 

Como parte dos episódios da chamada Guerra do Rio, a polícia prendeu familiares.

de traficantes. A mulher de Alexander Mendes da Silva, o Polegar, apontado como chefe do tráfico de drogas no Morro da Mangueira, foi uma delas. Flagrada em uma residência de luxo na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio, ela tinha em seu poder “farto material de associação ao tráfico”, segundo o delegado Alan Luxardo. O pai da mulher e a tia dela também foram presos. Polegar é outro exemplo das brechas deixadas pela Lei de Execuções e dos equívocos na sua aplicação. Condenado a 22 anos por tráfico e associação para o tráfico, o traficante obteve a progressão da pena para o regime aberto, depois de cumprir um sexto da pena, mas nunca mais voltou ao presídio. 

Ainda durante a “Guerra no Rio” outro tema esquentou os debates: a ação de maus advogados que, ao invés de defenderem seus clientes seguindo o código de ética da profissão, têm-se tornado cúmplices e até colaboradores dos criminosos. As evidências dessa má postura profissional levaram o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, a censurar os advogados que cooperam com o crime. Três deles, com prisão decretada, foram suspensos pela OAB.

Monitoramento

A entidade, entretanto, tem criticado duramente o monitoramento das conversas entre os advogados e seus clientes nos chamados parlatórios dos presídios, conforme noticiaram Fernando Porfírio e Mariana Ghirello, da Revista Consultor Jurídico. Essas conversas podem ser gravadas, desde que haja autorização judicial, de acordo com o Ministério da Justiça. E a autorização só seria concedida quando o advogado é acusado de participação em crimes.

No início de dezembro, o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, anunciou a intenção de tornar mais severas as regras de visitação de presos nas penitenciárias federais. O objetivo é impedir que chefes de organizações criminosas passem informações ou ordens para pessoas fora dos presídios por intermédio de seus advogados ou familiares. 

Em ofício à OAB, o Ministério da Justiça alega que as penitenciárias federais abrigam criminosos de alta periculosidade, líderes e integrantes de facções criminosas nacionais e internacionais. Sendo assim, seria justificável adotar providências enérgicas para evitar que eles continuem gerenciando seus negócios de dentro da prisão. 

De todo modo, como as conversas gravadas na penitenciária de Campo Grande (MS) teriam chegado a ser divulgadas no YouTube, foram abertos processos administrativos no Ministério da Justiça e na Comissão Permanente do Sistema Penitenciário criada pelo Conselho Nacional do Ministério Público. 

A alta incidência de crimes e criminosos sempre prontos a galgar o próximo degrau da violência fornecem por si sós ingredientes para um debate explosivo num ambiente em que polemizam os defensores de regras mais rígidas para a execução penal e os que vêem esse tipo de endurecimento como inócuo, além de impeditivo da recuperação dos criminosos. 

– O que nós desejamos e estamos fazendo é justamente procurar modernizar e tornar mais efetiva a ação da Justiça. Quero deixar uma legislação moderna, legando à sociedade o que ela deseja, que é a prevenção e a celeridade na punição – declarou Sarney. 

Civilização e barbárie

O papel da comissão será o de atingir uma posição de equilíbrio, de forma que o país tenha claro o que fazer com seus criminosos condenados. Isso tornará mais improváveis barbaridades como a ocorrida em Luziânia (GO), cidade distante 1.108 quilômetros do espetaculoso cenário carioca e a apenas 66 de Brasília. Ali, o pedreiro Ademar de Jesus Silva violentou e assassinou seis jovens em 2009. Ele vivia sem maior controle, depois de ser beneficiado por uma redução de pena. Mesmo a diminuição da pena foi motivo de controvérsias entre os peritos que o examinaram e o juiz que determinou sua soltura.

Casos com esse grau de crueldade se sucedem como pontos visíveis, em uma espécie de grande lixão humano. Para o presidente da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), senador Demóstenes Torres (DEM-GO), a Lei de Execuções Penais necessita de várias mudanças, principalmente no endurecimento das regras de progressão das penas e criação de novos regimes disciplinares. Sobre a gravação de conversas entre presos e advogados ou entre presos e familiares, Demóstenes acredita que a medida deve ser usada apenas para chefes ou membros destacados do crime organizado.

– Isso não pode ser generalizado. Cada tipo de crime merece um tratamento diferente, muita gente não precisaria nem ir para a cadeia, bastando que cumprisse penas alternativas. Para o crime organizado sou amplamente favorável – disse Demóstenes. 

Em 2010, o esporte mais famoso do mundo e as práticas de execuções penais acabaram por se misturar de modo trágico: o desaparecimento de Eliza Samudio, ex-namorada de Bruno Fernandes, ex-goleiro do time do Flamengo, chocou os brasileiros. O goleiro e mais três amigos são apontados pela polícia como os principais suspeitos do assassinato de Eliza Samudio. E vão a julgamento.

Bruno está preso preventivamente desde 7 de julho do ano passado, quando se entregou à polícia. Atualmente, o jogador está trancafiado no Complexo Penitenciário Nelson Hungria, em Contagem, região metropolitana de Belo Horizonte. Penitenciária estadual de segurança máxima, o complexo é destinado apenas a homens e não possui equipamento bloqueador de celular.

De acordo com a Lei de Execução Penal (LEP), o Estado brasileiro tem o dever de prover a presos como Bruno Fernandes assistências material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa. Mais especificamente, o jogador tem a garantia de que sua integridade física e moral serão respeitadas por todas as autoridades e tem direito a, entre outros: alimentação suficiente, vestuário, atribuição de trabalho remunerado, Previdência Social e constituição de pecúlio; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo, entrevista pessoal e reservada com advogado e visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita e acesso a meios de informação e pode também contratar médico particular para acompanhar seu tratamento caso tenha alguma doença dentro da prisão.

Evidententemente, todas essas regras têm mais possibilidade de serem cumpridas quando se trata de uma figura pública, que até então era ídolo do time mais popular do Brasil e chegou a campeão nacional. 

Prisões brasileiras 

O Anuário 2010 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública lembra que a situação das prisões brasileiras ficou tão grave nas últimas décadas que, em 2008, o Conselho Nacional de Justiça lançou um mutirão para revisar o maior número de processos de pessoas encarceradas. O documento exemplifica com o caso de um senhor preso em novembro de 2006 por ter furtado tapetes em um varal e continuou na prisão até julho de 2009, quando finalmente foi sentenciado a um ano de prisão em regime aberto.

Recentemente, o programa Fantástico, da Rede Globo, mostrou como o desrespeito à Lei de Execuções Penais começa já em muitas das delegacias espalhadas pelo país, onde muitos presos se amontoam, em péssimas condições. A reportagem encontrou uma delegacia em Bacabal, cidade com 100 mil habitantes, no interior do Maranhão, em que detentos eram colocados em uma jaula, como se estivessem em um zoológico, só que sem qualquer cobertura para protegê-los da chuva. Em outro município maranhense, Santa Inês, homens e mulheres ficam em uma sala improvisada como cela. O “banheiro” é um balde.  

Em resposta à matéria jornalística, a Justiça maranhense ordenou a retirada de 11 presos da delegacia de Bacabal: eles ficarão em prisão domiciliar. E o governo do Maranhão anunciou que abrirá 1,5 mil vagas no sistema penitenciário, com a construção de cinco cadeias ainda este ano.  

Ainda de acordo com a reportagem do Fantástico, o Ministério da Justiça informou haver 57 mil presos em delegacias pelo país.

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