Feminicídio de Vanessa expõe falhas que vão da falta de efetivo policial à lei de execução penal

O feminicídio que vitimou a jornalista Vanessa Ricarte, de 42 anos, morta a facadas na quarta-feira (12) em sua casa em Campo Grande, expõe falhas que vão da falta de efetivo policial na Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) a uma lei de execução penal antiquada e ainda aplicada em casos que visam ao bem-estar da mulher no Brasil.
✅ Clique aqui para seguir o Jornal Midiamax no Instagram
Isso porque a jornalista esteve na delegacia durante a madrugada para registrar boletim de ocorrência contra o ex-companheiro Caio do Nascimento Pereira. Saiu de lá com a medida protetiva, mas o músico não foi notificado a tempo.
O que aconteceu neste intervalo tão curto passa por uma séria de fatores, que implicam em ações do judiciário, da polícia e dos políticos.
Vanessa deveria, por lei, ser obrigada a sair da Casa da Mulher Brasileira sob escolta policial para voltar à casa dela? O músico deveria ter sido intimado imediatamente por um oficial de Justiça sobre a medida protetiva? Esses fatores teriam salvado a vida de Vanessa?
Na medida protetiva, casal já está no ápice da violência
Para a desembargadora Jaceguara Dantas, titular da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJMS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul), é preciso cuidado ao apontar esses fatores como determinantes.

“A sociedade não pode perder o foco de que o assassino e responsável pela morte de Vanessa é o então companheiro dela, e não nenhuma atitude que ela tenha ou não tomado como, por exemplo, não ter optado por escolta policial. Outra questão é que uma escolta policial não pode ser obrigada, nesses casos”, pontua.
Jaceguara afirma que por mais esforços que todo o poder público faça, não é possível solucionar o problema da violência contra a mulher apenas com a força repressiva, como a policial. “A medida protetiva é o ápice já da violência. Nós precisamos tratar o antes, evitar que isso aconteça. É o problema da prevenção, uma responsabilidade que não é só do judiciário e da segurança pública, mas de todos”, diz.
Nesta sexta-feira, uma reunião será realizada a fim de tentar diminuir os gargalos da segurança pública e rede de apoio. “Nós vamos nos reunir para discutir o que pode ser feito para melhorar o sistema dentro dos equipamentos e ferramentas que já temos, com o efetivo que já temos. Porque melhorar o aparelhamento público é uma discussão que demanda dinheiro e tempo para se implementar e o problema é urgente. Então, o que podemos fazer para melhorar já agora e depois, ainda mais, nessa estrutura? É isso que vamos discutir”, finaliza.
Vítimas relatam demora
Vale lembrar que Caio já acumulava 11 passagens por violência doméstica antes do feminicídio contra a jornalista, além de crime de extorsão.
Contudo, em muitos casos de violência doméstica, o autor fica dias e até meses sem receber a intimação. Inclusive, o deputado estadual Coronel David (PL) pontuou ao Jornal Midiamax nesta quinta-feira (13) problemas no atendimento a Vanessa.
Há três meses, o Jornal Midiamax noticiou o relato de mulheres vítimas de violência doméstica que aguardaram cerca de 14 horas por atendimento na especializada. Entre as vítimas, mulheres machucadas, sem roupas e com a filha sequestrada.
A situação se assemelha ao caso de uma campo-grandense, vítima de agressões pelo ex-companheiro há exatos 30 dias. No dia 13 de janeiro, a mulher buscou a Deam, registrou boletim de ocorrência, pediu por medidas protetivas, mas até esta quinta-feira (13) não teve a medida válida.
Na ocasião, a vítima contou que o ex – na época, monitorado por tornozeleira eletrônica em vista de outras agressões – a agrediu na casa do sogro. Assim, ela precisou ir até uma UPA (Unidade de Pronto Atendimento), devido à gravidade dos ferimentos. “Ele tentou me matar, pois me enforcou e me desmaiou por mais de 10 vezes”, relatou a vítima.
Na manhã do dia seguinte, policiais prenderam e encaminharam o autor para a Deam, juntamente com a mulher. E já na delegacia pela manhã, a mulher conta que a Polícia Civil registrou o boletim de ocorrência e, somente às 13 horas, liberaram a vítima. Porém, no mesmo horário, liberaram também o autor.
Mesmo assim, ao chegar em casa, o homem a agrediu novamente. Mais uma vez a Polícia Militar prendeu o suspeito e a vítima voltou para a delegacia, conforme o relato dela. Assim que chegou à especializada, foi registrada outra ocorrência, realizado exame de corpo de delito, mas a mulher foi liberada somente por volta das 22 horas.
Segundo a vítima, é revoltante o fato de que, mesmo passando cerca de oito horas na Deam após o primeiro atendimento, o autor foi liberado junto com ela.
“Ele foi preso e liberado junto comigo da delegacia, junto mesmo. Todos que estavam lá ficaram revoltados. Fora que no dia do ocorrido ele estava usando tornozeleira eletrônica por outro ‘b.o’ que eu tinha feito. E sabe o que aconteceu? Foi preso, liberado e no outro dia retirou a tornozeleira”, disse a vítima ao Jornal Midiamax.
Outra indignação da campo-grandense é o não recebimento do boletim de ocorrência. Segundo ela, apesar do registro, ela não recebeu nenhum registro sobre os fatos.
Efetivo reduzido
A delegada Elaine Benicasa, titular da Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher), explica que falta realmente efetivo para a Polícia Civil.

