Consertando bicicletas, Divino fez dos filhos uma arquiteta outra geógrafa e um especialista em computação

Embora aprovado em concurso público que o daria status e dinheiro, Divino Cláudio da Luz toca há quase três décadas uma bicicletaria em Dourados; com o que ganha ali ele bancou a formação dos filhos, comprou casa e carro e credita a isso o “trabalho com dignidade”

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Embora aprovado em concurso público que o daria status e dinheiro, Divino Cláudio da Luz toca há quase três décadas uma bicicletaria em Dourados; com o que ganha ali ele bancou a formação dos filhos, comprou casa e carro e credita a isso o “trabalho com dignidade”

Ele parece uma metralhadora. São milhares de palavras que saem de sua boca na velocidade da luz. É o único homem que consegue trabalhar e falar ao mesmo tempo sem perder a concentração nos raios, parafusos e fusos. Sua mente difusa não deixa confuso o seu interlocutor.

O personagem em questão, de estatura baixa que fala pelos cotovelos nos desvela uma história cheia de amor pela bicicleta e paixão por sua família. Iluminado por Deus, este homem de cabelos e barba brancos continua como um menino no alto dos seus cinquenta e dois anos de vida.

Assim é Divino Cláudio da Luz, o “Divino”, que fez da bicicleta o alicerce para uma vida cheia de amor por sua pequena família. Ele poderia hoje ser um comerciante, um empresário bem sucedido, mas preferiu a paz, a calmaria da Cabeceira Alegre, à região mais feliz de Dourados para abrir as portas do seu negócio e tocar a vida.

Divino, ainda criança, abandonou o bodoque, o bilboquê e as calças curtas de tergal listrado para trabalhar. Perdeu a infância, mas ganhou uma profissão para a vida inteira. Deixou as férteis de terras de Café Porã uma região próspera de pequenos produtores no município de Caarapó para acompanhar os pais que vieram para Dourados em busca de uma vida melhor.

Sebastião preocupado com o filho logo arrumou um emprego para o garoto na Bicicletaria Universal, a mais antiga e mais célebre loja de bicicletas de Dourados. Lá ficou vários anos até ser contratado pelo Centro Monark Brasciclo, outra loja de bicicletas já extinta, mas que ainda povoa as mentes dos douradenses mais antigos.

Sempre burilando rodas e câmaras de ar, Divino aprendeu que o trabalho afasta do homem o tédio, o vício e a necessidade, os três grandes males que podem prejudicar a construção do caráter de uma pessoa. O tempo passou e Divino deixou de ser empregado. Montou o seu próprio negócio que há 26 anos funciona no mesmo lugar: uma esquina esquecida da Avenida Weimar Torres, na mais esquecida Cabeceira Alegre.

Divino tem como lema “trabalhar com dignidade”.

– Nunca vendi porcaria para os meus clientes, explica Divino que para justificar o nome é um sujeito “temente a Deus” e há décadas na Renovação Carismática Católica sempre se preocupou com a família.

Pai de três filhos, Divino sempre trabalhou pensando na formação universitária dos seus filhos. Uma tornou-se arquiteta, outra Geógrafa e o terceiro formou-se em Ciência da Computação.

A prioridade de Divino em todos esses anos de trabalho foi garantir uma profissão digna para os filhos sem se preocupar com o crescimento da sua pequena empresa.

– Já cheguei a ter quatro funcionários, diz o homem das bicicletas que sempre fechou sua loja para almoçar. Nunca quis competir com as outras empresas do setor. E agora que as motocicletas tomaram conta das ruas, Divino vê que trabalhar com bicicletas está muito melhor já que o amor pelas duas rodas sem motor fala mais alto.

Sempre ouvindo os conselhos da mãe Jandira, Divino é um filho amoroso, um homem decente e de caráter ilibado. Aos dezessete anos casou-se. Teve várias oportunidades para mudar de vida. Passou em concursos da Caixa Econômica Federal e para fiscal de rendas do Governo do Estado. Optou pela sua família. Ficou com a graxa das bicicletas.

O “homem que fala trabalhando” ou que “trabalha falando” além da família tem três paixões irremediáveis: o futebol, o Palmeiras e a bicicleta.

A Bicicletaria do Divino é o ponto de encontro dos boleiros todas as segundas-feiras depois da rodada do Campeonato Brasileiro. Quando também não tem rodada o encontro persiste no mesmo horário, dia e local.

Por todo canto da bicicletaria tem um distintivo do Palmeiras. Pensa num torcedor fanático. É ele, o Divino das Bicicletas que durante mais de sete anos percorreu o Mato Grosso do Sul e outras partes do Brasil participando de várias competições ciclísticas.

Divino tem um carro muito bom, novinho em folha, daqueles caros, mas prefere andar de bicicleta. São dez delas para lhe servir. Mesmo morando há menos de trezentos metros do trabalho o meio de transporte é a “bike”. O carro fica para ir ao supermercado, ao médico e outras ocasiões especiais.

Depois de tirar a graxa das mãos, Divino vai para casa. Lá tem uma missão mais que especial. Cuidar da esposa que sofre de fibromialgia – enfermidade que provoca dores profundas e que consome a mulher três anos mais velha que ele.

O amor de mais de três décadas é imenso e Divino, iluminado como sempre, não se desgruda um minuto sequer da amada.

Para Divino as três dimensões que norteiam a sua vida são a família, a religião e a cultura. Assim o bicicleteiro educou os três filhos e manteve a união da sua família.

Assim também que cultua boas amizades como a que nutri há mais de trinta anos com o funcionário público Paulo César Gabriel da Silva, outro sujeito que adora as bicicletas e sempre está na Bicicletaria do Divino, oferecendo seus ouvidos para a verve verborrágica do mais antigo mecânico de bicicletas em atividade em Dourados que além de tudo é um leitor voraz de livros e, de vez em quando, um escriba de textos lancinantes.

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