Ouvir o sinal tocar, ir para o recreio, compartilhar material com os amigos e sentir tensão momentos antes de começar uma prova. Essa é a realidade de milhares de brasileiros que frequentam o ensino regular. No entanto, o que é rotineiro para uns, é a maior conquista para outros. Com boletim nota 10 e o sonho de aprender a ler e a escrever, idosos inscritos na EJA (Educação de Jovens e Adultos) provam que não há idade limite para voltar a estudar em . Sujeitas a inúmeras dificuldades que ocasionaram a evasão escolar, essas pessoas retornam à escola com sonhos, objetivos e, principalmente, muita saudade.

De acordo com os dados de 2021 da organização Todos Pela Educação, cerca de 244 mil crianças e adolescentes entre 6 e 14 anos estavam fora das escolas no Brasil. Os números registraram um crescimento de 171,1% na evasão escolar em relação a 2019.

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(Arte: Jornal Midiamax)

O levantamento foi produzido com base em informações da Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) do segundo trimestre de 2021, e publicados na nota técnica “Taxas de atendimento escolar da população de 6 a 14 anos e de 15 a 17 anos”. A consulta é promovida pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Atualmente, o Brasil conta com aproximadamente 213,3 milhões de habitantes. Segundo levantamento da Unesco, desse total, mais de 12 milhões são analfabetos, a maioria com idade acima de 15 anos. 

Outra pesquisa apresenta que a taxa de analfabetos no Brasil tem caído, mas ainda está em 6,6%. A expectativa do PNE (Plano Nacional de Educação) é que essa taxa seja zerada até 2024. Mas afinal, por que é tão importante falar sobre isso? 

Educação, um direito fundamental

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, diz o artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

Assim, aprender a ler e a escrever é a base para o desenvolvimento intelectual e cultural do ser humano. Além disso, ao ser alfabetizada, a pessoa pode ampliar suas possibilidades econômicas, se profissionalizar e conseguir alcançar melhores postos de emprego. 

Para quem passou anos longe da escola, viver a experiência dos estudos novamente é um grande incentivo para o autodesenvolvimento. Pensando nisso, o Jornal Midiamax visitou a Escola Oswaldo Cruz, no Palmira, para retratar a realidade de quem saiu da escola há muitos anos, mas voltou com bravura para terminar os estudos. O espaço – que recebe apenas alunos inscritos na EJA – atende nos períodos matutino, vespertino e noturno.

Conheça, agora, histórias inspiradoras de pessoas acima dos 60 anos que, depois de muito tempo, retomaram os estudos por meio da EJA em Campo Grande.

Eunice Benedito da Cruz

Eunice Benedito da Cruz tem 63 anos de idade. Mãe e dona de casa, ela afirma ter voltado para escola por incentivo da filha que é PcD (Pessoa com Deficiência), Mirian Benedito Cruz, de 27 anos. Ambas moram no bairro Vila Sílvia Regina, em Campo Grande. 

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Eunice e Mirian estudam na mesma escola (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

Natural de Castilho, no interior de São Paulo, Eunice veio para Campo Grande aos três anos de idade com a mãe, já falecida. Conheceu a escola aos sete, mas acabou saindo posteriormente. Ao Jornal Midiamax, a veterana contou que se sentiu motivada para entrar na escola de novo por causa da filha. Além disso, sua matéria favorita é matemática, uma vez que deseja aprender a contar dinheiro. 

“O que eu mais quero aprender é matemática porque eu não sei muito […] É muito legal, eu quero aprender. Tenho dificuldade em matemática, mas eu gosto”, revelou Eunice. Com vários colegas na sala de aula, ela se emociona ao saber que divide esse momento ao lado da família.

Já Mirian tem deficiência intelectual e entrou na escola aos quatro anos de idade. Inscrita na EJA igual à mãe, desde criança está estudando. 

“Gosto de português, geografia, história e física”, disse. Questionada sobre o desempenho escolar, ambas se orgulham ao falar que tiram notas boas. Situação semelhante aconteceu com Mariedo Socorro. Mãe de duas jovens PcDs, ela entrou na escola para cuidar das filhas e, também, retomar estudos na Capital.

Mariedo Socorro

Mariedo Socorro nasceu em Exu, cidadezinha localizada em Pernambuco. Trabalhadora doméstica por muitos anos, veio para Campo Grande em busca de oportunidades de trabalho junto com a família por causa de inúmeras dificuldades financeiras. 

Após mais de 40 anos longe da escola, seu primeiro dia de aula foi na semana passada, na quinta-feira (10). Aos 66 anos de idade, ela afirma estar extremamente feliz de poder acompanhar as duas filhas, além de voltar ao ambiente escolar. 

