Há 141 anos identificada, mas com casos registrados há mais de 4000 anos, no Oriente, a hanseníase foi por muitas décadas uma doença marcada pelo estigma e o preconceito. Na década de 1940, no Brasil, os contaminados pela Mycobacterium leprae eram tirados de seus lares e condenados ao isolamento nos mais de 30 asilos-colônias, espalhados pelo Brasil, implementados no Governo Getúlio Vargas.

Em Campo Grande havia um desses abrigos. Localizado no extremo norte da Capital, o Hospital São Julião, aberto em 5 de agosto de 1941, acolhia e tratava pacientes acometidos pela hanseníase, doença que afeta a pele do indivíduo. No passado, chamada de lepra, era cercada de tabus, como por exemplo, a contaminação pelo toque. “Era extremamente segregado, eles [indivíduos com hanseníase] eram colocados em lugares que ficassem longe dos olhos da população”, conta o atual diretor-geral do Hospital São Julião, Cláudio Machado.

Com o avanço da Ciência, descobriu-se que com tratamento eficaz e diagnóstico precoce, a transmissão é interrompida e a doença curada. De acordo com a Sociedade Brasileira de Dermatologia, cerca de 90% da população têm defesa contra a doença.

Além de portadores de hanseníase, o Hospital São Julião recebia pessoas com transtornos mentais, chegando a ser conhecido como Sanatório São Julião. Logo nos primeiros anos de funcionamento, passou a sofrer com falta de recursos administrativos, o que deixou os pacientes à mercê da própria sorte, em situação de vulnerabilidade física e social. Em 1969, um grupo de voluntários italianos da Operação Mato Grosso chegou ao antigo leprosário e passou a administrar a instituição, recuperando não só a estrutura do local, mas a vida daqueles que viviam internados ali. 

Pacientes eram tratados e moravam no na propriedade do hospital. Foto: Divulgação/Hospital São Julião

Pacientes eram tratados e moravam na propriedade do hospital. Foto: Divulgação/Hospital São Julião

 

Neste cenário, em que pessoas eram internadas por tempo indeterminado, uma comunidade de familiares e amigos foi se formando ao lado do hospital, tão somente para facilitar as visitas. Devido ao medo de contaminação, os próprios parentes auxiliavam na manutenção do hospital. “Eles se colocavam aqui perto até para facilitar a locomoção”, explica Cláudio Machado.

Glória Silva estava entre esses familiares, que habitavam a região. Ela veio com os três filhos ainda pequenos, de Barra da Garça (MT), para cuidar de seu pai, Cícero Mendes Barbosa, em 1981. Portador de hanseníase, Seu Cícero chegou a Campo Grande, em 1978, para tratar da doença no São Julião, onde ficou internado por dois anos. 

Hospital deu origem ao bairro

A comunidade ao redor do hospital foi crescendo e recebendo novos moradores. Hoje, conta com mais de 69 mil habitantes, dispostos em 480 quadras e se chama Nova Lima.

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Alcides Bento Barbosa era hanseniano e foi um dos primeiros líderes comunitários do Nova Lima. Foto: Arquivo Familiar

Um dos primeiros presidentes da Associação de Moradores do bairro foi Alcides Bento Barbosa, filho de Seu Cícero, irmão de Glória e também portador de hanseníase. Hoje em dia, quem guarda as memórias da família é uma das filhas de Glória, Cláudia Regina Apolinário Silva, de 46 anos.

Moradora desde a infância, Cláudia vivenciou as dificuldades da formação do bairro e o preconceito em torno da hanseníase. “Há 40 anos, nós éramos rejeitados, porque quem morava no Nova Lima já era rejeitado por morar no Nova Lima e se você fosse familiar de hanseniano era pior ainda”, conta. Na época, o bairro não tinha serviços básicos como energia elétrica, água encanada, nem transporte público e escola. “Eu lembro que eu não entendia direito, mas eles [moradores] faziam muita coisa, queimavam pneus, brigavam para trazer ônibus para cá”, lembra Cláudia.

Entre os moradores que reivindicavam direitos, estava Maria Francelina Lopes, de 74 anos, que mora no Nova Lima há quase quatro décadas. Antes de se mudar para o bairro, ela morava na Vila Carlota com o irmão e, assim como Glória, também chegou ao local sozinha e com crianças pequenas. “Resolvi comprar um lote para mim, procurei um senhor que vendia e ele disse ‘só tenho no Nova Lima’, falei ‘eu quero’, nem sabia que existia Nova Lima. Falei ‘eu quero lá então, é lá que eu vou fazer a minha vida, lá que eu vou criar as minhas filhas’”, conta Dona Francelina. 

