Legislação alimenta tráfico e fortalece facções, afirma revista

Nas cadeias, tráfico de droga nao é coibido

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Nas cadeias, tráfico de droga nao é coibido

Nos primeiros 20 dias do ano, o Brasil registrou 116 mortes sangrentas em presídios do País. Cabeças decapitadas, corpos carbonizados e membros humanos arrancados à força expuseram o colapso do sistema prisional.

Como resposta aos problemas da superlotação, precariedade de condições e guerra entre facções criminosas, o governo propôs a construção de novos presídios e, para conter as rebeliões, liberou as Forças Armadas para atuar dentro das cadeias. Ações como essas, porém, não conseguirão estancar o sangue que escorre nas celas amontoadas de detentos.

Tampouco a realidade violenta das ruas brasileiras. Quanto mais se prende, mais violência se cria. Encarcerar não nos garante mais segurança. Pelo contrário, nos deixa à mercê de um estado paralelo criado pelo crime organizado. A raiz do problema é profunda, intrincada em uma complexa estrutura social e judicial. E começa na legislação. Enquanto a Lei de Drogas criminalizar a produção, o comércio e o consumo de substâncias ilícitas, permitirá que mesmo usuários com pequeno porte de droga sejam presos e, consequentemente, se tornem mão de obra para as facções criminosas que dominam os presídios.

Além disso, a manutenção da ilegalidade possibilita que as facções continuem controlando o comércio e financiando seu poderio. “É preciso atingir os problemas estruturais, revisar a política de drogas, incentivar penas alternativas e desencarcerar”, afirma Isabel Lima, coordenadora da área de Violência Institucional e Segurança Pública da ONG Justiça Global.

Recentemente, uma sequência de conflitos explicitou a profunda crise penitenciária que atinge diversos estados. Na quinta-feira 19, o Batalhão de Choque da Polícia Militar entrou no presídio de Alcaçuz, em Natal, após seis dias de rebelião.

No mesmo dia, horas antes, estragos causados por mais um conflito no Presídio Masculino de Lages, em Santa Catarina, exigiram a transferência de pelo menos 133 detentos da unidade. O prédio abriga 267 homens em um espaço destinado à metade disso. Situações como essas demonstram que, há tempos, o sistema carcerário não cumpre com seu objetivo primordial de ressocializar o indivíduo.

Pelo contrário, uma conjuntura assim revela uma realidade insustentável. No cerne do problema está o encarceramento em massa provocado, sobretudo, pela Lei de Drogas. Hoje, 28% dos presos são condenados por tráfico de entorpecentes. “A legislação falida, irracional e danosa é um dos principais fatores da tragédia vivida no sistema prisional brasileiro”, diz Maria Lúcia Karam, juíza e diretora do Law Enforcement Against Prohibition Brasil. “As condições degradantes e as superlotadas prisões acirram os conflitos, onde o equilíbrio é precário e qualquer desentendimento pode desembocar em violência”, diz.

BOMBA RELÓGIO
O tamanho da crise penitenciária no Brasil

40º lugar
entre os países com a maior população carcerária

622 mil
presos em todo o País

171 mil
pessoas estão presas por tráfico de drogas

250 mil
é o déficit de vagas no sistema prisional

575%
é o crescimento da população carcerária entre 1990 a 2014

70%
das mulheres presas respondem por tráfico de substâncias ilícitas

28%
da população carcerária responde por tráfico de drogas

A Lei de Drogas em vigor no Brasil é de 2006. Desde então, até 2014, a população carcerária cresceu 85%, segundo a Human Rights Watch. Houve um aumento de 18% ao ano de pessoas encarceradas por tráfico. Isso porque a pena mínima passou de três para cinco anos de prisão. Quando surgiu, a legislação foi considerada um avanço, porque despenalizava o usuário com a sentença de prisão. Hoje, porém, é vista como um retrocesso, uma vez que o juiz considera circunstâncias pessoais e sociais, local da apreensão, quantidade e natureza da droga, entre outros fatores, para distinguir usuário e traficante – o que gera o chamado encarceramento seletivo. “Esse dispositivo legal abriu uma brecha enorme para que jovens, negros, pobres e moradores de favelas sejam rotulados como traficantes, mesmo que tenham uma pequena quantidade de droga”, afirma a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC) e ex-diretora geral do sistema penitenciário do Rio de Janeiro. “Já o menino branco de classe média dificilmente vai responder por tráfico e, caso aconteça, poderá bancar um advogado.”