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Mariedo Socorro, Daniele e Franciene (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

Mariedo é mãe adotiva de Daniele Aparecida Marques Antonio, 21 anos, e Franciene Antonio, de 24. Ambas são PcD. Ao todo, Mariedo teve 11 filhos, mas cinco já morreram. À equipe de reportagem, a mãe afirma que sempre deixava as filhas na escola e ficava na rua esperando para depois buscá-las. Foi a partir disso que recebeu convite e resolveu estudar também. 

“Elas entraram quando tinham uns cinco aninhos, porque eu tinha levado elas ao médico e elas são especiais. Então, o neuro já meu deu o encaminhamento para todo o tratamento delas, deu encaminhamento para a escola especial”.

As jovens ficaram até os 17 anos na outra escola, até que foram transferidas recentemente para a Oswaldo Cruz. 

“A escola me deu muita força porque não é fácil. A gente, humilde, não tem recurso. E foi esse o desenvolver delas na escola […] elas são outras meninas, aprenderam muito a ler e a escrever […] eu venho trazer elas e fico aqui amparada, estudando também […] é maravilhoso, a gente tem muitas coisas que não sabe mesmo. Não tem preço voltar para a escola, aprender, é da gente chorar. Faz diferença”, afirma Mariedo, emocionada. 

Ao recordar da infância, a veterana afirma que conseguiu concluir a quarta série com muito esforço, uma vez que frequentava a escola a cada três meses. Hoje, sua maior dificuldade é a escrita. Nas aulas, treina bastante a caligrafia, além de amar as matérias de português e ciências. Enquanto isso, Franciane já sabe ler, escrever e sonha em cursar uma faculdade. 

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Daniele gosta de desenhar na escola (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

“Eu me sinto muito bem quando venho para a escola, eu amo estudar. Eu sempre tive vontade de aprender matemática e outras matérias. Na escola, vamos dizer que é o nosso segundo lar. Eu amo estudar, quero aprender e crescer na vida, se Deus quiser. Quero ser enfermeira e sei que vou conseguir”, afirma Franciane.

Já Daniele tem preferência para a área artística. “Gosto de pintar e desenhar”, diz feliz.

Quem também não ficou para trás e ingressou na escola por meio da EJA foram os irmãos Rosa. Criados desde pequenos nas lavouras com os pais, eles não conseguiram frequentar o ensino regular. Depois de sentirem na pele as consequências da falta de estudos, eles, então, voltaram todos juntos para a sala de aula.

Irmãos Rosa 

Ilza Magna Nunes Rosa, 76 anos, Erli Nunes Rosa, 76 anos, Eurípedes Nunes Rosa, 74, e Jacira Nunes Rosa, de 72. Todos os quatro irmãos estudam juntos na Escola Oswaldo Cruz. Afastados da escola quando eram crianças para ajudar os pais nas colheitas das lavouras, eles provam que nunca é tarde para retomar os estudos. 

Naturais do interior de São Paulo, vieram para Campo Grande ainda bebês com os pais, que trabalhavam nas fazendas da região. Eles chegaram a entrar na escola quando crianças, mas sempre eram retirados para ajudar no trabalho rural. Ao Midiamax, todos afirmam que os pais não tinham condições de mandar eles para a escola, mas que sempre deram educação.

Erli, Eurípedes, Ilza e Jacira (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

 

“Antigamente, as crianças trabalhavam na roça para ajudar os pais. Então, a gente estava em casa e chegava a época de recolher algodão, amendoim. A gente tava na escola, nosso pai nos tirava para trabalhar. Então foi assim que a gente cresceu”, recorda Jacira.

Apesar de todos eles terem ingressado no mercado de trabalho, afirmam que perderam boas oportunidades devido à falta de estudos. Jacira trabalhou como cozinheira de buffet, enquanto Ilza na limpeza de um hospital de Campo Grande. Já Erli atuou por muito tempo como motorista de ônibus, enquanto Eurípedes também trabalhou como motorista. 

“Fez muita falta pra mim a leitura porque eu trabalhei em hospital e não podia pegar um cargo bem para ganhar melhor. Não pude porque não tive leitura”, disse Ilza. Ela trabalhou na limpeza da unidade de saúde até se aposentar. 

Hoje, todos os irmãos estão aposentados e voltaram para a escola para aprenderem o básico. Cada um tem um objetivo diferente. Para eles, a escola é um céu.  Jacira, por exemplo, sonha em conquistar sua carteira de motorista para se locomover com autonomia. 

“O que acontece é que eu consigo ler, mas tem vezes que eu não consigo interpretar o texto […] amei os professores, muito educados, traz umas palestras, dá liberdade para perguntar. Então, eu vi muita coisa boa aqui que me comoveu a ficar aqui dentro da escola”.

A situação de Jacira é a mesma vivenciada por outros brasileiros considerados analfabetos funcionais – a incapacidade de, mesmo sabendo ler, compreender e interpretar textos, ideias e operações de matemática. Segundo estudos do Pnad, estima-se que 29% dos brasileiros sejam analfabetos funcionais. Essas pessoas encontram dificuldades em encontrar emprego, se qualificar na carreira e até mesmo em organizar a vida e as finanças pessoais.

