16 toneladas de rejeitos no esgoto denunciam relação com o lixo distante do ideal

Caminho feito pelos resíduos mostra que sustentabilidade ainda é sonho

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Caminho feito pelos resíduos mostra que sustentabilidade ainda é sonho

16 toneladas que param no esgoto. O volume é de lixo, média retirada das duas estações de tratamento  de Campo Grande toda semana. Excesso de gordura, plástico, materiais diversos. O início dessa história é também o final, ou a ponta daquilo que deixa claro a existência – correndo-se o risco de ser redundante -, de algo de podre no modo como a cidade lida com seus rejeitos.

O esgoto segue das redes coletoras até a estação de tratamento. Durante o processo, cerca de 30 pessoas participam da manutenção do sistema. Entre os serviços, a limpeza do lixo das grades – nas redes coletoras -, e do lixo que chega até a estação, é um dos que mais demandam trabalho.

 

 

 

“O que acontece, tanto na rede, quanto nessas elevatórias, é que nós temos um grande problema de mal uso da rede de esgoto. O que seria mal uso das redes de esgoto? Primeiro, sólidos grosseiros: papel de bala, lixo, garrafas, muitos restos de comida, o pessoal joga isso diretamente na rede de esgoto”, explica Edilson Sadayuki Omoto, engenheiro químico, que coordena o processo na estação de tratamento.

Outro problema, além do que chega pelas redes coletoras de esgoto, é o lixo das ruas. “O que acontece, tudo que vai pro meio-fio é guiado pra rede de drenagem, que é separada do esgoto. Então ele vai causar entupimento nessa rede de drenagem e isso pode causar enchente em alguns lugares, pode causar algum contato direto e pode causar dano ambiental porque tudo que você joga no ambiente, escorre pros rios, então o lixo que você está jogando aqui futuramente vai pros cursos d’água. São esses problemas que podem causar o lixo jogado diretamente na rua”.

Mas essa história não começa no esgoto.

Lixo e sustentabilidade

No Brasil, a produção de lixo aumentou cinco vezes mais que a população entre 2010 e 2014. Os dados são do relatório da Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe). Em Campo Grande, cada pessoa produz, em média, um quilo de lixo por dia. A Solurb – empresa responsável pelo serviço na cidade -, também indica que são recolhidas na cidade, por dia, – em média -, 865 toneladas. 

A Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei nº 12.305, de 2010, instituiu, como obrigação, a coleta seletiva – a separação de resíduos de acordo com a similaridade dos materiais -, que envolve o reaproveitamento e o destino adequado a cada um deles. Na Capital, o serviço existe. A abrangência, no entanto, ainda é mínima. Das 865 toneladas recolhidas, apenas 15 são oriundas da coleta seletiva, ou seja, menos de 2% do lixo recolhido na cidade.

 

No Lago do Amor tartarugas em meio a uma garrafa plástica (Cleber Gellio)

 

 

“Ainda não expandiu, deveria ter já ter expandido para toda cidade. Então você tem hoje só duas regiões onde está sendo feita a coleta seletiva. Tem os LEVs [Locais de Entrega Voluntária], mas é muito pouco da população que vai levar o lixo nesses lugares, e além das entregas voluntárias tem um batalhão de gente coletando os resíduos recicláveis, e podem pensar que é pouco, mas talvez esse pessoal esteja coletando mais do que a coleta seletiva ou próximo disso, que são os catadores autônomos”, explica o professor e pesquisador de engenharia ambiental, Antônio Carlos Silva Sampaio.

Outro ponto abordado pelo professor é o lixo como uma denúncia da vida material em sociedade, uma vida que ainda não se sustenta, e que descarta no próprio meio onde vive, aquilo que poderia ser transformado e suprir demandas em setores diversos – a exemplo da agricultura e do setor energético.

“Você fazer a coleta seletiva, tirar da coleta seletiva todos os materiais que podem ser aproveitados, depois da coleta seletiva você fazer o aproveitamento da matéria orgânica, depois do aproveitamento aí pode ser, ou pra gerar energia ou pra produzir composto. Se você conseguir utilizar 60% desse lixo ou pra gerar energia ou pra gerar composto, você já diminui em muito a quantidade de resíduos que você está depositando no aterro que é um resíduo que já te dá um trabalho, e mesmo dentro de um aterro você vai ter um risco de romper, de contaminar o solo, de contaminar o ar”, afirma o pesquisador.

A sustentabilidade também esbarra em outra questão: o lucro. Isso porque as atividades que fariam do lixo parte de uma engrenagem capaz de manter a cidade como um organismo sustentável, entram em conflito com setores que deixariam de ser necessários, em toda a economia. A falta de políticas públicas que fomentem empresas de reciclagem ou para gerar energia a partir do lixo também são uma barreira.

