O primeiro caso do vírus HIV – que pode desenvolver a Aids quando não tratado – foi descoberto há 40 anos. A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Aids) chegou nos anos de 1980 ao Brasil, com o primeiro caso registrado no Estado de São Paulo. Naquela época, as taxas de infecção subiram exponencialmente ao longo da década, especialmente por falta de tratamentos eficazes e informação. Mas o cenário mudou depois de muita pesquisa, avanços e descobertas científicas.

O Brasil, então, tornou-se referência mundial no controle da doença, reconhecido pela ONU (Organização das Nações Unidas) pela luta contra a Aids, mobilizando a sociedade civil, o governo e agências multilaterais na formulação de políticas de prevenção e tratamento. Atualmente, o país oferece medicação para HIV e ações de prevenção gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde) para toda a população. Em Campo Grande, essa função fica por conta do CTA (Centro de Testagem e Acompanhamento).

Apesar dos estudos comprovarem a eficácia das medicações na qualidade e expectativa de vida dos pacientes, especialistas afirmam que o que mais mata, na verdade, é o preconceito e o conservadorismo que permeia o universo dos portadores de HIV. Assunto considerado tabu e carregado de estigmas nas esferas sociais, o HIV precisa ser discutido para aumentar o repertório de conhecimento da população sul-mato-grossense. Por isso, neste Dia Mundial do Combate ao HIV (1º), o Jornal Midiamax propõe essa conversa. 

É importante entender: HIV não é Aids

“Como assim HIV não é Aids?” Isso mesmo que você leu, apesar de estarem relacionadas, as palavras significam coisas bem distintas. O HIV (Human Immunodeficiency Virus) é o vírus que provoca a imunodeficiência humana. 

Conforme a infecção pelo HIV avança, o sistema imunológico vai enfraquecendo até não conseguir mais combater outros agentes infecciosos. Quando isso acontece é que a pessoa desenvolve a Aids. Ou seja, a diferença entre HIV e Aids, é que HIV é o vírus que pode provocar a Aids (Acquired Immune Deficiency Syndrome).

Quando uma pessoa tem a característica do HIV, mas faz o tratamento adequado, ela não desenvolve a doença e o vírus fica indetectável no organismo. Assim, ela não tem sintomas e nem transmite o HIV. Portanto, é um estigma muito grande acreditar que uma pessoa portadora do vírus é uma pessoa doente. O HIV, então, é uma condição crônica, igual a diabetes.

“Como o tratamento está bastante eficaz, a pessoa tem uma vida normal com qualidade de vida ótima. Muitos estudos já estão trazendo que a expectativa de vida de quem vive com HIV e faz o tratamento regular, é a mesma de quem não vive com o vírus. Então, hoje o ponto mais importante do HIV é o início do tratamento e um tratamento regular, que daí a pessoa vai ter uma qualidade e expectativa de vida muito boa”, afirmou Roberto Paulo Braz Junior, médico de família do CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) de Campo Grande. 

I = I: Indetectável é igual a Intransmissível

A sigla “I = I” significa que o vírus do HIV, quando está indetectável, é intransmissível. Isso acontece quando o paciente faz tratamento antirretroviral regular.

“Isso é muito importante porque a gente reduz estigmas e dá uma melhor liberdade sexual da pessoa. Quando a pessoa está indetectável, ela não transmite para outras pessoas através da relação sexual, ela pode ter filhos biológicos sem qualquer necessidade de procedimento específico. Então ela pode através de métodos tradicionais ter filhos e não transmitir nem para a parceira ou para o filho”, afirmou o médico. 

Roberto CTA
Roberto Paulo Braz Junior atende no CTA de Campo Grande (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

Por isso, a adesão ao tratamento de HIV é tão importante. Em Campo Grande, os remédios são oferecidos gratuitamente pelo SUS no CTA. São dois comprimidos que devem ser tomados diariamente, geralmente no mesmo horário. Qualquer pessoa que tenha o diagnóstico pode chegar ao local, marcar uma consulta e ter o acompanhamento adequado.

