‘Como paramos no tempo se há 500 anos lutamos por nossas terras?’: índios criticam
Novo presidente da Funai, Antônio Costa, disse que alguns índios brasileiros não podem “ficar parados no tempo”
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Novo presidente da Funai, Antônio Costa, disse que alguns índios brasileiros não podem “ficar parados no tempo”
Líderes indígenas, associações indigenistas e o Ministério Público Federal reagiram a declarações do novo presidente da Funai, Antônio Costa, para quem alguns índios brasileiros não podem “ficar parados no tempo”, devendo ser inseridos no “sistema produtivo”. As afirmações, contudo, agradaram a bancada ruralista no Congresso.
Em entrevista à BBC Brasil publicada na quarta-feira, Costa – que assumiu a Funai há dois meses e meio – afirmou que buscará recursos para financiar atividades econômicas dentro de terras indígenas, como plantação de grãos, criação de peixes e extração de castanhas.
“Claro que algumas áreas remotas continuarão sobrevivendo com seu cultivo e extrativismo (em pequena escala), mas não vejo como índios de Mato Grosso do Sul, nem de Mato Grosso, onde as terras são férteis, possam ficar parados no tempo, vendo ao seu redor a produção dos não índios crescendo, sem que eles tenham condições de produzir”, disse o presidente.
Coordenadora-geral da União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), Telma Taurepang afirmou à BBC Brasil ter ficado “revoltadíssima” com as declarações do novo chefe da Funai.
“Como estamos parados no tempo se estamos lutando há mais de 500 anos para que não destruam nossas terras?”, questionou.
Taurepang, que vive em Roraima, criticou a avaliação de Costa sobre o potencial econômico das terras indígenas. Para o chefe do órgão federal de defesa dos índios, esses territórios deveriam ser tratados como áreas de “segurança nacional” porque abrigam as últimas reservas de madeira, minérios e rios represáveis do país.
Para a líder indígena, Costa tem um pensamento predatório. “No dia em que esse povo acordar e ver que não pode comer petróleo, quando esse povo acordar e não conseguir respirar ar puro, talvez seja tarde demais.”
Ruralistas
Presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré criticou a relação entre o presidente da Funai e a bancada ruralista. Na conversa com a BBC, Costa disse não ver “sentimento contra o índio” em ruralistas. “Ele (produtor rural) tem um sentimento de defesa da sua terra, como o índio também tem”, afirmou na ocasião o presidente da Funai.
Referindo-se aos ruralistas como “classe contrária” aos índios, Baré afirmou que Costa “não tem nenhum compromisso institucional com o órgão que assumiu”. “Ele tem a missão institucional de levar adiante a política indigenista do país, e não os interesses obscuros da classe contrária.”
Ele também condenou a opinião do presidente da Funai sobre pregação religiosa nas aldeias. Costa, que é pastor evangélico e foi indicado ao cargo pelo Partido Social Cristão (PSC), disse exercer suas funções tecnicamente, mas afirmou não se opor ao proselitismo religioso nas comunidades.
“Todas as instituições religiosas que seguem a palavra de Deus têm de buscar pessoas que venham a conhecer a palavra de Deus. Por que os índios não, se é a vontade deles?”, disse Costa na entrevista. Para o chefe da Funai, a presença de missionários não afeta a cultura dos indígenas.
Confrontado com as declarações, Baré questionou a opinião de Costa. “Se a presença das igrejas não afetasse (os índios), muitos povos não teriam sido dizimados desde que entraram em contato com elas.”
Polêmica
Coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa, que agrega comunidades guaranis do Sul e Sudeste do Brasil, Tiago Karai afirma que o presidente da Funai revelou ignorância ao se manifestar sobre seu povo.
Na entrevista, Costa citou os guaranis ao afirmar que o Estado brasileiro deveria dar assistência aos indígenas para que não dependessem do “assistencialismo”. “Exemplo: índios guaranis são coletores. Temos de dar tecnologia para que eles possam plantar em suas terras e ser cultivadores”, disse Costa.
Para Karai, porém, o presidente da Funai demonstra ter uma “visão muito errada” do povo. “Os guaranis são agricultores. É complicado que alguém que representa o órgão indigenista não tenha um mínimo conhecimento dos povos indígenas.”
