“A gente também se vê nessas mulheres da ”, resumem Lívia Lopes e Letícia Polidoro sobre o trabalho realizado com a Cufa (Central Única das Favelas) em e a própria história de vida das duas que se cruzam em muitos pontos. São mulheres negras que cresceram na periferia, tiveram acesso ao ensino superior com dificuldade e que hoje trabalham juntas para que as pessoas das favelas, especialmente, as mulheres líderes de família, tenham acesso ao mínimo para viver. 

É com a história de Lívia e Letícia que o Jornal Midiamax inicia uma série de reportagens especiais na semana de comemoração e reflexão sobre o Dia da Mulher, celebrado no dia 8 de março.

Lívia Lopes Corrêa é professora de arte e de dança, gestora em Mato Grosso do Sul da Cufa e presidente da Associação das Mulheres da Favela. Cresceu no bairro Iracy Coelho, em Campo Grande, participando de projetos sociais, envolvida com a dança desde menina. 

Aos 18 anos ficou indecisa sobre qual faculdade fazer, e incentivada por um professor de dança e até contra a família, escolheu cursar Artes Cênicas na UEMS (Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul). 

Mesmo com ensino gratuito, não foi fácil permanecer na universidade devido às dificuldades de locomoção, já que dependia de ônibus e da necessidade de trabalhar para ter uma renda e ajudar a família.

“No segundo ano recebi algumas bolsas, uma era de monitoria e não era muito, acho que recebia uns R$ 200 para monitorar os alunos e recebia R$ 400 de PIBID, que conseguia dar uma renda e ficar mais envolvida na faculdade porque no primeiro ano fui muito mal por conta do trabalho”, resume Lívia sobre a importância de incentivos para a permanência de alunos em universidades públicas. 

É professora desde 2016 em uma escola municipal no bairro Dom Antônio Barbosa e conta que é apaixonada por lecionar. Além disso, também dá aulas de danças urbanas e se encantou anos atrás pelo Twerk, ritmo focado na dança dos quadris e rebolado. 

“Comecei a aprender tudo online porque aqui em Campo Grande não tinha. Não é só rebolar, eu quero que a pessoa entenda que é o corpo dela, o quadril dela, mover a pélvis. É um tabu a gente mexer a pélvis, então é um treino de entender o movimento e seu corpo”, ela resume sobre as aulas “Treino da Raba”, em que ensina o Twerk.

Já no caso de Letícia Polidoro, formada em assistência social e presidente da Cufa Campo Grande, ela nasceu no , cresceu na periferia de , chegou a Mato Grosso do Sul na adolescência e garante que não troca a Capital por nenhuma outra cidade. 

“Eu costumo dizer que, quando vou na comunidade, eu costumo ver a minha mãe ali. Lutando e tentando sobreviver. Não é simplesmente ir lá e atender, é sobre mostrar que cheguei em um lugar e vocês também podem”, ela afirma. 

Letícia e Lívia trabalham juntas na Cufa (Central Única das favelas). (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

Letícia se casou, teve dois filhos, se separou e depois de oito meses da filha mais nova ter nascido decidiu ir atrás do sonho de fazer faculdade. Entrou em assistência social em uma universidade privada e enfrentou muitas dificuldades no processo até obter o diploma em 2018. 

Nos primeiros semestres, ela pagava integralmente a mensalidade de R$ 1,2 mil e vendia, escondida, salgados na faculdade. Até o fim da graduação, Letícia passou por dificuldades na vida pessoal que a levaram a trancar a faculdade por um ano e meio. A mãe dela faleceu e, assim, perdeu parte da rede de apoio para continuar a frequentar as aulas. 

“Eu volto a estudar depois com apoio do meu padrasto dizendo que eu ia terminar a faculdade. Ele cuidou das crianças no noturno enquanto eu estudava. Eu digo que o estudo mudou a minha vida, vira uma chavinha, eu fui a primeira da minha família a se formar na universidade”, ela conta orgulhosa.

Letícia conta hoje que não sabe como conseguiu conciliar o trabalho, casa, maternidade e estudos, e que por um tempo até trabalhou com o padrasto em casa no ramo de sapataria para que pudesse acompanhar a rotina das crianças. 

“Eu consigo trazer isso para as crianças, dizer que amo os dois, mas que é difícil ser mãe. É gratificante ver os dois grandes, com saúde, estudando. Eles são os meus maiores orgulhos e eu criei eles quase sozinha, contei com ajuda só do meu padrasto e da minha irmã, mas não deveria ser assim”, ela relata.

Projeto social

Precisamos ter uma política pública para que as pessoas saiam da miséria. A gente já atendeu uma mulher que ficou três dias sem comer, a Letícia foi entregar a cesta básica e a mulher estava tremendo de

Essa fala da Lívia representa parte do serviço prestado pela Cufa, uma ONG que com a ajuda de voluntários realiza a entrega de cestas básicas nas 39 favelas mapeadas pela Cufa na Capital, estabelece parcerias com órgãos públicos para levar até a periferia a prestação de serviços (como a emissão de CPF), organiza eventos culturais, além de outras ações. 