REVISÃO DE PENAS
Nas prisões, o comércio de drogas não é coibido. Ao contrário, ele surge como atividade principal de poderosas facções criminosas que lá encontram mão de obra disponível. Apesar de o chamado “tráfico privilegiado”, em que não existem relações com organizações criminosas, não ser mais considerado crime hediondo, detidos continuam sendo colocados nas mesmas celas de autores de estupros e homicídios.

“Existem muitas pessoas que trabalham no mercado das drogas, são encarregadas de embalar e transportar a substância e nunca cometeram atos de violência. Elas poderiam cumprir penas alternativas, porém são destinadas a esses lugares”, afirma Ana Paula Pellegrino, pesquisadora do Instituto Igarapé. “Por isso é preciso rever a lei no aspecto da proporcionalidade da pena.” Essa falta de critérios objetivos para a detenção gera um exército de pessoas disponíveis para o recrutamento do crime organizado. Para agravar o quadro, o tráfico também é responsável por boa parte das prisões provisórias no Brasil. Hoje, cerca de 40% da população carcerária corresponde a presos que aguardam julgamento.

Uma série de atividades acessórias fazem pessoas com menor poder aquisitivo serem punidas. “Com a descriminalização ocorreria uma grande mudança”, diz Nara de Souza Rivitti, coordenadora da área de presos estrangeiros da Defensoria Pública da União. As mulas – pessoas que transportam as drogas – são a ponta mais vulnerável do sistema. E as mulheres, a maioria delas. Na Justiça, há um entendimento de que a pena para essas pessoas poderia ser mais branda. Porém, na prática, isso não ocorre. “Cada juiz tem um entendimento em relação à aplicação da pena. Com a descriminalização, esse grupo não seria tão afetado e as investigações e punições poderiam se concentrar nos chefes do tráfico”, afirma ela. Diferentemente do que ocorre na prática, o judiciário brasileiro precisa assumir um papel central no que se refere à descriminalização e à crise penitenciária. “A mentalidade dos juízes está atrasada porque atuam sob uma cultura punitiva”, diz Isabel, da Justiça Global. “Se uma corte constitucional declarasse que o uso de drogas não é crime, uma massa de pessoas presas deixaria de ser alvo da polícia”, afirma Rafael Custódio, coordenador do Programa de Justiça da ONG Conectas.

MUDANÇA NA LEI
Descriminalizar é, na verdade, um imperativo da própria democracia. “Não se pode dizer para um indivíduo adulto o que ele pode ou não ingerir, isso é um pressuposto básico e mostra o quão atrasados estamos”, afirma o advogado Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim) e secretário executivo da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas. Considerado marco zero do processo de revisão da lei, a ação que corre no Supremo Tribunal Federal (STF) e que julga o caso de um homem punido pela posse de 3g de maconha pode alterar sobremaneira a dinâmica das condenações. O processo existe desde setembro de 2015 e deveria ser retomado neste ano, mas novos encaminhamentos serão dados após a morte do ministro Teori Zavascki, que na época da discussão pediu vista do tema para apurar sua análise.

A votação havia se encerrado com 3 votos a 0 a favor da descriminalização. Está em debate a possibilidade de o País descriminalizar todas as drogas e estabelecer quantidades máximas para designar o que é crime de tráfico e o que é consumo próprio. A discussão envolve não só a maconha, mas se estende a outros entorpecentes ao discutir a inconstitucionalidade do artigo 28 da lei, que tipifica como crime “adquirir, guardar, transportar para consumo pessoal drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar e semear, cultivar ou colher, para seu consumo pessoal, plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica”. “Rever isso seria uma maneira de começar a trazer para outro plano essa questão porque o tipo de política que a gente vem seguindo não tem trazido benefícios”, afirma o ex-ministro da Justiça José Gregori.

Descriminalizar é um primeiro passo, porém pequeno demais diante da falência da estrutura de combate ao tráfico que existe atualmente e que culmina na crise do sistema prisional. Especialistas acreditam que tirar o tema da Justiça Penal é uma medida insuficiente, pois não tangeia o mercado e o monopólio criminal da droga, a estrutura que sustenta e financia o crime organizado. Para a juíza Maria Lucia Karam, é preciso legalizar e, consequentemente, regular e controlar a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas. “Essa é a principal medida para conter o vertiginoso crescimento do número de presos no Brasil”, afirma.

