Deixar o trabalho regido pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) para realizar o sonho de ser “seu próprio chefe” como MEI (Microempreendedor Individual) ou então PJ (Pessoa Jurídica) tem o poder do canto da sereia. Imagina isso, você que controla seu tempo e a grana que produzir é sua, de mais ninguém.

Embora a matemática do empreendedorismo não seja tão simples como mencionado na frase anterior, não é por menos que as publicações nas redes sociais estão repletas de conteúdo incentivando esse caminho, seja por meio de vendas, marketing digital ou até mesmo do investimento em si como profissional liberal. Quando dá certo, o resultado é, mesmo, muito bom.

Só que seguir esse caminho, embora potencialmente promissor, não é uma decisão fácil, ou algo que se faça do dia pra noite. Para seguir este caminho é necessário desenvolver algumas habilidades antes. Isso significa que não basta ter sua rescisão guardada no banco e o sonho de mudar de carreira. É necessário ter clareza de tudo o que envolve a mudança que está prestes a encarar.

Esta é a segunda reportagem especial pelo Dia do Trabalhador, celebrado amanhã (1º). Nesta matéria, vamos trazer a experiência de pessoas que desistiram da carreira trabalhista regida pela CLT e optaram por se tornar PJ ou MEI. As respostas – já adiantamos – revelam que empreender é um caminho repleto de desafios.

Empreendedorismo pode ser uma surpresa

Em Mato Grosso do Sul, segundo dados do Sebrae, só em 2023, 34.392 pessoas se cadastraram como MEI, um aumento de 3.143 pessoas em relação ao mesmo período de 2022. O número indica que a formalização de negócios autônomos é um caminho crescente. Mas, o que leva as pessoas a seguirem esse caminho?

A jornalista Heloísa Garcia sempre amou trabalhar e nunca se habituou a atuar em apenas uma função. Mas, foi em 2015, ao descobrir um problema de saúde, que aos poucos sua vida de CLT foi se tornando uma realidade cada vez mais distante, dando espaço às possibilidades do empreendedorismo.

Heloísa Garcia (Nathalia Alcântara, Jornal Midiamax)

Ao descobrir ser intolerante a glúten, leite e açúcar, Heloísa precisou mudar toda a sua alimentação. Nesta necessidade ela, que não tinha experiência nenhuma na cozinha, começou a se aventurar e testar receitas que condiziam com as novas necessidades de sua dieta. Assim, nasceu o DG Café, a 1ª cafeteria sem glúten e proteína do leite de Mato Grosso do Sul.

“Fui me aventurar na cozinha e me apaixonei. Ainda em Corumbá meus colegas me pediam pra fazer bolos sem leite ou trigo pra receber convidados com essa restrição e acabou dando super certo. Quando voltei a Campo Grande em 2017, nem pensei em voltar pro jornalismo, fui direto pras panelas”, lembra a jornalista, que até então nunca tinha se imaginado empreendendo.

Em 2018, Heloísa decidiu abrir uma cozinha industrial. Por seis meses deu tudo certo, mas por questões pessoais, ela precisou deixar o local. Na dúvida se valia a pena, ou não, investir no novo negócio, ela conversou com o pai, que é consultor de vendas, que deu aquele incentivo que faltava para ela entrar de cabeça no negócio.

“Ele falou: ‘a empresa está dando certo, a taxa de retorno, o seu ticket médio é muito bom’. E aí peguei emprestado dinheiro, fiz toda uma revolução na minha vida e em abril de 2019 inaugurei o espaço que estou até então”, lembra.

Desafios de empreender

Para a empreendedora, o mais importante antes de abrir o próprio negócio é garantir um capital de giro. Na sua opinião, caso tivesse juntado uma “graninha maior antes”, alguns sufocos teriam sido menores.

Lidar com os ‘perrengues’ diários também pode ser bem desafiador. Quando algo na empresa dá errado ou um aparelho quebra, Heloísa costuma brincar com os funcionários de que às vezes ela gostaria de ser a funcionária.