“De três a seis meses após o início do tratamento, essa pessoa já tem uma supressão viral. Ou seja, o vírus fica controlado, a pessoa fica indetectável e não transmite o vírus para outras pessoas, nem vai adoecer e dar Aids porque o vírus está suprimido”, afirma Roberto.

O tratamento mudou completamente a visão do advogado e empresário Henrique Silva Dias, de 37 anos. Diagnosticado com HIV aos 26 anos, logo começou com a medicação. Ele fazia os testes a cada seis meses, então acabou descobrindo a condição logo no início. Em pouco tempo, já estava com o vírus indetectável no corpo. Sem nunca ter tido qualquer efeito colateral com os remédios, Henrique afirma que muita coisa na sua vida mudou desde então.

“O HIV mudou minha vida no sentido psicológico. No começo eu tive uma depressão muito forte, me afastei de todos os amigos, fui morar em Florianópolis de tanta vergonha e culpa que eu sentia. Porém com o tempo, terapia e muita conversa, eu fui me aceitando e limpando aqueles sentimentos que tanto me perseguiam, o que me permitiu não só a abrir minha sorologia como também tenho conseguido dar suporte a outras pessoas que precisam de acolhimento ou uma palavra amiga”, afirmou.

Henrique também criou o perfil @advogadopositivo no durante o isolamento social para encarar o seu maior medo: revelar às pessoas sobre a sorologia.

“Depois fui descobrindo no Instagram que já havia várias outras pessoas igualmente falando sobre o assunto, desmistificando o estigma que é o vírus, mostrando que basta tomar o medicamento corretamente e a vida segue normal, não tem erro”, pontuou o advogado.

Dá para fazer sexo, sim!

Impossível falar de HIV sem falar de sexo, afinal, uma das suas principais formas de transmissão é por meio das relações sexuais desprotegidas. Esse assunto gera muito incômodo na classe conservadora brasileira. Mas a ciência não mente, muito menos os dados. Como você viu acima, o tratamento é de suma importância para o controle do vírus no organismo. 

De acordo com os dados do Governo Brasileiro, cerca de 920 mil pessoas vivem com HIV no Brasil hoje. Dessas, 89% foram diagnosticadas, 77% fazem tratamento com antirretroviral e 94% das pessoas em tratamento não transmitem o HIV por via sexual por terem atingido carga viral indetectável. Em 2020, até outubro, cerca de 642 mil pessoas estavam em tratamento antirretroviral. 

Assim, especialistas afirmam que portadores de HIV que estão em constante tratamento e acompanhamento, podem ter uma vida amorosa e sexual tranquila. Mesmo se a pessoa soropositiva fizer sexo sem camisinha, ela não transmite o vírus para o parceiro dentro desse contexto. De acordo com o médico de família, o principal questionamento após o diagnóstico positivo é em relação à vida afetiva. 

“Vão ter sim pessoas que vão aceitar, que são bem informadas e que sabem que hoje em dia, com o tratamento, o vírus não é mais transmitido. Então a pessoa pode ter uma liberdade afetiva e sexual sem nenhuma restrição. E eu sempre falo para os meus pacientes que se alguma pessoa rejeitar ela por conta da sorologia, é um livramento”, afirma Roberto.

No entanto, a medicina ressalta que, independente da condição, é sempre importante ter relações sexuais com camisinha para evitar ISTs, especialmente em pessoas que possuem múltiplos parceiros. No caso do HIV, além do preservativo, existem também outros métodos bem eficazes que previnem a contaminação do vírus, como a PEP, PrEP e prevenções combinadas. Deseja saber como o HIV é transmitido? É só conferir essa tabela:

HIV
Informações oficiais do Governo Nacional (Arte: Midiamax)

 

PEP, PrEP e prevenções combinadas 

Como falado acima, existem outros métodos de prevenção contra o HIV. Um deles é a PEP (profilaxia pós-exposição), uma medida de prevenção de urgência para ser utilizada em situação de risco à infecção pelo HIV, existindo também profilaxia específica para o vírus da B e para outras infecções sexualmente transmissíveis. Ela reduz o risco de adquirir essas infecções. Assim, a PEP pode ser utilizada após qualquer situação em que exista risco de contágio, como:

  • Violência sexual;
  • Relação sexual desprotegida (sem o uso de camisinha ou com seu rompimento);
  • Acidente ocupacional (com instrumentos perfurocortantes ou contato direto com material biológico).

