O veneno está na Terra: MS teve 373 casos de contaminação por agrotóxicos nos últimos anos

29 crianças estão entre as vítimas

Ouvir Notícia Pausar Notícia
Compartilhar

29 crianças estão entre as vítimas

O veneno não está só na mesa: ele está na terra. A terra nesse caso é Mato Grosso do Sul, que de acordo com o projeto de pesquisa “Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil”, da pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) Larissa Mies Bombardi, teve 373 casos de contaminação por agrotóxicos entre 2007 e 2013. A pesquisadora se prepara para lançar um verdadeiro “Atlas” dos agrotóxicos no Brasil.  Larissa conseguiu os números pelo sistema de notificações no Ministério da Saúde. Ainda assim, de acordo com ela, a contagem preocupa, já que há uma margem de sub notificações no Sistema.

“Deve-se considerar que há uma subnotificação muito grande, ou seja, a grande maioria dos casos de intoxicação não chega sequer a ser notificado. Para se ter uma ideia da gravidade desta situação calcula-se que para cada caso notificado, tenha-se 50 outros não notificados”, explicou Larissa.

O Brasil consome 14 tipos de agrotóxicos proibidos em outros países, e em Mato Grosso do Sul, que tem como maior aposta econômica o crescimento das fronteiras agrícolas, outra particularidade faz a situação ficar cada vez mais difícil de controlar: as fronteiras. Isso porque, além da dificuldade de fiscalizar as substâncias permitidas, aquelas que tem seu uso proibido no país adentram o estado pela fronteira.

É o que explica o médico, clínico geral e membro do “Comitê estadual de combate aos agrotóxicos”, Ronaldo de Souza Costa. “Nós temos, na fronteira seca, muito contrabando de agrotóxico proibidos no Brasil, temos dificuldade imensa de examinar e fazer controle das que são permitidas. Aqui não tem trabalho de pesquisa laboratorial e clínica”, afirma.

Ronaldo critica a fiscalização, prevenção e o tratamento que a saúde dá a esse tipo de contaminação. “Aqui simplesmente as empresas apresentam a bula, sendo que nossa bula e muito menor até do que a de outros países, com a descrição dos efeitos muito mal feitas. Você pega um a bula do roundup na Alemanha, deve dar mais de vinte páginas. E isso passa, também, quando a pessoa chega no serviço de emergência com suspeita de intoxicação, pode ser que mutos dos sintomas não consiga identificar na bula”.

 

Mapa de pessoas intoxicadas no Brasil (divulgação)

“Com relação ao gênero, os estados do Centro-Oeste têm um perfil mais ‘masculino’ das pessoas com intoxicação notificada. Sem dúvida este aspecto está vinculado aos tipos de cultivo mais desenvolvidos nestes estados e a maior presença de homens no universo do trabalho”, explica a pesquisadora.

Crianças e indígenas

O Brasil é o país que mais consome agrotóxicos do mundo: todos brasileiros “bebem” um galão de cinco litros de veneno a cada ano, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (INCA). O Dossiê Abrasco – um alerta sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde, afirma que 70% dos alimentos in natura consumidos no país estão contaminados por agrotóxicos.

Em Mato Grosso do Sul Larissa afirma que a situação das crianças é preocupante. De 2007 a 2013 foram 29 casos de crianças contaminadas, incluindo dois bebês com menos de um ano.

“Considerando que bebês com menos de um ano raramente se locomovem sozinhos e, considerando também a periculosidade que envolve o contato ou o manuseio destes produtos, este número de crianças diretamente intoxicadas revela que sequer o Estatuto da Criança e do Adolescente é balizador das práticas agrícolas”, critica.

Bebês intoxicados (divulgação)

As populações indígenas também sofrem com a contaminação. A Dsei/MS (Distrito sanitário especial indígena de Mato Grosso do Sul) não tem um sistema que contabilize os casos. Ainda assim, as populações indígenas denunciam, em especial os Kaiowá e Guarani, que ocupam terras, em meio a demora das demarcações, cercadas por cultivos como a soja e a cana.

“Agora teve uma deliberação do governo federal pra jogar veneno nas cidades, e a gente vê que é todo um processo de ajuste e com a própria indústria química. É um lobby ativo e que se fortaleceu, as comunidades que não trabalham com isso estão sofrendo, como os indígenas”, enfatiza Ronaldo.

Em Tey Jusu, tekoha, lugar onde se é, na região de Caarapó, no sul do estado, os indígenas denunciam o despejo de agrotóxicos nas plantações feitos por aviões. Os adultos afirmam que as crianças, que bebem a água contaminada, passam dias doentes, com sintomas como diarreia e vômito.

Em Kurussu Ambá, tekoha da região de Coronel Sapucaia, ocorre a mesma situação. Jadison Batista Lopes faleceu no início de 2016 por complicações de saúde e ausência de socorro médico. A criança faz parte, agora, das mais de 10 crianças mortas por complicações de saúde na terra nos últimos oito anos, conforme relatam as lideranças do local.

Fiscalização

Além das legislações nacional e estadual que especificam uma série de normativas para a compra, venda, uso e descarte dos agrotóxicos, o estado desenvolve o programa “Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos” , VSPEA, que segue o “Plano Estadual Integrado de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos”. O programa, no entanto, ainda está em fase de elaboração.