É o que admitiu Bruno Veloso Vilalva, engenheiro sanitarista e gerente operacional da Solurb, ao ser questionado sobre o funcionamento do aterro. “Problema não gera, o que gera é uma falta de valorização econômica daquele resíduo. O vidro, por exemplo, chega lá na UTR [Usina de Triagem de Resíduos], ele vai pro aterro também, porque chega lá ele não tem valor econômico, então hoje, se recicla poucas cadeias de materiais. Por exemplo, não compensa a cooperativa separar esse resíduo e vender porque não paga o frete, tem que separar esse resíduo e levar lá em São Paulo, por exemplo, então o custo disso fica 0 a 0 e pra cooperativa é pouco”.

Para ele, ‘na verdade a política nacional não está ajustada a realidade das cidades’. “Se você fizer um comparativo de municípios, desse mesmo porte, você vai ter o mesmo problema, então hoje é uma utopia ainda porque o cenário nacional não está preparado para a política nacional. Porque na prática, cadê o benefício a quem recicla? Cadê o benefício ao reciclador, hoje o cara, pra reciclar tem que pagar imposto. Cadê o incentivo fiscal?”, criticou. Questionada, a Prefeitura não explicou sobre políticas públicas a empresas ou cooperativas.

O gerente operacional também mostrou surpresa quando ouviu que, da estação de tratamento, saem 16 toneladas de lixo toda semana.

– Lixo no esgoto? Eu desconheço isso.

– São cerca de 16 toneladas.

– Sério? Pela rede de esgoto? De lixo? Convencional? É 16 toneladas por semana? É bastante coisa. É um dia inteiro de coleta seletiva. Eu não conhecia essa informação e que tipo que resíduo”.

A cidade se expande e vai deixando brechas para compreender como funciona a sua estrutura. Uma dessas ‘brechas’ ou, talvez, grande lacuna, é a moradia, ou a falta dela. Para muitas pessoas em Campo Grande, morar está caro e, muitas vezes, impossível.  Na Capital, em menos de um mês, uma nova favela surgiu, similar à antiga Cidade de Deus, uma comunidade que foi desmembrada e seus membros deslocados para quatro bairros diferentes da cidade.

As duas favelas carregam mais do que os barracos como semelhança: na Cidade de Deus, o local era próximo do antigo lixão e muitos moradores dos bairros da região ainda vivem do lixo. Na nova comunidade na região norte de Campo Grande, Morada do Sossego, o lixo se torna um problema.

 

No bairro Morada do Sossego, a vegetacão abraça a ocupação (Cleber Gellio)

 

 

Em menos de um mês, 500 famílias – segundo as lideranças do local -, já se aglomeraram com barracos, entre ruelas improvisadas em um vale em meio ao matagal e o córrego segredo, que marca a fronteira onde os barracos não ultrapassam. Andando no local, é possível ver restos de comida em meio a material plástico e embalagens diversas. O problema? Encarada como ocupação ilegal, a comunidade não recebe o serviço de coleta e mostra que o lixo vai muito além de como é, tradicionalmente, encarado. Lixo e moradia, nesse caso, são como os fios de energia estruturados na favela: é difícil vê-los separados.

Assentado, o agricultor Sebastião Cândido de Oliveira, 51, foi ‘parar’ na ocupação por um motivo inusitado. Sebastião teve câncer na laringe e para continuar o tratamento, precisou ir até a capital. Sem dinheiro e sem lugar para ficar, foi na ocupação que ele achou uma saída. “Tive que vir bem pra beira do córrego, um lugar bem de risco mesmo, mas é o que sobrou pra mim”.

“O lixo básico, algum ‘papel de plástico’, algum ‘macarrãozada’ vai queimando. Pelo menos nós aqui do fundo”, explica Sebastião, que vive na beira do córrego. “Agora lixo orgânico a gente vai fazendo as fossas e tem que ser dispensado nas fossas”.

“Se o lugar não é reconhecido e não tem nem como o caminhão entrar pra fazer a coleta, fica sem coleta e a gente faz o possível pra não ficar em uma situação mais de risco ainda, de risco de doença, e a comunidade está na luta, não tem muito pra onde correr, é vir pra cá e esperar a reação das autoridades”, pontua.

– O lixo pode ser um problema aqui?

– O lixo sempre vai ser um problema. Até onde passa a coleta, então o lixo sempre é um problema, só vai piorando. Com consciência, tenho certeza que a liderança vai começar a falar aí na reunião, pode ser que melhore um pouco, mas o lixo sempre é um problema”.

