Leis, saúde pública e expansão: por que é difícil acabar com bocas de fumo em Campo Grande?
Representantes de forças de segurança e especialistas respondem sobre o que dificulta o combate ao tráfico de drogas e expansão das minicracolândias
Thalya Godoy –
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A criança atropelada por um ônibus depois de ter se assustado com a briga de usuários de drogas, no centro de Campo Grande no último dia 3 de maio, foi mais uma das vítimas dos problemas que as minicracolândias trazem para a Capital.
Brigas, roubos, estupros, prostituição, insegurança e até ameaças. Esses são alguns exemplos de dor de cabeça que os vizinhos de bocas de fumo enfrentam devido a grande circulação de pessoas, de dia e à noite, nesses locais.
O acidente com a criança aconteceu na região central de Campo Grande, mas o narcotráfico doméstico também avança para os bairros, a exemplo do Aero Rancho e Vila Nhanhá, e são alvos de reclamações dos moradores que veem o fim da paz com a andança de usuários próximo de casa.
Mas afinal, por que é difícil acabar com as bocas de fumo? O Midiamax ouviu representantes das forças de segurança de Mato Grosso do Sul e especialistas no assunto para descobrir quais são os maiores desafios para combater o narcotráfico doméstico e as minicracolândias.
O Jornal Midiamax publica série de reportagens sobre ‘minicracolândias’ em Campo Grande e a disseminação de bocas de fumo pelos bairros da cidade, assim como as implicações sociais que esse tipo de atividade criminosa causa. Leia as outras reportagens da série:
“Narcotráfico doméstico avança e ‘minicracolândias’ se espalham por bairros de Campo Grande”.
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Conforme explica o Subcomandante do Comando de Policiamento Metropolitano, Tenente-Coronel Wellington Klimpel, o trabalho da Polícia Militar para o combate do tráfico de drogas envolve a repreensão e o patrulhamento.
Ele afirma que os PDEs (Pontos de Distribuição de Entorpecentes), conhecidos como bocas de fumo, estão presentes em todas as regiões urbanas da Capital.
“O tráfico de drogas não trabalha sozinho, então para vender uma droga ali o próprio usuário comete outro crime para poder passar naquele ponto de distribuição de entorpecentes e trocar por alguma droga. Então o tráfico vem junto com outros crimes, roubo, furto, receptação, às vezes sequestro. Sobre a violência, muitas vezes o uso de drogas passa do limite da pessoa e ela fica com alto potencial agressivo”, explica.
A região metropolitana de Campo Grande conta com três batalhões de área, um batalhão de trânsito, mais quatro companhias e outra companhia em Sidrolândia que pertence à Capital, totalizando nove unidades que cuidam de todos os tipos de crime, incluindo o tráfico de drogas.
Os dados da Sejusp (Secretaria De Estado De Justiça E Segurança Pública) não especificam quanto de droga foi apreendida em PDEs no Estado, somente o total de entorpecentes.
Assim, neste ano na Capital foram apreendidas 4,66 toneladas de maconha, o que representa 5% do total recolhido no Estado, que foram 93,46 toneladas em 2023.
A droga lidera a lista de apreensões na Capital neste ano frente a cocaína (2,12 toneladas) e “outras drogas” (2,09 toneladas).
Os dados apontam que o volume de apreensão de maconha e de cocaína na Capital quase dobrou entre os anos de 2021 e 2022.
O tenente-coronel Klimpel explica que, na região central de Campo Grande onde a criança foi atropelada, o Primeiro Batalhão realiza abordagens e patrulhamentos para combater o tráfico de drogas. De acordo com o subcomandante, entre os critérios para as abordagens estão pessoas “em fundada suspeita”, como estar sozinho à noite debaixo de uma árvore em meio a escuridão ou em locais da cidade em que há bastantes usuários.
Entre as dificuldades para fechar definitivamente as bocas fumo ele cita o crescimento desses locais e a facilidade em que são reabertos. “Cada dia fecha uma, faz operação em um local, mas no outro cresce. É exponencial essa situação e a Polícia Militar diga-se de passagem está atuando, só que o crime tá crescendo, mas com o passar do tempo nós vamos conseguir reduzir”, promete o subcomandante.
Porém, nem mesmo a presença da Polícia Militar é suficiente em alguns casos para afugentar os usuários. Reportagem desta semana mostrou que no bairro Tiradentes os moradores já até se “acostumaram” com a presença dos usuários de drogas e acreditam que seja difícil irem embora.
“Eles [a PM] podem passar 50 vezes, os usuários voltam. O que não falta aqui é boca de fumo, parece que são eles que mandam no bairro. O restaurante aqui do lado até fechou, não conseguiam vender salgado com esse cheiro”, afirmou um aposentado.
