Funai sofreu cortes no orçamento e afirma dificuldades no auxílio

O governo federal indica ‘testar’ as mudanças em demarcações de terras indígenas, previstas pela Constituição Federal de 1988. Ao ‘elogiar’ a portaria 68 publicada pelo Ministério da Justiça – que alterou o sistema de demarcação – horas depois, com as reações de diversos grupos ligados a pauta indígena, o governo de Michel Temer (PMDB) voltou atrás e reeditou o documento. Na prática, a portaria cria um GTE (Grupo Técnico Especializado), e foi entendida por diversas entidades – entre elas MPF – como uma forma de “enfraquecer a Funai (Fundação nacional do índio) e paralisar as demarcações”.

A entidade, no entanto, já está enfraquecida. Isso porque o orçamento, em relação a 2015, sofreu uma redução de cerca de 40%, de acordo com a coordenadoria da pasta em Ponta Porã, distante 346 km da Capital. Em meio à imagem de desordem da Funai e do processo de demarcação, comunidades no interior de Mato Grosso do Sul passam fome e relatam ataques.

Na região de Coronel Sapucaia – distante 380 km de Campo Grande -, a comunidade Guarani e Kaiowá Kurusu Ambá é uma das mais afetadas pela fome. A Terra Indígena (TI) está com o processo ‘emperrado’ na Justiça. No local, funcionam três acampamentos, um deles alvo recorrente de ataques e queimadas. Gilmar, professor e uma das lideranças Kaiowá do tekoha – lugar onde se é -, relata com desespero a situação. Ele afirma que a Funai “não entrega cestas há 3 meses” e que as crianças correm risco de morte. Sobrevivem, de acordo com ele, bebendo água, e comendo farinha.

“Está passando muita dificuldade, as pessoas da comunidade, as crianças, estão passando sofrimento. As crianças estão quase morrendo, estão chorando muito. A cesta básica da Funai, não vem mesmo, já quase três meses. E ligamos lá e não está assim não, pra entregar cesta básica [sic], aí que o pessoal fica preocupado. Eu liguei pra todo mundo e falei: se não tem apoio, criança vai morrer”, afirma ele.

“As vezes uma pessoa tem um parente, em outro lugar da aldeia e liga pra eles pra trazer uma farinha. Ontem e também antes de ontem passamos sem comer. E as crianças choravam, tomavam só água. E a água, o pessoal tomando água quente”, complementa.

Os cultivos da comunidade, conforme explica, foram destruídos “a mando de fazendeiros”. “Eu plantei antes, e depois aconteceu um ataque dos fazendeiros e gradeou tudo, passou em cima e morreu tudo a mandioca, morreu também milho e batata. E o pessoal começou a plantar de novo, só que vai demorar muito pra colher né”, relata.

 

 

 

Ataques

Na última semana, denúncias de novos ataques a comunidades Kaiowá também surgiram. Coordenador da Funai em Ponta Porã, Élder Paulo Ribas da Silva conta que recebeu denúncia da TI Yvy Katu – na região de Japorã, distante 477 km da Capital -. As pessoas que vivem no local, cerca de 5 mil, ouviram tiros na madrugada do último sábado (21).

De acordo com ele, a polícia civil de Iguatemi esteve no tekoha, onde foram encontradas cerca de 45 cápsulas de bala. A situação demarcatória da TI também é um impasse. Em 2013 a terra foi homologada e a União reconheceu os 10 mil hectares como tradicionais para os Kaiowá. Ainda assim, uma das propriedades inseridas na terra, a fazenda Remanso, recorreu ao processo e provocou a suspensão da homologação. Os indígenas, então, ocuparam o território em resposta a demora judicial. Agora, Elder afirma que há possibilidade processo seja refeito.

O tekoha Pyelito Kue/Mbarakay – região de Iguatemi, 466 km de Campo Grande -, também teria sofrido ataques durante o final de semana. Elder, no entanto, afirma que a Funai não recebeu nenhuma denúncia formal. O tekoha integra outro imbróglio judicial. Pyelito Kue é um dos tekohas pertencentes à terra Guarani e Kaiowá Iguatemi Peguá I, que prevê, de acordo com os estudos de identificação e delimitação, 41 mil hectares. O processo é contestado na Justiça. O coordenador da Funai em Ponta Porã explica os indígenas – cerca de 240 vivem no local – são alvo de violências diárias. A situação provocou um acordo judicial, que concedeu a permanência dos índios em 100 hectares, com objetivo de cessar os ataques.

