Abordagem por som alto termina com vizinhas de PM feridas a tiro

Advogados e estudantes alegam que prisões foram arbitrárias

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Advogados e estudantes alegam que prisões foram arbitrárias

Uma queixa por perturbação do sossego durante festa em república universitária de Três Lagoas, a 338 km de Campo Grande, terminou com duas estudantes feridas e cinco presos, na madrugada da última segunda-feira (14). Os acadêmicos deixaram um sarau que comemorava a ocupação estudantil da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), e foram para o local onde a abordagem policial terminou em confusão. A versão da polícia registrada no boletim difere da que contam os estudantes.

O boletim registrado na Depac (Delegacia de pronto atendimento comunitário) da cidade, afirma que, por volta das 2h57, uma viatura teria se dirigido à república após receber reclamação de som alto. Dois policiais, de acordo com o boletim, pediram reforço “ao notar a presença de cerca de vinte pessoas”. Eles declaram, no documento, que chamaram pela proprietária da casa, uma das estudantes presas, durante dez minutos. No total, quatro viaturas apareceram no local.

Segundo os policiais, a estudante teria se negado a abaixar o som e os estudantes teriam ofendido a equipe da PM. Toda a tensão entre estudantes e policiais culminou em agressões dos dois lados e duas estudantes foram feridas por tiros de borracha. Uma delas levou dois tiros na perna e a outra está com a rótula do joelho quebrada por conta do tiro, conforme explicaram as acadêmicas e os advogados que acompanharam o episódio.

No total, cinco estudantes foram levados até a delegacia e encaminhados para a prisão. Três jovens ficaram presas no Estabelecimento Feminino Penal Três Lagoas e outros dois na Penitenciária de Segurança Média de Três Lagoas.

Eles foram liberados no início da tarde de quinta-feira (17) mediante pagamento de fiança de R$ 880, em decisão da juíza Janine Rodrigues de Oliveira Trindade. A fiança foi paga por professores dos acadêmicos. Eles, agora, respondem por agressões aos policiais e ainda devem responder judicialmente por dano ao patrimônio público, desacato, resistência e pertubação ao sossego.

Policial vizinho

A versão dos acadêmicos e dos advogados, no entanto, é diferente. Segundo eles, a presença de um policial de folga, que é vizinho dos estudantes, e os disparos de balas de borracha, levantam dúvidas de que tenha havido truculência excessiva na abordagem.

Uma das estudantes que estava na república afirma que a chegada da polícia aconteceu por volta das 4h. Ela confirma que cerca de 25 acadêmicos estavam no local, e admite que o som estava alto. “Eu tinha observado que os vizinhos estavam incomodados, então diminuímos o som e levamos a caixa de som pra dentro de casa”. Ela declara que os policiais foram apenas uma vez ao local, e nega que tenham ficado chamando durante dez minutos, conforme diz o boletim.

“A maioria [dos estudantes] estava dentro de casa quando a polícia chegou, acho que eram uns quatro policiais. Tinha um pessoal lá fora e vieram avisar que a polícia queria falar com a dona da casa [uma das estudantes que foi presa]. Foi aí que eu abaixei e desliguei o som. E nesse meio tempo que ela saiu para atender eles, invadiram a casa”, afirma.

Ela garante que os policiais não teriam esperado a estudante sair para conversar. O boletim afirma que a voz de prisão foi dada quando ela saiu e ofendeu os policiais. Um vídeo gravado por um dos acadêmicos que estava no local mostra o início do conflito. As imagens indicam que o policial deu a voz de prisão à proprietária da casa no interior da residência. Um policial que estaria de folga também consta no boletim. Ele seria vizinho da república e os estudantes acreditam que ele teria acionado os colegas para a ocorrência por barulho.

Confira o vídeo aqui:

“Quando ele deu a voz de prisão ele segura ela e começa a arrastar. A reação não tem nenhuma justificativa. Chegou ao ponto que ele arrastou ela pelos cabelos. E aí foi nesse momento de conflito que eles dispararam o primeiro tiro de bala de borracha”, contou. O primeiro tiro, conforme explicou, teria dispersado os acadêmicos, momento em que a polícia levou a proprietária da casa para fora. Uma das estudantes presas, segundo ela, tentou segurar a amiga para que não fosse levada. Ela teria sido imobilizada pela polícia, e as duas foram levadas para o camburão.

