Terapia criada no CE prioriza vínculo comunitário e vivência pessoal
Em contato com moradores de uma favela de Fortaleza (CE), o médico psiquiatra Adalberto Barreto percebeu que parte daqueles que tentavam minimizar os efeitos da ansiedade e da depressão consumindo remédios psicotrópicos precisava reestabelecer os vínculos comunitários e ser acolhida em um ambiente onde pudesse partilhar sofrimento e inquietação. “Cheguei com dois estudantes de m…
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Em contato com moradores de uma favela de Fortaleza (CE), o médico psiquiatra Adalberto Barreto percebeu que parte daqueles que tentavam minimizar os efeitos da ansiedade e da depressão consumindo remédios psicotrópicos precisava reestabelecer os vínculos comunitários e ser acolhida em um ambiente onde pudesse partilhar sofrimento e inquietação.
“Cheguei com dois estudantes de medicina da Universidade Federal [do Ceará] e não sabia o que fazer. Uma senhora nos contou que não conseguia dormir e pediu um remédio que não tínhamos para lhe dar. Quando eu ia prescrever um medicamento, ela disse que não tinha dinheiro nem para comprar comida para os filhos, quanto mais para remédios caros. Me dei conta de que eu estava agindo da forma como estava acostumado a atuar no hospital”, relembra o também teólogo e antropólogo cearense, a quem a experiência ensinou que a “a carência gera competência”.
“A mulher começou a contar sua história, a chorar. Veio outra que a amparou dando-lhe um lenço; uma outra que começou a partilhar uma experiência pessoal parecida. Fui vendo que o que aquelas mulheres tinham ido buscar era apoio, e não necessariamente um remédio. Vi que elas saíam satisfeitas com o que as outras pessoas tinham lhes propiciado”. Assim, surgiu a Terapia Comunitária Integrativa (TCI).
Trinta e um anos depois, a metodologia está presente em 25 países, segundo Barreto. Em 2017, foi incluída no rol das Práticas Integrativas Complementares do Sistema Único de Saúde (SUS). Também foi incorporada aos cursos de capacitação em prevenção do uso de drogas oferecidos pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad).
“Na maioria das vezes, a pessoa tem um sofrimento a ser acolhido e que não necessariamente é consequência de uma patologia que precisa ser medicada”, destacou Barreto em entrevista exclusiva à Agência Brasil durante rápida passagem pela capital federal.
No último sábado (1º), ele participou de um encontro promovido pelo Movimento Integrado de Saúde Comunitária do Distrito Federal (Mismec-DF), instituição sem fins lucrativos criada em 2002 e reconhecida pela Associação Brasileira de Terapia Comunitária (Abratecom). Na página da associação na internet, é possível consultar os endereços de todas as rodas de terapia comunitária existentes no país, bem como as instituições que capacitam os terapeutas –– voluntários que conduzem as “rodas” gratuitas que visam a resgatar a autoestima e favorecer os vínculos comunitários.
Veja os principais trechos da entrevista concedida por Barreto à Agência Brasil:
Agência Brasil: O que é e como funciona a Terapia Comunitária Integrativa?
Adalberto Barreto: A TCI é um espaço comunitário aberto a todos interessados, onde as pessoas se encontram para compartilhar experiências de vida, soluções para algo que as inquieta e, sobretudo, para construir vínculos solidários. É terapêutico porque é um espaço de acolhimento caloroso; de escuta livre de julgamentos e para o estabelecimento de vínculos.
Agência Brasil: Mas o senhor mesmo adverte que não se trata de uma terapia de grupo, nem de um substituto para a terapia tradicional…
Barreto: A TCI não é uma panaceia. Não serve para tudo. É muito boa para casos em que a pessoa está se sentindo solitária, isolada, depressiva, já que permite que as pessoas criem vínculos, estabeleçam uma rede de apoio. Os grupos acolhem as pessoas em um clima de segurança graças ao qual elas se sentem à vontade para falar sem serem julgadas ou criticadas. Isso permite que as pessoas deem visibilidade a suas dores, reduzindo o stress. Quando uma pessoa decide falar sobre algo que a aflige, sempre há outras pessoas presentes que vivem ou viveram uma situação parecida e que se dispõem a partilhar suas experiências e as estratégias que adotam ou que usaram para lidar e superar a situação, sem dar conselhos. Isso não só faz bem às pessoas que falam, como demonstra que se a comunidade tem problemas, também tem soluções para esses problemas. A tarefa da terapia comunitária é criar este espaço que nos permita descobrir juntos que soluções são estas.