O serviço social sempre esteve presente nas vidas de Letícia e Lívia. A mãe de Letícia realizava anualmente uma confraternização na periferia onde moravam. Depois que a matriarca faleceu, Letícia decidiu se responsabilizar pela ação. 

Recebeu muitas doações para a festa que acontecia todo final de ano e um tempo depois encontrou uma publicação da Lívia nas tentando captar voluntários e doações para a Cufa. 

Como tinha recebido muitas doações, entrou em contato e assim as duas se conheceram e fortaleceram a rede de membros da Cufa em Campo Grande. 

Já no caso de Lívia, ela diz que desde menina participava de projetos sociais que aconteciam no Iracy Coelho. Quando precisou sair do bairro e ir para o centro para o serviço e até a universidade, ela não se conformou que para ter acesso à cultura, como ela teve, era preciso pagar. Foi ali que tomou a decisão de se envolver com outros projetos sociais além da dança e ingressou na Cufa em 2019. No início, ela era mais envolvida com projetos culturais nas favelas, mas com o tempo o serviço foi mudando.

Desde lá, foram muitos desafios e ela até se emociona durante a entrevista quando relembra como foi o início do trabalhos na Cufa e como está a estruturação atual. 

“Na nossa primeira compra de alimentos eu e a Letícia já chegamos a chorar dentro do mercado porque foi muito gratificante ver aquele carrinho cheio de alimentos e que deu para montar 60 cestas básicas, o que pra gente era muita coisa na época. Essa evolução, a gente conseguir 1,5 mil cestas básicas, ver a Letícia no corre e fazendo parcerias com as outras instituições, é muito gratificante”, ela diz. 

Lívia conta que ama os projetos que faz, desde de dar aula, estar na favela ou de dar aula de artes. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

As meninas reforçam que a fome em Campo Grande não mudou desde que começaram as ações sociais e que o trabalho que era reservado às favelas agora também chega até as casas de alvenaria nos bairros. 

“Às vezes, a gente sente o peso da culpa porque não conseguimos ajudar mais as pessoas. Vem cestas, a gente entrega e vem mais pessoas pedindo, a pessoa pedindo pelo amor de Deus e a gente infelizmente precisa dizer que não tem”, lamenta Lívia. 

Além disso, Letícia demonstra a frustração de às vezes não conseguir atender a todos ou do trabalho árduo ser reduzido a quase nada depois de pouco tempo. 

“Uma vez eu liguei para a Lívia e disse que o nosso trabalho é enxugar gelo, eu fiquei frustrada porque a gente ajudou a arrumar os barracos das pessoas e no domingo seguinte choveu e estragou tudo”, relembra Letícia, que cobra do poder público políticas mais efetivas para atender essa população. 

Mulheres e racismo

Letícia e Lívia mostram que o trabalho de liderança nas favelas é feito majoritariamente por mulheres negras, que cuidam do barraco, dos filhos, da comunidade e não perdem o desejo de sair daquele espaço e proporcionar condições melhores para a família. 

“As mães entram em contato pedindo um brinquedo, um caderno ou mochila para estudar porque a escola ainda não deu. É difícil chegar nesses lugares e não se emocionar. Nessas mulheres a gente vê muita força, mulheres organizadas, humildes e que ainda são muito estigmatizadas pelo preconceito de morarem em favelas”, pontua Lívia. 

A Cufa contabiliza na base de cadastro 36 mil mães, além de mais de 9 mil crianças vivendo em favelas de Campo Grande.

O preconceito mencionado vai desde o olhar torto para a mulher negra que com roupas humildes entra no ônibus para mais um dia de trabalho a até entrevistas de empregos em que são descartadas por não terem documentos ou a formação necessária.

Letícia se classifica como “vencedora” e diz que alcançou sonhos mesmo em meio às dificuldades. (Foto: Henrique Arakaki/Jornal Midiamax)

“Muitas vezes essas mulheres têm a autoestima abalada. As pessoas têm o estereótipo de que na favela tem bandidos, mas as pessoas têm que lembrar que antes deles comerem o pão, o povo da favela já tá trabalhando. Inclusive, a gente não fala mais ‘comunidade', é ‘favela'. As pessoas precisam começar a entender a força dessa palavra”, garante Letícia. 

Ela ainda pontua que tenta trabalhar a autoestima dessas mulheres diante do racismo e gordofobia, já que ela mesma é uma mulher negra e gorda que sabe como é passar por situações de preconceito. 

“O que me pega mais são os médicos quando faço uma bateria de exames e eles ficam surpresos que não tem nada. Eu sempre recebo esse tipo de comentário ‘nossa você tem um rosto tão bonito, você não quer emagrecer?”, eles questionam. 

Porém, Letícia garante pelas palavras na entrevista e nas postagens que faz nas redes sociais que é feliz e confortável com o corpo que tem e deseja que as mulheres ao seu redor, seja da família ou das favelas, se sintam da mesma forma. 

“A gente vivencia todos os dias o racismo ou a gordofobia, mas eu não deixo passar mais. Quando morava em São Paulo não tinha esses pensamentos, mas depois da universidade mudei. Eu me posiciono mais agora”, ela garante.