Soldados de um batalhão invisível

Boa parte do lixo fica de fora da coleta seletiva, mas, também da própria coleta. Andar pela cidade é perceber que ainda impera nas pessoas a ideia de ‘jogar fora’ e o ‘fora’, muitas vezes, é a rua. Como afirmou o pesquisador, no entanto, um certo batalhão age espalhado pela cidade, separando o joio do trigo, ou ressignificando aquilo que se chama de lixo.

Próximo do aterro sanitário e da UTR, o Dom Antônio Barbosa, apesar da proximidade, não tem coleta seletiva. O local conta com os diversos catadores, autônomos ou cooperados, que ajudam a dar um destino mais adequado ao material. No bairro, uma dona de casa, com trabalho de ‘formiguinha’ faz sua parte para não contribuir com a camada de óleo presa na estação de tratamento. Vera Lúcia dos Santos, 50, faz o próprio sabão com o óleo de cozinha. Há dez anos que ela não descarta o óleo e não compra sabão.

 

Vera Lucia transforma óleo velho em sabão no bairro Dom Antonio Barbosa (Cleber Gellio)

 

 

“Com certeza a gente descarta bem mais as coisas. O óleo que sobra, eu coo ele, passo no funil pra filtrar, e ele fica na panela esfriando, não vou usar mais. Deixo lá, esfria, pego a garrafa, aí no dia que eu vou fazer já não tem resíduo aqui dentro, despejo dentro da bacia e faço”, conta.

No Otávio Pécora, caminhando com o carrinho pelas ruas, de longe já dá pra ver José Bibiano, 59, conversando com os conhecidos. Ali, seu José é mais importante que a coleta de lixo da Solurb. Mas José ‘não é lixeiro, não’, como ele mesmo explica. José é catador independente há sete anos, e aquilo que é visto como lixo pela maioria das pessoas, para ele é meio de subsistência.

O trabalhador desafia as fronteiras da palavra resistência ou da própria noção de realidade – mais parece um personagem saído de um livro de Gabriel Garcia Marquez, criador do ‘realismo mágico’ -. Anda por perímetros que, a pé, poucas pessoas conseguem. José deixa, logo cedo, a casa onde mora no bairro Cerejeiras e, andando, vai parar até na Avenida Mato Grosso, onde recolhe todo o papelão que encontra.

Junto com ele, vai só a garrafinha de água que carrega diariamente, e ‘aquele lá de cima’, como ele chama Jesus Cristo, que para o catador, está sempre junto de si. “A gente tem que ter fé naquele lá de cima, Jesus Cristo”, repete José, constantemente, enquanto caminha. José, de fato, parece sustentado por alguma força invisível. O catador, que retira um valor entre 30 e 70 reais por dia, também afirma que só se alimenta a noite

 

(Cleber Gellio)

 

 

“Eu cresci no estado de Rondônia. Sou pai de dois filhos que nasceu lá e mora lá”, conta. José sofreu um acidente em Campo Grande, quando trabalhava na construção civil. Quebrou as duas pernas e ficou inconsciente por um tempo. “Quando eu voltei a conversar, falei: ‘zé, eu não quero ficar mais aqui, quero voltar pro Cacoal [cidade de Rondônia, de onde veio José]’. Ele falou: ‘Cacoal não rapaz, Campo Grande’. Eu falei: ‘beleza’. E to aqui em Campo Grande, catando papel o dia inteiro”.

– Campo Grande tem muito lixo na rua?

– Tem, tem muito lixo na nossa cidade de Campo Grande, mas não é só aqui não, é pra tudo quanto é lugar. Cacoal, tem muito lixo na rua, Porto Velho, que é capital.

– E como as pessoas lidam com o seu trabalho?

– Muitos falam assim: ‘esse preto trabalha’. E já têm muitos cachaceiros que ficam: ‘ó o cachaceiro’. ‘Lixeiro’, me chamam de lixeiro. ‘Ó, o lixeiro ta catando lixo’. E eu falei: ‘não cato lixo não, minha gente, eu cato papel, ganho meus troquinhos’. Tem muito rico que chama a gente de lixeiro. Mas eu não me importo não, pode me chamar de lixeiro. Eu não carrego lixo, carrego papel, que o nosso Brasil fabrica tudo e compra tudo”.

Questionado sobre a importância do trabalho que realiza na cidade, José não sabe muito bem como responder. “O importante disso aí é uma coisa que eu não sei bem falar, mas a gente tem que trabalhar. Qualquer serviço é trabalho”.

Ainda assim, enquanto qualquer serviço é trabalho, José vai caminhando, e diariamente transforma Campo Grande – cidade que ainda manda parte do seu lixo para o esgoto -, em um lugar mais saudável para viver. Soldado invisível, José ajuda, com seu papelão, a criar uma cidade que, um dia, possa utilizar tudo aquilo que, hoje, ainda descarta.

 

Confira a reportagem em vídeo:

 

 

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