A pessoa deve iniciar o medicamento em até 72 horas e tomá-lo por 28 dias. Segundo Roberto, a PEP funciona como uma pílula do dia seguinte, mas para prevenir o HIV.

Já a PrEP (profilaxia pré-exposição) é um método de prevenção que consiste na tomada diária de um comprimido que permite ao organismo estar preparado para enfrentar um possível contato com o HIV, ou seja, o indivíduo já fica protegido se entrar em contato com o vírus. Nesse caso, o método é comparado ao anticoncepcional, mas para prevenir o HIV. O tratamento deve ser regular.

Remédios HIV
À esquerda, medicamento é usado na PrEP. À direita, remédio usado na PEP e tratamento de HIV (Foto: Leonardo de França/Midiamax)

O psicólogo Arthur Galvão Serra, de 33 anos, faz uso da PrEP para se prevenir desde meados de 2017 e 2018. Ele foi um dos primeiros a aderir ao tratamento quando foi implementado em Mato Grosso do Sul.

“Pelo menos uma vez a cada três meses a gente comparece ao CTA e faz os testes, dois tipos de testes de hepatites, sífilis, HIV e ISTs que não são muito sintomáticas. Daí faz esse acompanhamento a cada três meses e esse acompanhamento é muito bom porque você vai lá, descobre uma coisa e já trata”, disse o psicólogo.

Para ele, tomar o medicamento promove tranquilidade e segurança na hora de se prevenir do HIV. Além disso, afirma que ajuda a acompanhar sua saúde. 

“Acaba sendo uma forma da gente se cuidar […] eu acredito na PrEP como uma prevenção combinada. Existem algumas pessoas que usam a PrEP como uma justificativa para transar bastante, com perfis variados e sem preservativo. Na minha visão, a PrEP é junto com o preservativo”, afirma Arthur.

Dessa forma, ressalta-se a importância de adotar a prevenção combinada e associar diferentes métodos de prevenção ao HIV e demais ISTs. Além disso, o especialista do CTA ressalta que deve ser um tratamento regular.

“A pessoa tem que se comprometer porque é um acompanhamento, então ela tem que vir a cada três meses e às vezes não consegue por determinado motivo pessoal e acaba abandonando o uso. Aí, infelizmente, eu já tive uns três casos de pessoas que após uns meses tentaram voltar para a PrEP, a gente fez a testagem e deu positivo para HIV. Aí a gente muda o fluxo e a pessoa inicia o tratamento, controla e evita que esse HIV evolua para uma Aids”, afirma Roberto.

Tabela prevenção combinada
A prevenção combinada é ideal para prevenir HIV e ISTs (Foto: Reprodução/Aids.gov)

 

Você leu até aqui sobre a eficácia do tratamento para HIV, a adesão dos métodos preventivos combinados, a qualidade de vida dos portadores e provavelmente percebeu que o HIV não é esse bicho de sete cabeças que todo mundo fala. Mas afinal, por qual motivo, então, existem tantos estigmas e como eles afetam diretamente no preconceito? É o que você vai descobrir agora.

Conservadorismo e HIV: uma epidemia moral

Segundo especialistas, o que mais mata no HIV é o conservadorismo. Pensar a Aids no contexto atual de conservadorismo é um desafio essencial na luta contra a doença, uma vez que evitar falar de sexo e sexualidade na sociedade, principalmente nas escolas, é muito nocivo.

“Hoje em dia, o que mata no HIV é o preconceito e o estigma porque o tratamento já é bastante eficaz. A pessoa já tem uma boa qualidade de vida, mas tem ainda muito preconceito. Muitas pessoas têm medo de fazer a testagem para não fazer o diagnóstico, para não trazer para a vida dela todo esse estigma que existe em relação ao HIV. Então as pessoas precisam fazer o teste, precisam de diagnóstico o mais precoce possível para iniciar o tratamento e levar uma vida normal”, afirmou o médico do CTA.