Agência Brasil: Como ela surgiu?
Barreto: A metodologia nasceu há 31 anos e, desde então, vem sendo desenvolvida. Tenho um irmão [o advogado Airton Barreto] que fazia um trabalho em direitos humanos numa favela de Fortaleza [a Pirambu, então, a maior favela do estado]. Ao ver que muitos moradores desta comunidade tinham problemas como insônia, depressão, tristeza, e procuravam o Centro de Direitos Humanos em busca de remédios para controlar esses problemas, ele pediu a minha ajuda. Eu trabalhava no Hospital das Clínicas, onde não havia como atender a todos. Um dia eu sugeri que ele reunisse as pessoas interessadas para que nós as atendêssemos na própria comunidade. Já no primeiro encontro, havia cerca de 30 pessoas, todas pedindo remédios psicotrópicos. Entre elas, uma senhora que disse não ter dinheiro para comprar o medicamento. Como não tínhamos remédio conosco, começamos a escutar as pessoas. Eu então percebi que, na maioria dos casos, a pessoa tinha mais um sofrimento a ser acolhido do que uma patologia a ser tratada.
Agência Brasil: Que tipo de sofrimento?
Barreto: Muitos moradores da favela eram migrantes que, ao se mudar para Fortaleza, tinham perdido os vínculos com sua terra, com vizinhos e amigos. Padeciam com a perda de afetos, sentindo-se inseguras. Pareceu-me que o tratamento consistia em reconstruir estes vínculos. Então, me veio a ideia de que, se existem hospitais para tratar das patologias, das doenças, por que não criar espaços para acolhermos a dor da alma usando os recursos da própria cultura local? Superados os desafios iniciais, criamos, na própria favela, um espaço de reposição energética onde as pessoas iam para se encontrar, se abraçar, falar na primeira pessoa, ser ouvidas, estabelecer vínculos. Um ambiente alegre onde não há julgamentos nem críticas, onde as pessoas cantam, se tocam.
Agência Brasil: O senhor diz que a terapia comunitária permite a intervenção nos determinantes sociais da saúde. O que significa isto?
Barreto: A terapia comunitária não trabalha com a patologia, [não intervém] na doença. Este é o papel dos profissionais da saúde, a quem compete dispensar cuidados clínicos. Nós oferecemos o cuidado solidário. Acolhemos a quem sofre buscando prevenir as doenças. Por isso, toda pessoa pode ser uma cuidadora ou um terapeuta comunitário. Além de deter um saber, o que ela faz é acolher o sofrimento, que pode ou não estar ligado a uma doença. Evidentemente, quando se depara com uma patologia, o terapeuta comunitário deve orientar a pessoa a procurar um hospital, psicólogo ou o profissional apto a lidar com a patologia, mas também neste aspecto, ele acaba promovendo a saúde.
Agência Brasil: Como é a formação de um terapeuta comunitário?
Barreto: A formação dura cerca de um ano e é dividida em módulos. Os terapeutas em formação têm de trabalhar sua própria história de vida, suas experiências, pois a terapia comunitária é muito mais uma postura do que um método. Um terapeuta comunitário é incentivado a ser o primeiro a se favorecer da sua formação, porque compreendemos que, beneficiando a si próprio, ele acaba beneficiando outras pessoas próximas.
Agência Brasil: Mas é exigida alguma formação ou experiência prévia?
Barreto: Não. Porque o terapeuta comunitário não lida com a patologia, não diagnostica, não analisa, não julga ou interpreta sintomas. É uma metodologia muito simples, com a qual a pessoa vai aprender a escutar, fazer perguntas, respeitar as diferenças e observar as regras para que a roda não se torne um espaço de manipulação ideológica. Além disso, temos notado que é comum cuidadores darem melhor aquilo que não receberam, ou seja, a carência gera competência. Pessoas que estão trabalhando em prol de uma cultura de paz são aquelas que conheceram a violência na própria carne, na família, ou em seu contexto social.