Para ela, o desafio em empreender é “apagar os mil incêndios que aparecem todos os dias”.

“Às vezes pode acontecer de você olhar lá, três boletos vencendo e você sem dinheiro pra pagar todos eles ao mesmo tempo. Então assim, a pessoa que quer empreender tem que ter muito jogo de cintura, porque ela não vai poder delegar problemas. Essas coisas são os chefes que resolvem”, pontua.

“Empreender exige muita responsabilidade e acaba sendo puxado. Quem quer seguir neste caminho precisa pensar bastante nisso antes de largar tudo, porque não é só glamour”.

Mas nem só de dificuldades se vive o empreendedor. Ver o negócio dando certo e as pessoas amando aquilo que é vendido e voltando com bons feedbacks é a maior satisfação que quem empreende pode viver.

“Eu gosto muito dessa loucura de ser a dona do meu próprio negócio. Você pode tomar todas as decisões. Aqui eu não tenho sócio, eu que escolhi o nome, eu que fiz a logomarca, aprovei os balcões, idealizei esse espaço”, conta.

Cafeteria DG Café – (Nathalia Alcântara, Jornal Midiamax)

Por que empreender?

Para Heloísa, trabalhar mais de 8 horas por dia sem receber horas extras foi um divisor de águas enquanto estudava a possibilidade de deixar a CLT para abrir seu próprio negócio.

Hoje, embora o trabalho não tenha diminuído e todas as decisões necessárias para crescimento da empresa sejam de sua responsabilidade, todas as horas trabalhadas são retribuídas, seja financeiramente, seja vendo a alegria de quem tem restrições alimentares consumindo alimentos gostosos sem preocupação.

Empreender exige coragem

Carolina Debus (Arquivo Pessoal)

A estilista Carolina Debus também é um exemplo de quem deixou a carreira CLT, após 18 anos, para se aventurar na jornada do empreendedorismo com uma marca própria de kimonos, a Ki.Monaria.

A ideia de empreender era antiga, já que ter uma marca autoral era seu sonho antigo. Mas, foi durante a pandemia, em um momento de transição de carreira, que ela decidiu concretizar esse objetivo.

“Comecei costurando kimonos para mim, para usar em casa naquele momento tão difícil que foi a pandemia. Eu queria uma peça que fosse confortável e que trouxesse a sensação de bem-estar e aconchego”, explica.

“Aos poucos, as peças começaram a despertar o desejo de outras mulheres próximas a mim e sem hesitar, comecei a fazer kimonos para cada uma delas. Aos poucos a Ki.monaria foi ganhando forma e se tornando um negócio”, lembra a empresária.

Determinação é a chave do negócio

Carol conta que se deparou com diversos desafios ao decidir empreender, principalmente em relação à gestão de negócio, como a contabilidade, o planejamento, o marketing e plano de negócio.

“Inicialmente desenvolvi um produto muito bom, validei o mercado e aí sim, parti na busca de conhecimento para que a empresa ganhasse uma base sólida. Desde a criação da marca, eu venho aprendendo diariamente coisas novas, pois conforme a empresa vai evoluindo, os desafios e os objetivos mudam e precisamos estar sempre atualizadas”, afirma.

Para enfrentar tudo isso, é importante ter determinação e se lembrar de que o empreendimento se trata de um sonho e que as dificuldades podem te levar muito mais longe. Ter coragem e estudar muito é essencial neste processo.

“Cada kimono que crio é uma expressão da minha paixão pela moda autoral e pelo slow fashion, mas também é um reflexo da minha própria jornada de profissional. Ver as peças despertando o desejo e a confiança em outras mulheres é incrivelmente gratificante e inspirador. A marca não é apenas sobre roupas, é sobre empoderar mulheres, celebrar a diversidade e promover a autenticidade”.

Carol com peças da Ki.monaria (Reprodução, Arquivo Pessoal)

Ponderar antes de empreender

Segundo Camila Marques, advogada especialista em direito do trabalho e presidente da Comissão da Advocacia Trabalhista, empreender é uma ótima forma de trabalhar, se desenvolver e crescer em diversos aspectos, inclusive financeiramente, mas esta é uma decisão que requer persistência, paciência e muito preparo.

