Artigo: Filhos que vão e ficam; passagens
Nesta semana vivi uma experiência que nunca mais irá se repetir na vida: minha única filha se casou. Não foi como ela (ou eu mesmo) havia planejado, porque as burocracias deste Brasil varonil não permitiram. Explico: Jacqueline passou os últimos sete anos vivendo e estudando no Canadá, país que a acolheu com generosidade e respeito, […]
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Nesta semana vivi uma experiência que nunca mais irá se repetir na vida: minha única filha se casou.
Não foi como ela (ou eu mesmo) havia planejado, porque as burocracias deste Brasil varonil não permitiram.
Explico: Jacqueline passou os últimos sete anos vivendo e estudando no Canadá, país que a acolheu com generosidade e respeito, os dois últimos deles morando junto com o namorado Patrick. Lá eles se informaram, no consulado brasileiro, que este tempo juntos configuraria o que aqui se convencionou chamar de união estável. Esse tempo mais uma morada fixa aqui no Brasil seriam suficientes para que o Patrick pudesse obter seu visto de permanência no Brasil, uma vez que ambos optaram por viver aqui.
Mas a coisa não era bem assim: ao procurar regularizar a situação do rapaz, já no Brasil, “descobriram” que para obter o tal visto ele teria de deixar a moradia fixa daqui e esperar o documento em seu país de origem. Tempo estimado: de seis meses a um ano e meio…
Ou seja, a burocracia exige união estável e moradia fixa, mas de forma kafkiana impede que isso se realize.
Desse modo, a dupla resolveu (ou foi obrigada a…) antecipar seus planos de se casar de fato no final do ano, com toda a pompa e circunstância que uma decisão dessas exige, e simplesmente cumprir a burocracia, casando-se oficialmente num cartório aqui pertinho de casa. Apenas junto aos pais e um casal de amigos como testemunhas, deixando festa e celebração com os demais amigos e familiares para depois.
Essa precipitação, do meu ponto de vista, serviu para aguçar ainda mais o aspecto emblemático da “separação” filial.
Minha filha é uma moça madura, resoluta, autossuficiente e companheira. Somos, muito mais que pai e filha, grande amigos.
E foi esse sentimento de companheirismo e amizade que “segurou a onda” quando adveio um rompante de dentro do peito, na hora em que ela estava ali bonitinha diante da juíza, rompante esse doloroso como se ela estivesse sendo sacada do fundo das minhas entranhas. Como se toda a solidão do mundo fosse desabar na minha cabeça a partir daquele momento. Como se estivesse ocorrendo na frente dos meus olhos uma perda tal que luto nenhum seria capaz de expiar. Como se estivesse perdendo um pedaço do meu próprio corpo.
Durou apenas poucos minutos esse emaranhado de sensações fortes e contraditórias, porque a hora era de alegria e celebração, posto que a confiança na escolha da minha filha é total, assim como o foi em relação a todos os passos que ela deu até hoje.
Mas não houve como negar, esconder, transferir ou relevar aquela dor.
Homem não tem dor de parto, mas essa dor de pai, vou te contar, viu…
Não respeitou o fato de eles já estarem com a vida encaminhada, a realidade de ela já ter vivido longe sete anos (durante os quais nos encontrávamos uma ou duas vezes ao ano, embora nos falássemos quase todo dia), ou minha total, irrestrita e emocionada concordância com tudo aquilo que estava ocorrendo.
O simbolismo daquele momento de passagem foi incrivelmente marcante e revelador.
Abriu as portas para a percepção de que, por mais que fiquem, os filhos sempre vão; mas, por mais que partam, estarão sempre aqui.
Perto, junto, dentro.
*
(Esta talvez seja uma boa metáfora para o ritual de passagem da Páscoa deste domingo…)
Luiz Caversan, 54 anos, é jornalista, produtor cultural e consultor na área de comunicação corporativa. Foi repórter especial, diretor da sucursal do Rio da Folha, editor dos cadernos Cotidiano
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