“Foram realizadas capacitações de profissionais de saúde para identificação, tratamento e notificação dos casos de intoxicações por agrotóxicos. Também foram realizadas capacitações durante a Caravana da Saúde para Agentes Comunitários de Saúde e Agente Comunitários de Endemias referente as formas e sintomas de intoxicação por agrotóxicos domésticos e armazenamento correto de inseticidas utilizados nas campanhas de controle de vetores”, afirmou a Secretaria Estadual de Saúde (SES).

Questionada sobre ações práticas de prevenção, no entanto, a SES apenas respondeu “Relações inter setoriais como, por exemplo, o Conselho Estadual de Agrotóxicos, Conselho Estadual de Saúde representação na Comissão Estadual de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos”. O Plano também prevê parceria com instituições especializadas para que se realize pesquisas que acompanhem a relação entre as substâncias e a saúde. Ainda assim, de acordo com a SES, nenhuma pesquisa é realizada.

Ronaldo participou da criação do Civitox/MS (Centro Integrado de Vigilância Toxicológica de Mato Grosso do Sul) e afirma que, hoje, o Centro está desorganizado. “Nós tínhamos um ambulatório de toxicologia, enfermaria e atendimento por emergência, funcionou até quando trabalhei, em 2003. Foi oferecido pela Anvisa, e uma das ideias foi criar o 0800, telefone comum, aqui só funciona por telefone, antes as pessoas se dirigiam para o Hospital Regional, hoje eles ficam na unidade onde chegam mesmo e também não temos uma equipe que tenha essa experiencia acumulada”, afirma.

“Primeiro que perdemos o serviço de tratamento, tinha sempre o toxicologista que acompanhava o paciente e segundo que nós aqui no estado não temos instrumentos”, complementa.

A SES afirma que o Centro possui “uma equipe multiprofissional” de saúde para atender, “com forte fundamentação científica”. Sobre os locais de atendimento, a secretaria respondeu que “as análises laboratoriais para os casos de intoxicação são realizadas na rede SUS e privadas e quando da impossibilidade são encaminhados para laboratórios de referência. As analises  de resíduos de agrotóxicos na água são realizadas pela Vigilância da Qualidade da Agua – VIGIAGUA da Coordenadoria de Vigilância em Saúde Ambiental no Instituto Evandro Chagas – IEC”.

Ainda assim, a cidade de Dourados é alvo de uma ação na justiça federal, promovida pelo Ministério Público Federal. Após diversas pessoas sofrerem alterações no fígado, uma análise na água demonstrou que há duas substâncias não identificadas pela Sanesul (Empresa de saneamento do estado de Mato Grosso do Sul), correndo nas torneiras de toda a população. O problema não foi resolvido.

“Lá em Dourados eu tive a experiência de examinar um grupo de trabalhadores de uma empresa pública, e comecei a perceber alterações no exames. Não usavam substâncias, não usavam álcool e estão com alteração no fígado. Aí o Dr Marco Antonio pediu um exame pra Sanesul, e a Sanesul ofereceu um exame normal, falou que a água estava potável, esse exame contempla só 14 substâncias, pode ter substâncias que a gente nem conheça. Aí ele pediu pra um laboratório do Paraná, colheu do rio Dourados, da estação de tratamento e da casa das pessoas. As três amostras vieram comprovando presença de substâncias químicas tóxicas, Ciclorpirifós Etílico e Temefós”.

Agronegócio, agrotóxicos e doenças

Além da contaminação de água em Dourados, Ronaldo relaciona o agrotóxico com a diminuição das abelhas e com casos de aborto espontâneo, ambos na região sul do estado, território onde mais se expande as fronteiras agrícolas de Mato Grosso do Sul. Diversas doenças como Câncer, Depressão, Diabetes, Hipotireoidismo e até o suicídio são apontadas pelas pesquisas como resultados do consumo cada vez maior dos agrotóxicos.

 

(divulgação)

 

“O impacto maior que a gente tem é a questão do Câncer. Dos transtornos da tireoide, relacionados a lesões cerebrais crônicas, às demências, estamos sendo bombardeados e nem sabemos muitas vezes. O câncer, por exemplo, é um dos maiores problemas relacionados com o agrotóxico. O hipotireoidismo, o câncer de pâncreas, lesões cerebrais, o alzheimer, todas as substâncias químicas que alteram o funcionamento do cérebro. Onde a gente mais usa agrotóxicos é a região sul com a maior incidência de câncer”, afirma
Ronaldo.

Para Larissa Mies, a expansão dos cultivos do agronegócio está diretamente ligada ao aumento das contaminações. “Não há dúvidas que a expansão da fronteira agrícola carrega consigo a contaminação por agrotóxicos, justamente porque no montante dos agrotóxicos comercializados no país, os cultivos do chamado “agronegócio” são responsáveis pela maior parte do consumo. A soja aparece em 1º lugar, o milho em 2º e a cana de açúcar em 3º”, afirma ela.

Ronaldo compartilha da mesma opinião. “Nós falamos tanto de agronegócio, de expansão agrícola, de avançar, mas você gera o risco e não tem nem a capacidade de mensurar o risco e nem tratar as doenças e consequências. A questão da ciência é que ela é empericista, tem que estudar e provar, propositalmente você não tem estudo pra não gerar prova. Ficamos todos expostos a isso, um estado lindo sendo destruído”.

Conteúdos relacionados