Karai enviou à reportagem fotos de variedades raras de milho cultivadas há séculos por seu povo.
Para ele, a fala do presidente sugere ainda que os indígenas são “inferiores”. “Parece que a gente deveria pensar em plantar soja, cana, milho em grande escala para vender. Só que o indígena não tem esse pensamento, a gente planta para comer e trocar com outros povos, esse é o nosso interesse.”
A entrevista de Costa também motivou críticas entre antropólogos e no setor do Ministério Público Federal que lida com populações indígenas.
Para Henyo Barretto, professor de antropologia da Universidade de Brasília e coordenador da Comissão de Assuntos indígenas da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), Costa comete um “grave disparate” ao querer “integrar os índios exatamente nos sistemas que esgotaram os mananciais hídricos, as florestas e as madeiras”.
“Soa quase como um convite para que os índios destruam seu próprio patrimônio ambiental.”
Mineração
O professor diz ainda que Costa revelou um “grave desconhecimento” ao afirmar que, caso seja regulamentada pelo Congresso, a mineração em terras indígenas não exigiria a autorização das comunidades.
Segundo o presidente da Funai, a autorização não seria necessária porque as terras indígenas pertencem à União. “Mas eles deveriam ter uma participação no produto, e com isso haveria uma forma de amenizar os problemas sociais que eles vivem”, disse Costa.
Barretto lembra que o terceiro parágrafo do artigo 231 da Carta diz que “o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
Para Barretto, “ignorar que as comunidades precisam ser ouvidas em relação a qualquer empreendimento é desconhecer o que a Constituição prevê”.
Para o subprocurador-geral da República Luciano Mariz Maia, que coordena a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal, Costa deveria levar em conta a complexa relação dos indígenas com seus territórios.
“Uma terra para o índio é o espaço em que ele se encontra, e a terra faz parte dele próprio. Não é uma questão de quantas cabeças de gado ele pode ter no campo, ou quantas toneladas de grãos ele pode extrair, quantas toneladas de peixe pode pescar, mas quanto de vida ele consegue ter a partir daquele rio, a partir daquelas matas, a partir daquela terra.”
História
Maia afirma ainda que, quando o presidente da Funai cita na entrevista os problemas que alguns grupos indígenas enfrentam hoje para ser autossustentáveis, ele também deveria citar as causas dessa situação.
“As condições a que os índios são submetidos hoje não decorrem da vontade dos índios, mas da interferência externa de fazendeiros, garimpos, mineradoras, hidrelétricas e as frentes de expansão econômica que produziram a expulsão dos índios de suas terras”.
Para Marcio Santilli, sócio-fundador do ISA (Instituto Socioambiental) e presidente da Funai entre 1995 e 1996, “a substituição da responsabilidade do Estado pela pregação dos recursos naturais das terras indígenas foi largamente praticada durante a ditadura militar, com desastrosas consequências econômicas, ambientais e de desintegração social dos povos indígenas”.
“Pero Vaz de Caminha, em 1500, após relatar a abundância e a limpidez das águas do Brasil, pediu ao rei de Portugal para ‘salvar esta gente’, sendo que agora somos nós que estamos com as torneiras secas”, afirma.
Elogios
Já as declarações de Costa foram elogiadas pelo presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (bancada ruralista), o deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT).
Segundo Leitão, o presidente da Funai “se mostrou sintonizado com a nova realidade do indígena, e não a de porta-vozes dos indígenas, que defendem interesses que nada têm a ver com as necessidades desses povos”.
“Há muitas diferenças entre indígenas do Norte e do Sul do Brasil. O indígena mudou, não pode mais ser tratado como um retrato na parede”, diz Leitão.
O deputado afirma ainda que “muitos povos querem produzir, querem acessar a tecnologia, querem se inserir no mercado”. “Temos de oferecer todo apoio a eles.”
Leitão exaltou ainda a aproximação entre o novo presidente da Funai e o Congresso. Na entrevista, Costa disse ter recebido mais de “40 deputados e senadores de todos os segmentos”, vários deles membros da bancada ruralista.
“A Funai por muito tempo teve uma atuação muito ideológica. É muito bom ver que as coisas estejam mudando.”
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