 

Yvy Katu, na região de Japorã (divulgaçãp/Cimi)

 

Atendimento às comunidades

A situação de desnutrição, falta de água e precariedade das comunidades no interior do Estado motivou uma reunião, em setembro de 2016, entre o Consea (Conselho nacional de segurança alimentar e nutrição), ligado à União; o MPF (Ministério Público Federal); Sedhast (Secretaria estadual de Direitos Humanos, assistência social e trabalho), Funai e o Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA). O jornal Midiamax teve acesso a ata da reunião. O documento mostra uma discussão entre as partes, que buscavam atendimento emergencial aos indígenas. Além disso, exigiram da Sedhast ampliação do auxílio do governo do Estado, o vale-renda indígena. As áreas ‘retomadas’, ocupadas, porém sem homologação, representam maior impasse.

“A Sra. Viviane Matias de Andrade da Silva, representante da sede da Fundação Nacional do Índio em Brasília, destacou a necessidade de incluir no debate as áreas de retomada que não estão tendo seus direitos sociais atendidos em função da situação territorial, demonstrando que o aspecto da regularização fundiária está se sobrepondo ao direito da pessoa humana”.

“Após a rodada de falas, a Sra. Elisa Cleia Pinheiro Rodrigues Nobre, Secretária da Sedhast, informou sobre a parceria do governo estadual com a Universidade de Brasília para a realização de um estudo sobre a situação dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul. Destacou que o governo estadual não foi convidado para compor a comitiva do Consea Nacional. O Sr. Francisco de Assis Floriano e Calderano, Procurador da República no estado do Mato Grosso do Sul, em Naviraí, mencionou Lei Estadual que prevê o atendimento de pessoas em situação de vulnerabilidade e que, apesar dessa previsão, os indígenas em áreas de retomada não tem sido atendidos em função da não regularização fundiária dessas áreas”, afirma a ata.

Um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) foi firmado entre o MPF em Campo Grande e o governo do Estado, para regularizar a entrega de cestas ‘a todas as comunidades do estado’.

“O Procurador reafirmou que este Termo de Acordo não estava sendo cumprido pelo estado em áreas de conflito e acampamentos e que a Sedhast em reunião realizada no dia 8 de agosto de 2016 justificou que o Termo de Acordo se referia somente a áreas regularizadas. A Lei Estadual em questão não faz distinção entre pessoas residentes em áreas regularizadas e não regularizadas. Diante disso, o Procurador questionou o governo estadual o porquê do não atendimento e do não cadastramento dessas famílias. Concluiu que o Termo de Acordo não está sendo cumprido por motivo discriminatório e que deverá sern executado em função da negativa do estado em cumpri-lo”.

“O Sr. Carlo Fabrizio Campanile Braga, Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul, concordou que não deve haver discriminação entre áreas demarcadas e não demarcadas. Justificou que houve corte orçamentário que afetou alguns programas estaduais e que, apesar disso, o programa atende cerca de 15 (quinze) mil indígenas. Informou que o governo estadual pretende ajustar o Programa Vale Renda por meio de uma proposta de regulamentação integral da Lei que contemple as áreas de retomada. Informou também que é necessário fazer um ajuste no cadastro utilizado pela Sesai”.

A titular do Consea teria criticado a insuficiência dos alimentos. “A Sra. Dulce Ribas, pesquisadora e conselheira do Consea Estadual, esclareceu… a cesta oferece 2(dois) kg de carne para 5(cinco) pessoas, o que se torna insuficiente para 30 (trinta) dias. Concluiu dizendo que a composição da cesta atual acaba causando outras doenças por não suprir todas as necessidades nutricionais”, declara o documento.

A representante do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA) afirmou, no documento “que o estado do Mato Grosso do Sul é o que apresenta as maiores dificuldades de logística no que se refere ao atendimento de indígenas acampados com cestas de alimentos”. “Esclareceu a diferença de natureza entre o Programa de Distribuição de Alimentos executado pelo MDSA e a distribuição de cestas executada pelo governo estadual do Mato Grosso do Sul. Informou que as cestas de alimentos distribuídas pelo MDSA é uma ação complementar e emergencial, mas que no estado a necessidade é de atendimento mensal, devido à alta vulnerabilidade”.