MERCADO DA MACONHA NO BRASIL

2.744.712
pessoas usam maconha mensalmente

Caso a maconha fosse legalizada no País:

R$ 5,7 bilhões
seriam movimentados

R$ 5 bilhões
em arrecadação tributária

A drástica mudança deveria vir acompanhada de um programa sólido, ligado principalmente à área de saúde pública, que permitisse o acesso a informações e auxílio a usuários viciados. “É uma política complexa, precisa de investimento e envolve uma situação de saúde”, afirma Francisco Netto, coordenador executivo do programa Álcool, Crack e outras Drogas da Fiocruz. “Não podemos sucumbir ao pânico moral por algo que sempre existiu. Proibir gera um círculo vicioso de ilegalidade, violência e aumento no número de usuários.” A Organização das Nações Unidas (ONU) também já assinalou, no ano passado, que usuários das drogas devem ser tratados pelo viés da saúde pública, e não da criminalidade, como vinha se posicionando até então.

“Não se pode dizer para um indivíduo adulto o que ele pode ou não ingerir, isso é um pressuposto da democracia e mostra o quão atrasados estamos” Cristiano Maronna, presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim)

Boa parte dos recursos aplicados à manutenção de um sistema carcerário ineficiente poderia ser direcionada à saúde pública. Nesse aspecto, a descriminalização, não só da maconha como também de drogas mais pesadas, seria fundamental. Os países que seguiram essa alternativa tiveram uma diminuição nos índices de mortes por overdose e nas taxas de doenças transmissíveis em função do compartilhamento de seringas.

“No Brasil também teríamos um maior acesso do usuário ao sistema de saúde, já que não estariam na esfera criminal”, afirma Luis Fernando Tófoli, professor de psiquiatria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do laboratório de estudos interdisciplinares sobre psicoativos. “O sistema de atendimento precisa de uma rede plural para quem quer abstinência, redução de danos, entre outros. Cada usuário tem uma necessidade diferente.”

Na América do Sul, o atraso do Brasil em discutir o tema se compara somente ao do Suriname e das Guianas. Os países tipificam o porte de droga como delito penal. Se comparados a outras nações, estamos ainda piores (leia na pág. 60). Diante da conjuntura mundial e da falência das tentativas até hoje empreitadas para conter o avanço da criminalidade ligada às drogas, fica evidente que chegou a hora de o País rever sua legislação. Há uma política falida, que gera mais violência e mais usuários. “Precisamos lutar por uma sociedade ética, onde pessoas tenham liberdade para fazerem o que quiserem ainda que lhes faça mal, e só a elas”, afirma a psicóloga e psicanalista Viviane Mosé. Ou buscamos alternativas ou teremos que nos acostumar com mais presídios, mais rebeliões e mais violência.

A LEGISLAÇÃO NO MUNDO

Portugal
O país descriminalizou todas as drogas em 2001. Ao contrário do que se previa, a quantidade de usuários diminuiu nos últimos 14 anos. Em 2011, o consumo havia caído pela metade. Cerca de 15 mil pessoas estão em tratamento para abandonar o vício

Uruguai
Único país no mundo a legalizar o cultivo, a comercialização e a distribuição da maconha e deixar todo o ciclo sob controle do Estado. Desde 2013, maiores de 18 anos podem comprar e cultivar a cannabis mediante cadastro

Argentina
Desde 2009, vigora uma lei que descriminalizou o uso de maconha. O usuário, porém, não pode vender, transportar ou cultivar. É livre para fazer uso em lugares privados

Estados Unidos
Em 2012, a política de drogas mudou no país. Estados como Colorado, Washington, Washington DC, Oregon e Alasca legalizaram o consumo recreativo da maconha. Outras regiões autorizaram o uso da cannabis para fins medicinais

Holanda
O porte de até 5 gramas e o cultivo de até 5 pés é aceito. É reconhecida pela política de redução de danos, com salas para usuários com seringas descartáveis. É famosa pelas “coffee shops”, onde a venda da maconha é permitida.

Espanha
A lei descriminaliza o porte para uso pessoal desde 1982. São permitidas até 200 gramas de maconha, 7,5 de cocaína e 3 de heroína.

IMPACTO NA SAÚDE 

Em 2014, o Brasil gastou R$ 798,3 milhões
com internações e tratamento de transtornos mentais relacionados às drogas, sendo que
0,8% das internações estão relacionadas ao uso da maconha, o equivalente a
R$ 6,2 milhões do total de internações por droga

Fonte: Impacto Econômico da Legalização da Cannabis no Brasil – Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados, 2016

 

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