Outro vídeo mostra o momento em que um dos tiros é disparado:

 

Outro estudante preso, de acordo com o relato, “estava tentando apaziguar a situação, com as mãos pra cima”. “Esse vizinho PM deu um soco nele e os policiais foram pra cima tentar imobilizar, e esse vizinho deu um ‘mata leão’ nele sem motivo nenhum e foi aí que eu percebi que eles estavam completamente descontrolados. Deixaram ele na viatura desacordado depois do mata leão. Quando o pessoal começou a falar ‘deixa ele, deixa ele’, saiu o segundo tiro”, contou.

Outro ponto questionado por eles é que uma das três estudantes presas teria sido informada que iria à delegacia como testemunha. “Ela estava filmando, várias pessoas estavam filmando, e começaram a tomar o celular à força. Um dos PMs tomou o celular dela e falou que ela ia ter que acompanhar até a delegacia, como testemunha”.

“Foi abuso de poder total. Nós entendemos que o som estava alto, mas era uma questão de diálogo. Foram ações completamente sem sentido. A gente acredita que pode ter sido uma retaliação ao movimento de ocupação”, complementou.

‘Substância análoga à maconha’

Os policiais registram no boletim que perseguiram uma das pessoas que estaria na casa, e que não foi encontrada. Alegam que encontraram 14,5 gramas de “substância análoga à maconha distribuída em quatro trouxinhas” em um terreno baldio.

“Foram ações sem sentido, tinha apenas bebida no local. Em todo o momento que eu estava lá eu só vi todo mundo bebendo”, declarou a estudante.

O advogado Vanderlei José da Silva acompanha a situação e diz que vai representar os estudantes no caso. Vanderlei, 49, chegou à república ainda na madrugada do dia 14.

“Na realidade, quando eu cheguei no local, um dos alunos me conheciam e já tinha uma viatura do Samu e três da polícia militar, e os policiais já estavam no interior da residência. Foi ilegal, o início da atuação foi equivocada, não existia uma questão de crime, não tinha nenhum cidadão reclamando da perturbação do sossego, apareceu um policial que era vizinho, ele apareceu lá e ele que deveria configurar como vítima no boletim”, diz Vanderlei.

“As duas estudantes feridas configuram no boletim como autoras de crime, só que depois não se fala mais nada sobre elas, esse fato está omisso, o que elas sofreram não aparece. Agora vamos fazer um levantamento do porquê dessa omissão, e pedir que sejam instaurados procedimentos na corregedoria da polícia militar e também na polícia civil porque teve um ajuste entre a Polícia Militar e a delegacia que atendeu”, complementa.

Advogado questiona

O advogado questiona o momento da prisão. “Ela estava dentro da casa, eles invertem toda a verdade e o vídeo mostra que não ocorreu isso. Eles atribuíram a todos os mesmos crimes, perturbação de sossego, desacato a autoridade, lesão corporal, falam que provocaram lesões nos policiais, que eles teriam praticado dano ao patrimônio público [viatura. Mas uma das estudantes ficou mais ou menos duas horas dentro do camburão, ela diz que estava passando mal e pediu pra que a tirassem, aí ela bateu e quebrou a tampa. Foi uma ação muito truculenta, desnecessária, poderia ter sido resolvida com diálogo, foi uma ação despreparada. E por outro lado a polícia civil não individualizou a conduta de nenhum deles, de modo que os crimes, juntos, ultrapassam quatro anos”, declarou.

O CDDH Marçal de Souza Tupã-I (Centro de Defesa da Cidadania e dos Direitos Humanos) de Campo Grande, divulgou uma nota pública sobre o caso. “O CDDH manifesta que, segundo relatos obtidos juntamente com os vídeos apresentados, a operação policial violou direitos e garantias fundamentais dos estudantes, na origem do procedimento, em razão de abordagem violenta”, declara.

Uma comissão de advogados de Três Lagoas e de advogados do CDDH prometem um dossiê para ser entregue à Secretaria Nacional de Direitos Humanos, mas até o momento o documento não foi apresentado e não há queixa formal contra os policiais. A reportagem entrou em contato com a Corregedoria Geral da Polícia Militar, que ficou de se posicionar assim que verificassem a situação. Até o momento da publicação não houve retorno.

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