“Na Deam, estamos com efetivo reduzido em relação à Polícia Militar, que teve concurso e convocados. Somos poucos para atender toda a população. No plantão, temos três investigadores e uma delegada. E geralmente no plantão é que temos um maior número de ocorrências”, enumera.
O próximo concurso da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul prevê um aumento de 300 investigadores no efetivo. “Com aumento do contingente da Polícia Militar, aumenta o encaminhamento à Delegacia, que não teve o efetivo aumentado. Isso gera demora, lentidão no atendimento de fato. Precisamos de mais estrutura, porque a quantidade desse tipo de crime só aumenta”, conclui.
Demora de intimação do autor
Além da revolta, o sentimento de insegurança é constante entre as vítimas de violência doméstica. O motivo? A demora de intimação do autor. De acordo com o TJMS, as medidas só passam a valer após essa intimação. E, caso ele não seja localizado, a intimação não é realizada.
No caso da campo-grandense citada na reportagem, ela relata que dias após ter registrado a ocorrência na Deam, o ex-companheiro retornou à sua casa. Então, a agrediu novamente, em vista do mesmo estar em liberdade e, sequer, ter sido intimado acerca das medidas protetivas que ela pediu.
‘Agressor sai livre para viver a vida’
A demora no atendimento e a liberdade do autor aliadas à medida protetiva inválida deixa a vítima tão indignada que a mesma diz não ter coragem de denunciar as agressões novamente.
Durante entrevista, ela ainda disse que soube do feminicídio cometido contra a jornalista Vanessa Ricarte e acredita que a demora em intimar o agressor seria a causa de crimes brutais como esse.
“Não tenho nem coragem mais de denunciar, pois já sei que vai lá e será liberado, (ele) volta mais revoltado. O agressor sai livre para viver a vida e a vítima tem que ficar lá no abrigo”, reclama a campo-grandense.
Por fim, a vítima ainda desabafou sobre o ciclo de violência que muitas mulheres não conseguem romper e, mesmo assim, a sociedade as julga. “É muito difícil viver assim. As mulheres são julgadas por não conseguir quebrar o ciclo… de vítimas acabam saindo como culpadas”, desabafou.
A reportagem do Jornal Midiamax procurou a Polícia Civil para saber como funciona os atendimentos às vítimas e pedidos de medidas protetivas e aguarda um posicionamento. O espaço segue aberto para manifestações.
Mudança nas leis
O deputado estadual Coronel David (PL) disse que quer uma investigação sobre o atendimento à jornalista Vanessa Ricarte. Ele afirmou que a vítima não tinha condições de decidir sobre a escolta.
Assim, questiona o protocolo de atendimento. “Uma vítima que acabou de passar por uma violência não tem condições de decidir isso. Se esse é o protocolo hoje, nós precisamos mudar. Não dá para colocar essa responsabilidade nas mãos de quem está fragilizada, em situação de vulnerabilidade”, afirmou.
Na verdade, os protocolos seguem o que determinam as leis. Entre elas, as leis de execução penal.
Para mudar a lei, no entanto, é necessário um novo projeto de lei. Esse, feito pelos próprios vereadores, deputados estaduais, federais e senadores.
💬 Fale com os jornalistas do Midiamax
Tem alguma denúncia, flagrante, reclamação ou sugestão de pauta para o Jornal Midiamax?
🗣️ Envie direto para nossos jornalistas pelo WhatsApp (67) 99207-4330. O sigilo é garantido por lei.
✅ Clique no nome de qualquer uma das plataformas abaixo para nos encontrar nas redes sociais:
Instagram, Facebook, TikTok, YouTube, WhatsApp, Bluesky e Threads.