“Penso que o trabalhador deve ponderar o custo benefício da opção, colocar realmente na balança os prós e contras e procurar começar já informado e preparado (se possível)”, explica a especialista.

“Sair da vida de receber um fixo que, independente de como foi o mês, estará com certeza na conta, para ir para uma realidade que talvez demore um pouco para dar retorno deve ser algo bem pensado e planejado”, acrescenta.

Por isso, para migrar de um trabalho com carteira assinada sem atritos, e obter sucesso com um negócio estruturado, é fundamental ser realista e escolher um setor em que suas habilidades e pontos fortes possam contribuir; testar suas ideias; fazer seus planos de negócio e marketing; e ter um bom capital inicial.

Benefícios que podem ser impactados após a formalização como MEI

Após a formalização como MEI, alguns benefícios poderão ser impactados, inclusive cancelados, como a aposentadoria por invalidez e auxílio-doença ou salário maternidade.

Já seguro desemprego, BPC-LOAS, Prouni e FIES, que são benefícios assistencialistas, também poderão ser cancelados, a depender de alguns critérios do programa.

Benefícios que não serão cancelados:

  • Aposentadoria especial por insalubridade, idade ou por tempo de contribuição;
  • Fundo de garantia por tempo de serviço (FGTS);
  • Programa de integração social (PIS);
  • Pensão por falecimento do cônjuge/filho;
  • Pensão por falecimento dos pais;
  • Pensão recebida por tutor de menor de idade, por morte do responsável.

E para quem deseja ser PJ?

Para trabalhar como pessoa jurídica também é necessário fazer ponderações antes de entrar de cabeça nessa nova jornada. Isso porque a principal diferença entre CLT ou PJ é a relação de trabalho entre contratado e contratante.

No regime CLT, o trabalhador possuirá uma série de benefícios, mas terá um salário líquido menor devido aos descontos. Além disso, deverá se adequar a diversas obrigações, como horários definidos pela empresa, férias acordadas e uma menor autonomia.

Já em regime PJ, o salário líquido é maior, porém é responsabilidade do trabalhador pagar por todos os benefícios. Em contrapartida, o profissional terá maior flexibilidade na carreira, definindo seus próprios horários e métodos de trabalho.

Por essas diferenças, calcular e avaliar os pós e contras é fundamental para não haver arrependimentos futuros.

PJ e situações que caracterizam vínculo empregatício

Segundo a advogada, quando se contrata a prestação pessoal de um serviço em que se tem salário sob ordens, habitualidade e subordinação, isso se configura em vínculo empregatício, conforme o artigo 3° da CLT, mesmo o contratado sendo PJ.

Nessa condição, o empregador precisa cumprir com algumas obrigações e encargos trabalhistas e previdenciários, como recolher o FGTS, INSS, pagar férias e 13°, assinar carteira de trabalho, entre outros.

No entanto, muitos empregadores, no intuito de fugir destes encargos, acabam optando por contratar estes profissionais mediante emissão de notas fiscais. Essa modalidade, porém, pode ser arriscada, visto que caso seja feita uma fiscalização da inspeção do trabalho, “a empresa arrisca ser condenada em uma ação a pagar todas as verbas não pagas durante o contrato, como FGTS, INSS, 13°, etc”.

Isso porque, neste caso, o profissional com CNPJ estará exercendo a mesma função de um profissional em regime CLT, sem receber pelos direitos que também deveriam ser atribuídos a ele.

“A contratação do profissional PJ é possível, porém é importante que o contratante tenha ciência que esse trabalhador não deve ser tratado como se fosse empregado, com cobrança de horários, penalidades por não comparecer, etc. O contrato PJ não terá subordinação e terá autonomia para executar suas atividades, do contrário, poderá ser considerado empregado em eventual ação judicial”, pontua.

Confira a matéria anterior da série: