A odisseia de Alexander, um índio Guarani-Kaiowá com esquizofrenia

Já trabalhou por R$ 200, foi preso e agora será internado

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Já trabalhou por R$ 200, foi preso e agora será internado

Naquela manhã de quinta-feira (5), Alexander, 27, era um “louco”, com um pedaço de madeira, a agredir policiais militares, danificar viatura e veículos e parar o comércio da interiorana Caarapó, distante 273 km de Campo Grande. Naquela manhã, Alexander era o “louco” que foi controlado com dois tiros, por policiais militares, preso em flagrante e internado no Hospital da Vida, em Dourados, sob custódia. Nos autos de um processo judicial, Alexander é “portador da carteirinha da Funai” (Fundação nacional do índio). Em Caarapó, Alexander era o “andarilho”, sem rumo, conhecido por todos.

O mês de janeiro é branco – projeto criado em Minas Gerais para chamar a atenção da sociedade à saúde mental -, mas o sofrimento, em Mato Grosso do Sul, tem ao menos uma de suas faces, indígena.

Alexander Claro, 27, é índio Guarani-Kaiowá, morador da Reserva Tey Kue, em Caarapó, filho de Helena Cavalheiro e Francisco Claro. Na Reserva, vive sob os cuidados da irmã, Regina Claro, 35. Ao menos vivia. Alexander sofre de esquizofrenia, doença cujo sintomas começaram a se manifestar quando ainda era adolescente. A vida dele, preso duas vezes- uma em 2008 por portar 380 gramas de maconha e outra em janeiro deste ano quando teve uma episódio de crise no centro da cidade, escancara a realidade marginalizada e pouco conhecida dos índios que sofrem com transtornos mentais.

Da situação de pobreza, na reserva indígena, para a ala de enfermaria da Penitenciária de Dourados – onde aguarda ser transferido para um hospital psiquiátrico em Campo Grande – a odisseia de Alexander parece mostrar o quanto o janeiro ‘branco’ é extremamente necessário diante da realidade: a Justiça, a Saúde e a sociedade civil ainda engatinham quando as questões envolvem a população indígena.

Alexander foi indo

O Kaiowá era ainda um adolescente quando os primeiros sintomas da esquizofrenia começaram a aparecer, entre 17 e 18 anos, fase em que é comum a doença se manifestar. As vozes, as alucinações, o perceber de uma realidade que só Alexander vivia. A família achava que os trejeitos eram ‘naturais’, apenas traços da personalidade de Alexander.

“Nós nem percebemos né, pensamos que era natural dele, que era assim mesmo”, conta a irmã, Regina.

Então, Alexander “foi indo, foi indo”, nas palavras da irmã, para descrever que ele foi piorando aos poucos. Mas Alexander, de fato, ia.

Ele chegava a caminhar duas vezes por dia entre a Reserva indígena e a cidade Caarapó, onde tornou-se conhecido por todos. No início, Regina cuidava do irmão com o auxílio da mãe. Após a morte dela, apenas Regina era responsável por Alexander, na rotina que envolvia remédios, visitas das equipes da Sesai (Secretaria especial de saúde indígena) e, depois de 2011, o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) de Caarapó.

“E aí ele ficou com essa cabeça dele, ele vai pra lá, vai pra cá, ele vai indo aí”, relata Regina.

Alexander foi preso

No dia 25 de agosto de 2008 Alexander, então com 21 anos, foi preso em flagrante, em posse de 380 gramas de maconha. Indiciado como traficante. A situação de marginalização e uso de substâncias, entre a população indígena, é uma situação crescente, conforme explicam os profissionais de saúde da Sesai. A maconha, cujo consumo e venda são proibidos pela legislação brasileira, é uma substância que integra discussão científica mais abrangente – do uso medicinal e recreativo ao abuso – mas, para a esquizofrenia, estudos científicos também apontam que ela pode servir como catalisador da doença. A irmã do indígena explica que ele consumia maconha, mas afirma que Alexander jamais comercializou a substância.

 

 

 

 

“Ele já estava com esse problema dele, aí ele começou a usar essa daí. Ele falava pra minha mãe: ‘mãe, minha cabeça tá bem ruim’. E aí ele começava a ficar sumido”, conta a irmã.

O Guarani-Kaiowá  sumia, às vezes, por um mês inteiro. Uma das vezes, ficou mais de 30 dias na região de Naviraí, 359 km de Campo Grande. O indígena, de acordo com relatos de quem o conhecia, não era violento. “É que ele sempre vinha pra cidade, sem agredir ninguém, nunca teve problema. Todo mundo na cidade, se olhasse pro Alexander conhecia ele, nunca agrediu ninguém”, afirma o coordenador do polo da Sesai em Caarapó, Adalberto Araújo Correia.

Depois de preso, acusado de tráfico, Alexander passou pelo primeiro laudo psiquiátrico, no dia 18 de maio de 2010.

“O acusado foi examinado em ambiente fechado. Sentou-se, com olhar inseguro, atitude defensiva, falando com voz em tom normal. É portador de esquizofrenia (com comprometimento significativo do comportamento), doença adquirida, evolutiva, incurável, não congênita, não ocupacional, não degenerativa, não inerente a faixa etária e de difícil controle. Ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender a ilicitude de seus atos e incapaz de se determinar perante seu entendimento”, alegou o médico, Raul Grigolleti.

A Justiça determinou, então, que o indígena fizesse tratamento durante três anos, no CAPS de Caarapó, em substituição a internação, pedida pelo MPE (Ministério Público Estadual).

Trabalhador rural – Outro fator salta aos olhos no processo judicial de Alexander: a exploração trabalhista. Durante o laudo, em entrevista, a família conta que o indígena foi trabalhador rural e ganhava apenas R$ 200 reais.

Ao começar o tratamento nas sessões terapêuticas, o relato da psicóloga do CAPS em Caarapó, conta que Alexander era risonho e tímido.

“Durante o atendimento o paciente mantém conduta serena e risonha, disponível a aprender e interessada. Muito educado e levemente envergonhado. Num primeiro momento de contato com o grupo, naturalmente seus movimentos carecem de iniciativa. Mas quando devidamente estimulado, Alexander responde adequadamente”, explica a psicóloga.

Anos depois, no entanto, esse quadro se alteraria.

Alexander caminha para longe

As impressões da mão esquerda de Alexandre (reprodução)O tempo seguia e também Alexander, cuja doença, com o tempo, pareceu apresentar piora. Em setembro de 2012, o Kaiowá parou de frequentar o CAPS. A burocracia da Justiça também indica não conversar com a realidade de uma família indígena em situação de vulnerabilidade financeira. O processo do irmão de Regina seguiu entre ofícios não entregues por dificuldades diversas, questionamentos pela ausência nas sessões terapêuticas e tentativas de condução coercitiva. Alexander estava sempre ausente, conforme relatavam os oficiais de Justiça. Entre o primeiro tratamento, e a segunda prisão, em janeiro deste ano, Alexander foi, também, ausentando-se de si mesmo.

“Ele não comia mais, não tomava banho. Ele sumia”, conta Regina,

De acordo com o coordenador da Sesai, Alexander tomava remédios para tratar a doença, duas vezes ao dia. “Ele toma medicamentos, mas é difícil da família controlar ele dentro da Reserva. Nós fornecemos medicamentos pra família, a família dá o medicamento pra ele na hora que ele levanta e à tarde”, afirmou.

A partir de 2013, o MPE (Ministério Público Estadual) volta a pedir a internação.

“Meritíssimo Juiz, Diante dos documentos juntados às fls. 79-81 onde consta que o sentenciado não vem cumprindo a medida de segurança a ele imposta desde o mês de setembro de 2012, o Parquet, com supedâneo no artigo 97, § 4º, do CP, requer seja decretada a internação do mesmo em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado, como dispõe o inciso I do artigo 96 do Código Penal. A internação deve ser por tempo indeterminado, perdurando-se enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade. Nestes termos”, afirma o promotor, na peça jurídica.

Então, a Defensoria Pública, que representa a Alexander em seu percurso na Justiça, pediu audiência. “Contudo, antes de ser aplicada essa medida rigorosa, faz-se necessário a oitiva do reeducando para justificar sua ausência. Assim sendo, requer a designação de audiência para que o reeducando compareça e apresente sua defesa”.

No dia 29 de agosto de 2016, o oficial de justiça entrega intimação a Alexander e a irmã, para que ele compareça a novo exame de laudo psiquiátrico. Durante o encontro, o oficial comunicou à Justiça que estariam faltando medicamentos ao indígena. “Na oportunidade sua irmã informou que está faltando remédio a Alexander, pois, muitas vezes ele sai perambulando, e sem o remédio fica difícil controlá-lo para trazer para a perícia”, afirmou o Oficial de Justiça.

No dia 30 de agosto, Alexander não compareceu ao exame.

No dia 18 de outubro de 2016, quando finalmente o novo laudo foi realizado, a situação do Guarani era muito diferente da constatada no primeiro exame.

“Escuta vozes, não toma banho, saía a caminhar pelas ruas, fala sozinho. b) Exame psíquico: Mostrou-se em atitude pouco receptiva e pouco colaborativa, apresentou desorientação parcial no tempo e no espaço; com oscilações do humor; não entendendo o objetivo da perícia e nem se interessando pelo resultado. Não foram percebidos sinais de simulação. Na avaliação da personalidade, observou-se ausência do conhecimento da realidade vivida por ele. Os principais traços encontrados foram alterações cognitivas significativas -com prejuízo na capacidade de juízo, imaginação, pensamento e memória

Alexander claro a) É portador de esquizofrenia residual, (CID F20.5). b) Está incapacitado definitivamente para prover o seu sustento, reger a sua pessoa, administrar seus bens ou praticar atos da vida civil. c) Ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender a ilicitude de seus atos e incapaz de se determinar perante seu entendimento. d) Salvo soberano entendimento do juízo, o periciado poderá ser considerado inimputável”, declarou o médico, Sérgio Luís Boretti.