Outro grande estigma existente é que o HIV só é transmitido em relações homoafetivas, o que é um grande equívoco. O vírus pode ser transmitido para qualquer pessoa, independente de classe social, raça, gênero ou orientação sexual.

“Antes a gente falava em grupo de risco, hoje em dia a gente não usa mais esse termo porque isso é discriminatório com os grupos. A gente fala em populações com maior vulnerabilidade. Hoje em dia, o HIV no Brasil ainda é concentrado em algumas populações, mas isso acontece por conta de algumas vulnerabilidades que essas populações sofrem. Mas o HIV não é restrito a ninguém”, afirma Roberto.

O advogado Henrique Silva, do @advogadopositivo, conheceu histórias de várias pessoas portadoras do HIV que já sofreram uma série de preconceitos por causa da sorologia. Elas foram barradas da musculação, demitidas do trabalho, obrigadas a usar luvas de ferro e tantas outras medidas absurdas que se possa imaginar.

Esses relatos mostram que no Brasil, atualmente, a sorofobia promove um ambiente de exclusão social aos portadores de HIV. Frequentemente relacionados à promiscuidade, essas pessoas sofrem consequências de um conservadorismo estrutural que resulta numa moral. A Lei nº 12.984, por sinal, define como crime a discriminação dos portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids. 

“Isso gera um problema de saúde pública porque quem costuma fazer mais as testagens são as pessoas desses grupos que eram julgadas como ‘de maior risco'. Então gays, travestis, transexuais são os que mais fazem as testagens. E as pessoas heterossexuais, pessoas cis, acabam não fazendo o teste por se acharem protegidas do vírus. Isso é uma visão totalmente errada, todo mundo precisa fazer a testagem”, afirma o médico.

CTA: serviços e atendimentos 

O CTA (Centro de Testagem e Aconselhamento) fica localizado na rua R. Anhanduí, nº 353, Vila Carvalho, perto do Horto Florestal, em Campo Grande. Todos os medicamentos e tratamentos mencionados na matéria são oferecidos gratuitamente no espaço. No local, eles também promovem vários tipos de atendimento, tudo sem custo:

  • Tratamento de todas as pessoas que vivem com HIV;
  • Testagem e tratamento de ISTs;
  • Consultas médicas;
  • Vacinação para ISTs;
  • Acompanhamento e aconselhamento;
  • Distribuição de remédios.

Nesta quarta-feira (1º), em comemoração ao mês Dezembro Vermelho da conscientização do HIV, o CTA realizará uma programação especial ao longo do dia com distribuição de camisetas, preservativos, kits para profissionais do sexo e realização de palestras no local e em outras unidades de saúde de Campo Grande.

CTA na Capital
(Foto: Leonardo de França/Midiamax)

 

HIV: o preconceito tem cura

Esta quarta-feira, 1º de dezembro, é o Dia Mundial de Luta contra a Aids. Como você viu até aqui, a data oportuniza a reflexão sobre o “preconceito e a discriminação”, que são, na verdade, as duas maiores barreiras contra as pessoas que vivem com o vírus HIV. 

Os estigmas relativos à doença são os principais empecilhos no combate à epidemia, ao diagnóstico, ao adequado apoio, à assistência e ao tratamento da Aids. Também são desencadeados por motivos que incluem a falta de conhecimento, mitos e medos. Portanto, ao discutir preconceito e discriminação, as autoridades ligadas à Saúde esperam reduzir este problema associado à Aids. 

“É importante pra gente quebrar o estigma. O preconceito e o estigma são o que ainda mantêm o HIV em status de epidemia. Então a gente falando sobre o assunto, levando informação, ajuda muito a esclarecer, a deixar as pessoas mais abertas sobre o tema, realizar as testagens, fazer o diagnóstico precoce, porque se a gente consegue fazer um diagnóstico precoce e iniciar o tratamento, a gente quebra a barreira de transmissão e acaba controlando essa epidemia. Se a gente não falar sobre, nunca vamos conseguir controlar o HIV”, finaliza Roberto.