Dona Francelina participou ativamente das lutas para melhorias no bairro. Foto: Marcos Ermínio
Dona Francelina participou ativamente das lutas para melhorias no bairro. Foto: Marcos Ermínio

 

Dono da água

Ela se recorda de uma das figuras mais importantes da história do Nova Lima, Seu Nicolau, proprietário de uma serraria da região e “dono da água”. “Era assim, a gente chegava no bairro e pedia a ligação de água para o Nicolau, os funcionários dele iam lá, olhava o lote, media os canos e colocava essas borrachas largas, grossas, e levava a água. Tinha o dia X para pagar, se não pagava de manhã, à tarde já tava cortada a água”, relembra Dona Francelina.

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O casarão onde Seu Nicolau morava há cerca de 60 anos permanece semelhante à época. Foto: Marcos Ermínio

Mesmo após a venda da caixa d’água do Seu Nicolau para a Sanesul (Empresa de Saneamento do Estado de Mato Grosso do Sul), que assumiu pelos próximos anos o tratamento e distribuição de água na região, Dona Francelina precisou carregar galões de água para suprir as necessidades da família. “Na época do encanamento, começou a aumentar os moradores e faltava muita água. Cansei de ir buscar água para as minhas meninas, para poder ter água para tomar banho, fazer comida e assim era a nossa vida aqui no bairro”, conta.

Ela também participou da luta por uma escola para a região, pois suas filhas precisavam se deslocar até o Centro da cidade para estudar. Foi então que, em 1985, a Escola Estadual Lino Villachá foi inaugurada. O nome homenageia um poeta, que passou a morar na década de 1950, com então 12 anos, no Hospital São Julião, com seus pais e três dos cinco irmãos.

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Nome da primeira escola do bairro é em homenagem a poeta que morou no São Julião. Foto: Marcos Ermínio

Foi nesta escola, ao longo de 30 anos, que Dona Francelina construiu parte de sua vida profissional. “Trabalhei na limpeza, aí fui inspetora, fui da biblioteca e fui da secretaria, terminei na secretaria. Fiz faculdade de Pedagogia também, porque de vez em quando os professores pediam para fazer substituição e eu fazia substituição”, explica. Ela também possui pós-graduação em Gestão Escolar e se alegra com as conquistas coletivas. “Temos escola boa aqui, do 5º ano até o ensino médio, com cursos profissionalizantes e hoje nós estamos bem”, afirma.

Cláudia estudou na E. E. Lino Villachá e recorda-se com carinho de Dona Francelina. “Ela foi uma das pessoas que nos viu crescer, as filhas dela cresceram junto com a gente”, fala. Entre as memórias da infância, recorda-se de uma das fases mais difíceis da família. Diante da falta de recursos financeiros, eles se alimentavam, muitas vezes, de um sopão oferecido em um Centro Espírita da região. “Essa sopa que eles davam em um lugar chamado centrinho, não me lembro se tinha nome, mas era um centro espírita. Na época do Dia das Crianças, eles traziam brinquedos e isso tudo assim, mexe com o passado, com a história. Não deixa de ser uma história linda, uma história de sofrimento, mas uma história também de luta, de vencer”, pontua.

O presidente do bairro monta cordas, pesos e outros equipamentos para realização das modalidades. Foto: Marcos Ermínio

 

A sobrinha do primeiro presidente do bairro, hoje é casada com o atual presidente, Pedro Domingos Faustino de Oliveira. Morador do Nova Lima desde meados de 1990, Pedro acompanhou muitas das mudanças e agora busca as melhorias que ainda faltam, como asfalto em todos os setores. Além disso, abre diariamente as portas da Associação de Moradores para atividades que são realizadas com o suporte da Funesp (Fundação Municipal de Esporte). “Hoje temos ritmo, pilates, judô, funcional, zumba, totalmente gratuito”, conta Pedro.

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Hospital celebra 80 anos neste ano. Foto: Marcos Ermínio

Região em desenvolvimento

O bairro que ficava afastado da cidade, agora integra uma área de constante crescimento. Novos bairros como Jardim Anache, Jardim Campo Belo e Tarsila do Amaral surgiram ao redor do Nova Lima, assim como condomínios de luxo e shopping center. 

O Hospital São Julião tornou-se referência na prevenção e reabilitação da hanseníase, assim como outras alterações dermatológicas, e também se destaca na assistência oftalmológica. Completando 80 anos em 2021, o espaço integra-se com o bairro não somente nos cuidados de saúde. “O hospital tem essa conectividade com a população, é muito utilizado para caminhada, corrida, atividades lúdicas”, conta o diretor-geral, Cláudio Machado.

As lembranças provocam lágrimas nos olhos e orgulho. Foto: Marcos Ermínio

 

Os moradores do Nova Lima celebraram, em maio deste ano, seis décadas de história do bairro. Com um passado recente de muito preconceito e isolamento, hoje contempla moradores novos e antigos, todos com a esperança de melhorias e novos investimentos. “É aqui que eu quero morrer, eu não quero sair daqui não. Eu amo esse bairro, é a minha história, é a minha vida. Eu tenho orgulho de dizer que eu moro aqui. Eu tenho orgulho de dizer que eu tenho essa bagagem comigo”, afirma Cláudia.