Alexander, réu duas vezes

Alexander é um dos cerca de 135 indígenas, de seis comunidades – aldeias e reservas – atendidas pelo polo de Caarapó, a apresentarem transtornos psiquiátricos. Quem relata o cenário é a psicóloga do polo, Aline Cristina Morais Seltrin. Ela afirma que a exposição dos indígenas ao abuso de substâncias tem piorado a situação. A fome e subnutrição das comunidades também representa piora aos quadros de saúde dos pacientes.

“Está relacionado com o crescimento das vulnerabilidades, tanto alcoólica como com drogas, esse tipo de doença mental pode ser desencadeado por drogas químicas e fragilidade de alimentação. A maioria que era usuário desenvolveu o transtorno através de maconha. É como se fosse um gatilho, se já tem a tendência genética, que não dá pra desconsiderar, e aí entram em contato com essas dependências”, explica.

Casos de violência aos quais são expostos e demais fatores sociais, também contribuem, de acordo com ela.

Médico Psiquiatra e professor da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul) Juberty Antônio de Souza opina que a questão da saúde mental para os indígenas de Mato Grosso do Sul encontra fronteiras não só culturais – que envolvem a dificuldade de compreender os transtornos, dentro das comunidades -, mas da própria realidade dos sistemas públicos de saúde mental brasileiro e estadual, que têm, entre outros problemas, déficit nas vagas de internação e incompreensão dos profissionais.

“Os costumes são diferentes e termina com um sofrimento muito maior. É muito mais difícil, não só pela incompreensão deles, mas pelos próprios profissionais. Eu trabalhei muito tempo e os próprios profissionais têm uma dificuldade muito grande de compreender as manifestações. O paciente esquizofrênico pode viver em sociedade desde que ele seja tratado e que o tratamento dê certo. Em situações de crise, há necessidade de internação até o controle da crise, e aí depois, a continuidade do tratamento. Agora, no nosso Estado tem um déficit real de leitos. Precisaria de 400 leitos só em Campo Grande, e não tem”, conta.

Coordenadora de Saúde Mental da Secretaria em Mato Grosso do Sul, a psicóloga Fabiane Vick explicou que a Sesai oferece o acompanhamento aos pacientes por meio da Equipes multidisciplinares, compostas por psicólogo, médico, assistente social e farmacêutico. A transição entre o atendimento na saúde indígena para o SUS, no entanto, apresenta dificuldades. A dificuldade de continuidade no tratamento de Alexander no CAPS – responsabilidade do SUS e do poder público – pode ser um dos caminhos a explicar a piora em seu quadro e o episódio de crise vivido por ele, no centro de Caarapó.

“Enfrentamos sérias dificuldades com os encaminhamentos para a Rede de Atenção Psicossocial nos Municípios, quanto a dificuldades de agendamentos para médicos especialistas, acompanhamentos nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Ambulatórios de Saúde Mental, bem como, para internações (quando necessárias) em leitos de psiquiatria em hospitais gerais, devido a insuficiência de vagas”, esclareceu a psicóloga.

“Com relação ao caso do Indígena Alexander de Caarapó, informo que nossa Equipe de Saúde Indígena do Polo Base de Caarapó e a nossa Equipe de Saúde Indígena do Polo Base de Dourados (local onde esteve internado), estão prestando todo apoio necessário e acompanhando o caso. E também tenho conhecimento do acompanhamento de outros órgãos competentes como FUNAI, MPF e Defensoria Pública, junto ao caso”, complementou.

 

 

Alexandre, em fotografia retirada em 2016, durante exame (reprodução)

 

Imerso nessa realidade, no dia 5 de janeiro, Alexander deixou a casa onde vive com a irmã, na Reserva Tey Kue e foi, escondido, até Caarapó. Na cidade, sofreu uma crise, apresentou comportamento violento, levou dois tiros projetados por uma arma calibre .40. Um dos projéteis o atingiu na perna, o outro, na região do quadril. Alexander foi internado no Hospital da Vida, preso em flagrante, enquadrado no Código Penal pelos danos causados.

Duas semanas depois, outro indígena, preso por violência doméstica, apresentou uma crise dentro da Delegacia de Caarapó, onde estava preso. De acordo com o relato do boletim de ocorrência, Pedro Paim, 31, após ser levado ao hospital, ser medicado, e reconduzido à delegacia, apresentou novo “surto”, na madrugada do dia 16. Levado a uma cela ‘solitária’, Pedro ali faleceu, em causas que ainda são apuradas pela polícia.

Coordenador da Funai (Fundação nacional do índio) em Dourados, Vander Aparecido Nishijima, afirma que a entidade acompanha o caso de Alexander. A Funai também protocolou ofícios na Defensoria Pública, Ministério Público Estadual (MPE), Ministério Público Federal (MPF), Corregedoria da Polícia Militar de Mato Grosso do Sul e Conselho Nacional do MPE.

Agora, a odisseia de Alexander na luta com a esquizofrenia o levou à enfermaria da Penitenciária de Dourados. Ali, ele aguarda a transferência para um Hospital Psiquiátrico da Capital, onde deve permanecer por um ano, cumprindo decisão judicial.

 

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