“A Sra. Maria Emília Lisboa Pacheco, Presidente do Consea Nacional, apontou como prioridades de atendimento emergencial as comunidades de Apycai, Nhanderu Laranjeiras e Guayviri. Em Nhanderu Laranjeiras, a comunidade está proibida de produzir alimentos e cortar lenha por ser uma reserva ambiental. Não há energia elétrica para o funcionamento das bombas dos poços e isso inviabiliza o acesso à água potável. Em Nhanderu Marangatu, existem cerca de 100 (cem) crianças que não frequentam a escola por falta de documentação”, explica a ata.

O que diz o governo do Estado – Elisa Cleia Pinheiro Rodrigues Nobre, titular da Sedhast, explicou que o governo levou cestas às comunidades em novembro e que a pasta não foi procurada, formalmente, com novos pedidos de auxílio.

“Em relação a essa questão específica desses indígenas que estão em área de retomada, nós estamos em uma tratativa desde setembro do ano passado. Nessas tratativas nós fizemos um acordo emergencial com a Conab [Companhia nacional de abastecimento], com os procuradores que estavam, Caisan [Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional] e Funai, de que nós faríamos atendimento emergencial com atendimento de cesta básica. Porque nessa ocasião a Conab não tinha os alimentos no depósito. Então nós fizemos isso, esse acordo, fizemos o repasse de 2.500 cestas, a mais daquilo que a gente já atende com vale renda indígenas”, afirmou.

“É que essa população indígena, o atendimento é mais restrito à Conab, ao governo federal. Não que o governo do estado não reconheça essa situação de necessidade e de vulnerabilidade desses indígenas, das áreas de retomada. Os indígenas de retomada, eles também são nômades, as vezes estão em uma determinada área, depois eles migram pra outra. Nós já tivemos até solicitação do MP de fazer o cadastramento de algumas famílias e aí foi nos passado um número e quando chegamos lá só tinha metade, então a gente tem essa oscilação da população, mas não é isso que é o impeditivo pra gente fazer o atendimento”, complementou.

A secretária também afirmou que, “como a partir de outubro ia chegar alimentos da Conab, e nós não fomos mais chamados nem procurados por nenhuma instância. Então pra nós, o abastecimento e a entrega de cestas estava normal”. A titular da Sedhast também disse que “a partir dessa nova realidade a secretaria está à disposição”.

 

Pyelito Kue, em Iguatemi (divulgação/Cimi)

 

 

Elder explica que a situação jurídica – em meio à demora nas demarcações – é o que motiva a situação precária. Ainda assim, para o coordenador da Funai, o vale-renda indígena necessita ampliação.

“Existe um problema no governo do estado, do vale renda, que atende as aldeias e o programa do governo federal estava em remodificação [sic]. O governo do estado não atende atualmente, pela interpretação da lei e também porque o programa do governo do estado é limitado e isso é inferior a população indígena do estado. E eles tem um sistema de cadastro de renda per capita e não tem nenhuma família que esteja abaixo dessa renda, então o cadastro não dá pra quem está numa situação um pouco melhor e quem está numa situação um pouco pior”.

“Então, tem um problema muito grande, tanto das áreas de retomada quanto das áreas regularizadas, que não conseguem se cadastrar e as que estão em uma situação precária, em acampamento, na beira da estrada, eles não tem como contabilizar”, complementa.

Elder afirmou que a última entrega de cestas básicas da Funai ocorreu no início de dezembro. “A Conab também está nessa situação, expectativa de receber recurso pra poder fazer o transporte, então por isso está atrasando a entrega. A entrega é mensal, a primeira que foi feita, foi na primeira semana de dezembro, a Conab teve dois problemas, teve que montar as cestas e depois a entrega. A montagem já foi feita, mas o transporte, a Conab está sem recurso pra distribuição. A gente solicitou recursos pra Funai e ainda não recebeu uma resposta”, declarou.

Tekohas como Pyelito Kue, Kurusu Ambá, Nhanderu Marangatu e Guaiviri, todas na região de Ponta Porã, estão em situação de fome, de acordo com a Funai.

O índice de insegurança alimentar em comunidades indígenas Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul atinge 100%, de acordo com uma pesquisa realizada pela Fian Brasil em parceria com o Cimi (Conselho Indigenista Missionário).  A ‘Rede de Informação e Ação pelo Direito à Segurança Alimentar’ apontou que, no restante do Brasil, o índice é 22,6%.