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Ilza quer estudar para conseguir ler livros, jornais e revistas (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

O mesmo é observado por Ilza. Por muitos anos trabalhando numa maternidade, diz que perdeu muitas oportunidades por não ser alfabetizada. Por isso, se inscreveu na EJA.

“Eu já estou numa certa idade, mas ainda quero pegar um livro, ler, escrever. Por isso eu vim pra cá [escola]”, contou.

Apesar disso, foi com o próprio sustento que Ilza conseguiu levar os filhos para escola. Hoje já adultos, eles incentivaram a mãe a voltar a estudar, além de ajudar ela com as tarefas.

“Eu acho muito gostoso, eu pelo menos refresco a minha cabeça mais um pouco. Aqui eu vou aprender porque minha intenção é aprender a ler e a escrever, só isso aí. Sabendo mesmo que pouco a ler e a escrever, já tá ótimo”, se emociona Ilza. 

Eurípedes se aposentou como motorista e, então, decidiu voltar à escola para aprender o que deixou de vivenciar na infância. Para ele, saber ler e escrever é imprescindível para fazer coisas básicas do dia a dia. 

“Nunca é tarde, ficar em casa não tem o que fazer. Então, eu venho e alguma coisa que eu aprender mais, fica melhor pra mim […] Eu quero operar os caixas [eletrônicos], meus pagamentos, a Internet, aplicativo e esses negócios modernos que estão chegando agora”, afirma o aposentado. 

Enquanto isso, Erli comemora ser o seu último ano antes de concluir o pela EJA. “Entrei aqui por intermédio da minha irmã para me aperfeiçoar mais, porque a gente nunca aprende de tudo. Sempre tem mais coisinha para aprender. É muito bom esses negócios, sobre amizade, muitas coisas novas. Isso pra gente é muito importante, a gente fica mais animado […] é meu último ano aqui, mas pra mim já está ótimo. Está uma maravilha”, finaliza Erli. 

Evasão Escolar – um problema social

A evasão escolar é quando um aluno deixa de frequentar as aulas, ou seja, abandona o ensino em decorrência de qualquer motivo. Normalmente está atrelada à condição financeira de uma família. Assim, ela é vista como um problema social no Brasil.

Segundo Elen Maria de Castro Araújo Martins, coordenadora da Escola Oswaldo Cruz, a evasão escolar ocorre por conta da desistência dos alunos, que não acreditam nos próprios potenciais e têm outras ocupações. 

“Outras coisas que consideram prioridade e a escola vai ficando de lado. Trabalho, desânimo, descrença no potencial deles. A evasão é muito grande na EJA e a gente tenta combater de uma forma rotineira. Nós vamos em busca dos alunos, telefonamos, vamos às casas. Então, a gente faz tudo para mantê-los conosco porque senão a gente não consegue diminuir essa defasagem de idade, série e ano escolar”, reflete a educadora. 

Adesão à EJA em Campo Grande 

Segundo a (Secretaria Municipal de Educação), a EJA é destinada para alunos a partir dos 15 anos com defasagem de idade e série. O programa é oferecido pela Rede Municipal de Ensino (Reme) de Campo Grande  e possibilita a conclusão do ensino fundamental. 

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(Arte: Jornal Midiamax)

“A evasão é algo que não temos problema, pois nossos alunos são muito pequenos e temos índice de 1% de evasão, é mínimo (a maioria dos casos por mudança, pessoas que não fazem a transferência). Temos um serviço de busca ativa que funciona”, informou a assessoria de imprensa da Semed. Outro ponto importante é a baixa procura pelo programa após a pandemia, que afastou os alunos das aulas presenciais.

A pandemia reduziu inscrições na EJA

É o que os números apontam. Segundo dados da Semed, atualmente 713 pessoas estão matriculadas na EJA. Em 2021, eram 1732 alunos inscritos. Em 2020, eram 2504. Já em 2019, 3273 alunos matriculados.

“Nós temos 15 escolas que oferecem a Educação de Jovens e Adultos. Houve uma diminuição nessas matrículas após a pandemia. A EJA é uma possibilidade dos estudantes, das pessoas que queiram terminar o ensino fundamental e concluir seus estudos”, afirmou Sintia Câmara, técnica pedagógica da EJA em Campo Grande. 

Ainda de acordo com a especialista, é um programa muito importante para, posteriormente, terminar o ensino médio, o curso superior e ingressar no mercado de trabalho. 

“Temos casos de aluno que virou advogado, professor e todos estudaram na EJA. É uma oportunidade de terminar os estudos e caminhar para frente, e buscar outros sonhos e outras possibilidades”, conclui Sintia. 

Dessa forma, especialistas da educação afirmam que a defasagem ocasionada pela pandemia é um obstáculo a ser superado e que estão trabalhando para aumentar, cada vez mais, os inscritos no programa educacional em Campo Grande.