Adolescentes como alvos de traficantes
Já o delegado titular da Denar/MS (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico de Mato Grosso do Sul), Hoffman D’ávilla Candido de Souza, explica que a delegacia subordinada a Polícia Civil tem três frentes de atuações: trabalho preventivo, trabalho repressivo e a incineração das drogas, o que finaliza o trâmite de combate ao narcotráfico.
Um dos exemplos do trabalho preventivo realizado pela Denar é a promoção de palestras com caráter pedagógico em empresas, igrejas e, especialmente, em escolas, onde estão os jovens que são os alvos preferidos dos traficantes para aliciamento, já que acreditam que por serem menores de idade não sofrerão punição.
“Os pais ficam interessados porque às vezes estão passando por algum problema com adolescente e para os adolescente também ver um pouco da realidade, o que é a droga, os malefícios, não só para o usuário, mas também para família que sofre junto”, ele expõe.
Operações tem efeito temporário
A Polícia Militar realiza até 21 de maio a “Operação Pontual”, em que uma equipe de 20 policiais e oito viaturas são adicionadas todos os dias em uma região diferente da cidade para reforçar o patrulhamento. De acordo com o tenente-coronel Klimpel, a ação já tem surtido efeitos e diminuído a criminalidade.
“Desde o dia 02 de maio, quando a operação começou, nós observamos que o crime diminuiu de forma genérica, não especificamente sobre o tráfico de drogas. Mas durante aquela operação não houve crimes naquela região onde estavam as próprias viaturas. Então o Grande Comando demanda que as unidades vão ter tantas viaturas naquele determinado horário, e aí eles planejam aonde vão usar as viaturas para reduzir o crime”, explica.
Já a Denar realizou neste ano duas operações: a Operação Imbirussu e a Smoke House, que resultaram em 88 presos e cerca de 40 mandados de busca pelo crime de narcotráfico. Além disso, também é realizada a Operação Omêga de caráter permanente.
“Nessa delegacia aportam várias denúncias anônimas, há um trabalho também de campo dos investigadores, é uma preocupação porque aí evidencia a facilidade do traficante em adotar um adolescente infrator, por isso que é importante o trabalho preventivo de orientar os pais, esses jovens, de fortalecer, até com a estrutura familiar para ele falar ‘não as drogas’”, explica Hoffman.
Apesar dos números de presos, especialistas na área de segurança avaliam que as operações têm resultados temporários. Conforme explica o porta-voz do Instituto Sou da Paz, o advogado Bruno Langeani, é preciso que as operações mirem nos grandes fornecedores de drogas.
“Estas mega-operações e o trabalho limitado ao efetivo da PM, só conseguem em geral esconder o problema por um tempo ou deslocá-lo. Ações só com polícia uniformizada em geral só apreendem pouca quantidade de droga e atingem apenas o baixíssimo escalão das quadrilhas. Microtraficantes jovens, pobres, sem antecedentes que são rapidamente substituídos logo que a polícia sai”, avalia.
O doutor em ciências jurídico-sociais e diretor da Fadir (Faculdade de Direito) da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Fernando Lopes Nogueira, também segue na mesma linha que as mega-operações ajudam a diminuir o tráfico de drogas, mas apenas temporariamente, especialmente porque depois o narcotráfico se restabelece com outras pessoas.
“O ideal seria que o estado tivesse essa preocupação em criar um setor específico para apurar a origem dessa droga porque são vários pequenos narcotraficantes que atuam nos bairros, mas eles compram essa droga de um fornecedor maior […] o ideal mesmo é fazer uma investigação minuciosa utilizando essas prisões, que acabam gerando penas altas, para algum acordo de delação premiada para que essas pessoas venham com segurança fornecer informações”, avalia o doutor.
Minicracolândias são casos de saúde pública
Para combater o tráfico de drogas e, especialmente, as “minicracolândias”, é preciso entender que não se trata somente de caso de polícia, como explica o delegado titular da Denar/MS (Delegacia Especializada de Repressão ao Narcotráfico de Mato Grosso do Sul), Hoffman D’ávilla Candido de Souza.
Segundo o delegado, os transtornos causados pelos usuários é considerado um problema de saúde pública.
“Então você traz o usuário para a delegacia e ele precisa de ajuda. Ele está fomentando o tráfico? Está, mas se ele não estiver envolvido com a mercancia ele é usuário e a Lei não permite privar a liberdade deste usuário. É uma questão de saúde pública porque é uma doença [o vício], ele vai voltar para aquela boca de fumo, ele vai para outra boca de fumo e vai furtar inclusive dos pais”, expõe o delegado.
A opinião do delegado também é compartilhada pelo advogado, mestre em políticas públicas e gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani.
O especialista avalia que o poder público precisa investir em projetos mais complexos que envolvam saúde e assistência social para ajudar a lidar com vulnerabilidades que levam pessoas à situação de rua, e por consequência, às drogas.
