‘Cuidam nossos passos, mas não vivem as nossas dores’, desabafa indígena vigiada por jagunços em MS

Sem comida na panela, moradora da retomada Ñu Vera Guassu chora ao falar da miséria que assombra mais de 300 famílias e foi denunciada no Debate Midiamax

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Dona Rosana é uma das moradoras das 7 retomadas de Dourados (Fotos: Marcos Morandi, Midiamax)

Morando em um barraco de cinco metros quadrados, com paredes feitas com pedaços de telhas de eternit quebradas e telhado de lona preta amarrada em sacos de areia, Rosana da Silva, de 47 anos, ainda acredita que um dia a vida vai lhe sorrir.

“Perdi a esperança na Justiça dos homens, mas ainda acredito em Deus”, diz com lágrimas nos olhos, a indígena que lidera uma família de quatro filhos que sobreviveram após a morte do mais velho, que teve o pescoço quebrado em uma briga. Ela vive em um dos lotes da retomada Ñu Vera Guassu, área vigiada por jagunços armados.

A área é a mesma onde vive o candidato ao Governo de Mato Grosso do Sul Magno Souza (PCO). A miséria e violência que permeiam a retomada foram denunciadas pelo candidato durante o Debate Midiamax, no último dia 19. Os seguranças privados armados que se utilizam de estrutura pública para vigiar os indígenas foram assunto de matéria publicada na semana passada pelo Midiamax.

Durante uma manhã chuvosa e com a lama vermelha ainda escorrendo, Rosana recebeu a reportagem do Midiamax. Já era quase hora do almoço, mas na pequena cozinha improvisada em um cubículo anexo ao barraco, havia apenas uma fumaça que saía da chapa de ferro colocada sobre dois tijolos de oito furos.

“Fiz um café com um pouco de pó que ganhei de uma vizinha esses dias, mas não tenho o que cozinhar para o almoço. Guardei um pouco do feijão e alguns pedaços de mandioca que a gente planta aqui, para comer na janta”, relata dona Rosana, ao explicar que ainda não era fim de mês, mas a cesta básica que recebe já tinha acabado.

Sem ter o que por na panela, fogo apagou na cozinha improvisada, (Foto: Marcos Morandi, Midiamax)

“Quando fome a aperta o jeito é pensar em Deus e ela passa.  Às vezes demora e nem sempre isso funciona, mas a vida que a gente leva aqui nos deixa cada vez mais calejados. Aprendi a me virar desde que era criança e acabei ensinando isso para os meus filhos. Hoje a panela está vazia, mas amanhã pode ser que não”, diz a indígena que é evangélica e acredita que a fé também alimenta.

Questionada por que não matava uma das galinhas que ciscavam pelo terreno, dona Rosana respondeu: “Se fizer isso, ficaremos sem ovos. Apesar de que no momento, nem botando elas estão. Mas tudo tem seu tempo e agora o que nos resta é esperar e contar com ajuda de quem está lá em cima [no céu e não nas caixas d’águas]. Ele não nos abandona”.

Invisíveis em retomada

A respeito dos olhares indesejados dos jagunços, Dona Rosana já disse ter se acostumado. “A coisa já foi bem pior. Sei que eles cuidam dos nossos passos, mas também sei que eles não enxergam as nossas dores. Nos acusam de bêbados, mas não são capazes de saber se temos alguma coisa na panela hoje”.

Além de não confiar na Justiça, que segundo ela já deveria ter feito alguma coisa para “devolver a terra para os índios’, disse que também não acredita mais em políticos. “Ontem mesmo passou um aqui, mas não quis nem descer e pediu para que me entregassem uns papeis, que usei com gravetos para acender a lenha do fogão”.

A retomada Ñu Vera Guassu é uma das sete áreas que estão sob litígio e que fica localizada às margens da Perimetral Norte, via que dá acesso a Dourados, Itaporã, Ponta Porã e Campo Grande. “Estamos há poucos quilômetros da segunda maior cidade de MS. Eles nos observam, mas ao mesmo tem fingem que não nos vê”, diz um vizinho de Dona Rosana.

O local onde a indígena vive fica nas proximidades das aldeias Jaguapiru e Bororó. Entretanto, em dias de chuva a estrada fica quase intransitável.

“Hoje, por exemplo, se eu quiser sair para pedir ajuda de alguém na cidade não é possível. A pé, de bicicleta ou até mesmo de carroça fica muito difícil”. Além da Ñuvera Guassu,  a área é formada por outros acampamentos batizados Ñu Verá, Ñu Verá Guassu, Ñu Verá 1 e 2 e Awaeté 1 e 2.

Pobreza extrema reflete realidade dos moradores das retomadas (Foto: Marcos Morandi, Midiamax)

Intimidações se arrastam por anos

A reportagem do Midiamax esteve na área que forma as sete retomadas na última quarta-feira (21) e ouviu relatos de moradores e lideranças indígenas, de que as pressões e intimidações contra os moradores são frequentes e se arrastam há mais de dois anos. Segundo eles, os seguranças privados contratados pelos fazendeiros que disputam a posse da terra, passaram a utilizar as caixas d’águas como se fosse um observatório.

“Sempre tem alguém lá em cima armado, olhando para os nossos lotes. A gente se sente como se estive em um monitoramento, coletivo como se fosse gado no meio do pasto. De lá eles vigiam ossos passos”, contou um dos moradores da retomada Aratikuty, onde mora o candidato a governador Magno Souza, cuja candidatura denuncia ainda mais as mazelas dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul.

Para se proteger das tempestades, indígena amarrou lona entre sacos de areia e telhas quebradas

Miséria atravessa décadas

Passado mais de dois anos da pandemia do coronavírus que também assolou as aldeias, nada mudou. As dificuldades continuam batendo às portas das casas, que na maioria delas ainda abrigam até 9 pessoas em um único cômodo.

Considerada a mais populosa da Reserva Indígena Federal de Dourados, na Aldeia Jaguapiru que em junho completou 120 anos e também na Bororo, os problemas vivenciados pelas retomadas não são diferentes e atravessam décadas.

Apesar dos problemas que atravessam décadas, como a falta de água potável e moradias, os indígenas celebraram os 120 anos de fundação, com danças festivas e rituais sagrados na Casa de Reza, que já foi incendiada por intolerância religiosa.

Historicamente a Reserva Indígena de Dourados foi criada em 1917, pelo antigo SP (Serviço de Proteção ao Índio). Entretanto, há relatos de que Aldeia Jaguapiru já existia há 15 anos antes, em uma área bem mais extensa que os 3,6 hectares atuais que abriga ainda a Aldeia Bororó, com povos descendentes dos Guarani Kaiowá, com quase 20 mil habitantes.

“É muito triste ter que ficar cobrando as autoridades dos nossos direitos. Mas precisamos dizer que os anos vão se passando e os nossos problemas continuam cada vez mais evidentes. Parece que ninguém nos enxerga. Chega de descaso, exigimos respeito”, desaba o cacique Getúlio Juca de Oliveira, que recentemente perdeu a neta, assassinada pelo ex-namorado, um jovem que também morava na aldeia.

Na chuva, vias que cortam os lotes ficam praticamente intransitáveis (Foto: Marcos Morandi, Midiamax)

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