Agência Brasil: Além da valorização dos recursos comunitários e individuais, quais os principais pressupostos desenvolvidos ao longo de três décadas?
Barreto: O de que qualquer pessoa, independentemente do nível socioeconômico e cultural, detém um saber que pode ser útil aos outros. Um saber que vem da experiência de vida. Cada vez que uma pessoa supera um problema, constrói um saber que, na maioria das vezes, é esquecido se não for compartilhado. Na terapia comunitária, esse saber é socializado. Por isto, uma das regras das rodas é que as pessoas falem de si sempre na primeira pessoa, contando algo que vivenciaram. O que nos interessa quando perguntamos se alguém mais viveu ou está vivendo algo parecido é a estratégia que cada um adotou para superar a questão. Isso vem à tona na forma de relato, e não de conselho ou discurso. Ao fim do encontro, a pessoa que sugeriu o tema leva consigo, para refletir, várias possibilidades de lidar com o problema
Barreto: Geralmente tem sido assim.
Agência Brasil: Quais os temas mais frequentemente sugeridos para debate?
Barreto: Primeiro, o estresse causado por medo, raiva e toda sorte de emoções. Em segundo, os conflitos ou questões familiares. Depois, a solidão, violência e a dependência a diversas substâncias.
Agência Brasil: Além dos depoimentos dos próprios frequentadores, há estudos acadêmicos indicando a eficácia da metodologia?
Barreto: Entre 2004 e 2012, realizamos ao menos três pesquisas em conjunto com o Ministério da Saúde e com a Secretaria Nacional Antidrogas [Senad]. Obtivemos resultados indicando que mais de 80% das pessoas que chegavam em busca de um remédio, de um especialista, resolveram os seus problemas apenas com a terapia comunitária. Isso demonstra que a grande maioria estava precisando apenas de alguém que as acolhesse, que as escutasse. A minoria precisou ser encaminhada para um especialista. Na capacitação que oferecemos junto à Senad, vimos que, às vezes, ao deixar a internação, o viciado em drogas se volta para a mesma rede [de conhecidos], visitando os mesmos amigos, os mesmos lugares. Aí, tem uma recaída. Já onde há terapia comunitária, se ele começa a frequentar as rodas uma vez por semana, vai criando novas redes, com novos amigos, e isso reduz muito os riscos de recaída.
Agência Brasil: Em 2017, a terapia comunitária foi incluída no rol das Práticas Integrativas Complementares, do SUS. Isso reforçou o caráter de institucionalização da metodologia. Com isso, onde já é possível encontrar rodas comunitárias e como é feita a formação de terapeutas?
Barreto: No Brasil, temos, hoje, 42 polos formadores. Só pela Universidade Federal do Ceará já foram certificados 37 mil pessoas. Em toda a América Latina, cada país tem ao menos um polo formador. No total, a terapia comunitária está sendo aplicada em 25 países. Na Europa, por exemplo, estamos capacitando trabalhadores da Cáritas italiana que está recebendo migrantes africanos. Rodas de terapia comunitária estão acontecendo nas paróquias italianas que têm recebido esses imigrantes.
Agência Brasil: Qual é, a seu ver, a maior contribuição da terapia comunitária?
Barreto: Aprender a conviver, não é fácil. Sobretudo a conviver com as diferenças. E a terapia comunitária tem proporcionado algumas respostas. Motivar as pessoas a partilharem suas experiências em um ambiente público e vê-las sendo aplaudidas, elogiadas, criando vínculos, é vê-las se empoderando. O que determina nossa ação é nossa visão de mundo. Se eu vejo estas pessoas como carentes, desenvolvo uma pedagogia de lhes dar, seja roupa, comida, água ou conselhos. Já se olhamos essas pessoas como quem também possui as soluções de que necessitam, então estamos construindo algo coletivo.
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