“Em muitos casos é importante verificar se há algum problema urbanístico que está facilitando esta atividade ilegal, como becos, baixa iluminação, terrenos abandonados. E da parte da Polícia Militar é importante mais do que reprimir apenas a venda de droga, mas especialmente os crimes e comportamentos violentos, agressões, roubos, porte de arma, etc”, avalia o advogado.
No caso de Campo Grande, a situação da antiga Rodoviária é reflexo de como o abandono e falta de investimentos por parte do poder público favorece o proliferamento das minicracolândias.
A matéria do Midiamax, da última quinta-feira (11), mostrou o árduo caminho para a recuperação da dependência química e que, mesmo com a oferta de ajuda de várias fontes, é difícil aceitá-la.
“O cenário é de briga constante contra o cérebro pedindo a droga. As crises de abstinência, por exemplo, envolvem vômitos, dores abdominais, diarreia e até desmaios. Não é como a vontade de um chocolate que você se controla e logo passa. Por isso, além de muita força de vontade, é preciso tratamento adequado com medicamentos e a reinserção no ambiente de emprego e social”, explica o psiquiatra e coordenador de saúde mental da Sesau (Secretaria Municipal de Saúde), Eduardo Gomes de Araújo.
Mudanças na lei dificultam prender traficantes
O delegado Hoffman explica que, desde as mudanças com a Lei de Drogas 11.343/2006, não é permitida a prisão em flagrante de usuários de drogas desde que não estejam envolvidos com o comércio de entorpecentes, o que ele avalia que “engessou” em parte o trabalho da polícia depois dessas alterações na legislação.
“Não é a prisão que vai resolver o problema do usuário, mas nós temos que combater o tráfico doméstico para prender aquele traficante, tirar de circulação, fechar aquela boca de fumo. Por mais que, não raras vezes, nós nos deparamos com aquele mesmo traficante que outrora o prendemos, tá ali com tornozeleira, saiu no dia de audiência de custódia e volta e vai traficar novamente”, avalia.
O delegado exemplifica com o caso da apreensão de um comboio que transportava 65 mil pacotes de cigarros. Os agentes da Denar ficaram da meia-noite de sexta-feira até às 09h de sábado trabalhando, quando no mesmo dia os cigarreiros foram liberados na audiência de custódia.
“Eu não vou entrar na decisão do magistrado e no mérito, não cabe a mim. Então nós tínhamos que endurecer mais porque o traficante tem que ficar na cadeia mesmo, lugar de traficante é na cadeia”, acredita.
Avanço do delivery de drogas
Além dos pontos fixos, os criminosos também usam a tecnologia a favor do tráfico de drogas. Em Campo Grande tem se espalhado “Disk Entrega” de drogas em que os traficantes fazem as vendas pelo WhatsApp.
Conforme explica o delegado Hoffman, essa é uma prática que tem crescido na Capital. “Nós temos apreendido várias pessoas que trabalham no sistema de Disk Entrega. Então, ele é um empreendedor do crime, ele tem WhatsApp, já tem ali a senha para você acionar e contatá-lo, você tem que ter uma senha e aí ele entrega o disk delivery”, explica.
População precisa denunciar
A série de reportagens do Midiamax desta semana coletou relatos de moradores de diferentes regiões da cidade que dizem que conviver com bocas de fumo já virou rotina há anos, o que demonstra que bocas de fumo operam no mesmo local por muito tempo.
Questionados sobre essas reclamações dos moradores sobre as polícias “ignorarem” alguns locais, os representantes da Polícia Militar e Civil são enfáticos em discordar dessa opinião e que os números de apreensões demonstram que o papel das forças de segurança tem sido feito.
“Nós estamos trabalhando dia e noite, não tem dia, não tem hora. Todas as denúncias que chegam aqui são verificadas, os delegados já expedem a ordem de serviço para os investigadores realizarem a verificação, a procedência das informações. Várias dessas denúncias, às vezes, não há como a gente agir naquele momento, a gente tem que fazer uma campana, num trabalho velado, mas todas são checadas”, enfatiza o delegado Hoffman.
O tenente-coronel Klimpel afirma que, se a polícia não compareceu no local, é porque não houve denúncias e pede que a população colabore denunciando as bocas de fumo e pessoas envolvidas com o narcotráfico. “Se a população denunciar, o trabalho vai ser melhor ainda”, explica.
O doutor em direito, Fernando Nogueira, expõe que em muitos casos a população tem medo de denunciar por medos de represálias, o que acaba atrapalhando a atuação da polícia.
“A própria sociedade já está acostumada a conviver com esse tipo de ação. O que se faz necessário hoje é que o estado comece a olhar para essas zonas periféricas de Campo Grande”, aponta o especialista.
Os interessados em fazer denúncias podem acionar o 190 ou o 181. As ligações não tem custo e podem ser feitas anonimamente.
A Denar é a delegacia especializada na investigação que envolve qualquer tipo de droga. Os telefones são (67) 3345-0000 e o WhatsApp (67) 9 9995-6105.
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