A distribuição de medicamentos antirretrovirais, aqueles usados por pessoas que convivem com o vírus HIV, é feita há 26 anos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), gratuitamente. Porém, mudança recente no esquema de entrega dos antirretrovirais em tem revoltado quem depende do serviço por colocar em risco sigilo garantido por lei.

Localizado no bairro Nova Bahia e administrado pelo município, o Cedip (Centro de Doenças Infecto Parasitárias) atende pessoas que convivem com o HIV e outras doenças como chagas, esquistossomose e tuberculose. É um dos pontos de entrega a parte dos 8 mil pacientes cadastrados para receber as medicações.

Entre os principais pontos do serviço estão o sigilo e a privacidade dispensados durante todo o protocolo de cadastro e retirada dos antirretrovirais. A situação é, inclusive, prevista em lei federal sancionada em janeiro deste ano pelo presidente Jair Bolsonaro.

Mas, em Campo Grande, reforma na estrutura do Cedip Nova Bahia coloca em risco o sigilo garantido pela lei, conforme relatos de usuários obtidos pela reportagem. Isso porque uma das salas destinadas à entrega dos antirretrovirais passou a contar com janelas de vidro, uma espécie de aquário, que expõe quem precisa receber a medicação para dar sequência ao tratamento.

Leitor do Jornal Midiamax que retira medicação a cada três meses, conta que antes da reforma, a entrega dos remédios ocorria de forma privada. Agora, porém, o esquema mudou. Enquanto os profissionais ficam “dentro” do aquário, pacientes ficam na parte externa e ali recebem os antirretrovirais.

“A privacidade é muito importante porque muitos desses pacientes sofrem estigma social por viverem com HIV, pois não tem remédio pro preconceito e para a discriminação. Tem gente que até muda o frasco da medicação no momento que pega o antirretroviral porque a família não sabe do diagnóstico, por exemplo. Agora você não retira mais a medicação em um local reservado por causa dos vidros e isso expõe as pessoas”, explica.

Ele explica que a entrega era feita numa pequena sala, na qual a receita era apresentada e os medicamentos entregues. “Para você ter uma ideia, lá dentro tinha um depósito de lixo de 1,2m de altura, porque as pessoas colocavam frascos vazios e as caixas, porque ao sair da sala tinha uma fila de gente aguardando a vez. Tem gente que troca o frasco, coloca em pote de outros medicamentos, e fazia isso com tranquilidade lá dentro. Agora, não faz mais”, comenta.

Sigilo em risco

Na lei publicada em janeiro deste ano, há um trecho específico sobre o sigilo nas unidades de saúde. A nova legislação atualizou pontos do regramento em vigor desde 1975.

§ 2º O atendimento nos serviços de saúde, públicos ou privados, será organizado de forma a não permitir a identificação, pelo público em geral, da condição de pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV) e das hepatites crônicas (HBV e HCV) e de pessoa com hanseníase e com tuberculose.

Manual elaborado pelo Ministério da Saúde e distribuído para gestores de unidades de saúde também detalha que o sigilo é um dos principais pontos a serem observados na implementação do Manejo da Infecção pelo HIV na Atenção Básica.

Fonte: Ministério da Saúde

Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB-MS, o advogado Henrique Dias disse ao Jornal Midiamax que a lei é clara em explicitar que o atendimento em serviços de saúde deve ocorrer de forma sigilosa.

Henrique é presidente de comissão da OAB-MS (Foto: Arquivo Pessoal)

“A Prefeitura vinha fazendo um ótimo serviço com a distribuição sigilosa dos medicamentos. Entretanto, com essa reforma e dos usuários e medicamentos, ela está infringindo não só a lei como está colocando em risco a saúde dos pacientes, uma vez que o sigilo é o maior incentivador a adesão do tratamento, e uma vez quebrado, várias pessoas desistem de tomar, desenvolvem a e, por fim, acabam com a saúde muito prejudicada ou até mesmo vão a óbito”, explica Henrique.

Para o advogado, o espaço do Cedip necessita de adequações em caráter “emergencial”.

Por outro lado, o presidente da Rede Positiva Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Casos AIDS, Almir Guimarães afirma que a mudança na estrutura do Cedip, em sua avaliação, não causa grandes exposições aos usuários que retiram a medicação porque o espaço não é específico para quem convive com o HIV.

“Precisamos lembrar que aquela unidade atende pessoas com outras patologias, então, em tese, não teria como uma pessoa saber se quem entrou ali foi buscar um antirretroviral ou medicamento para outra patologia”.

Contudo, Almir afirma que a deve avaliar as reclamações de usuários e analisar uma possível adequação no espaço, como fixação de adesivos na janela de vidro para propiciar mais privacidade a quem busca o serviço.

Voluntário na retirada de medicamentos para pessoas que nem cogitam se expor nas farmácias, uma fonte ouvida pelo Jornal Midiamax e que não será identificada aponta a reforma como um retrocesso.

“Não adianta por adesivo se a dispensa continua sendo feita de um lado para o outro do vidro. Quem vai retirar está na recepção, que às vezes tem bastante gente e até fila. Os medicamentos para pessoas com HIV são conhecidos, e a dispensa é feita para três meses, ou seja, são 6 frascos que fazem bastante volume. É comum gente entrar lá com uma bolsa, para não ficar na cara que são os antirretrovirais”, comenta.

Ele completa que não é raro encontrar no Cedip pessoas do mesmo círculo social. “Muita gente vive normalmente com o vírus e, ao aderir corretamente ao tratamento, não consegue transmitir o vírus. Por isso mesmo, não precisa sair contando. Quando essa entrega não é feita particularmente, fica muito claro que a pessoa tem HIV e se o local não preza por esse sigilo, ele fica completamente comprometido. Os medicamentos mudaram, mas a sociedade, infelizmente, não evoluiu. Se fosse ok, não seriam necessárias leis que garantem o sigilo dos pacientes”, conclui.

O que diz o município

Questionada pela reportagem, a Sesau (Secretaria Municipal de Saúde Pública) informou que mensalmente 1,5 mil entregas de medicações são feitas na unidade do Nova Bahia. A reforma, segundo o município, tem objetivo de aumentar a capacidade de entrega dos remédios e acabar com fila que até então se formava no espaço.

“Com a reforma, a unidade foi beneficiada com a ampliação da farmácia, oportunizando tanto a dispensação em consultório farmacêutico, quanto a dispensação nos mesmos moldes de toda a Rede de Saúde de Campo Grande – guichê, a exemplo das demais farmácias especializadas do Brasil”.

A Sesau justifica, ainda, que em caso de início de tratamento ou troca de esquema de antirretrovirais, a orientação é que o paciente seja submetido à consulta individual com farmacêutico. Para isso, segundo a Prefeitura, há um espaço privativo para a consulta da pessoa que convive com o HIV.

“Para os demais casos, fica optativo ao paciente a retirada de medicação rápida em guichê, ou a consulta farmacêutica com aconselhamento e orientações, que pode ser realizada em ambiente individualizado”.

A secretaria não respondeu se pretende fazer alterações no espaço diante das reclamações dos usuários.