“Eu também não pararia…homem bravo, arma na mão, me xingando…”. Este é apenas um das centenas de comentários que surgiram após a matéria do acidente envolvendo o delegado geral da Polícia Civil, Adriano Geraldo Garcia, na noite dessa terça-feira (16). Além do público da internet, com comentários nas redes sociais, a conduta do servidor também revoltou policiais e muitos avaliaram que houve “descontrole” por parte do servidor público. 

Uma delegada de polícia, que não será identificada, ressaltou que, no ano em que o feminicídio está com índices alarmantes em , a mulher continua sendo julgada como “errada e louca”, até em um acidente de trânsito. A policial, com mais de uma década de experiência, ressaltou ainda a obrigatoriedade do procedimento padrão nestes casos. 

“Foi uma atitude complicada e primeiro vai ter que apurar como foi a abordagem, já que o delegado estava com uma viatura descaracterizada. Nestes casos, o policial deve acionar o superior e, como o superior máximo era ele, deveria acionar a perícia técnica e o delegado plantonista da Depac [Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário]. Ao que soube, isso foi feito, porém, a questão foi a abordagem em si, os tiros, houve descontrole”, afirmou a delegada ao Jornal Midiamax

Conforme pessoas ouvidas pela reportagem, a conduta do delegado mostra, mais uma vez, como a categoria também está “doente”. “Estamos preocupados com o nosso emocional. A humanidade parece estar doente, com discussões banais e que acabam em morte. Este ano, infelizmente, alguns policiais já se mataram. Aonde vamos parar? O histórico está bem complicado”, lamentaram.

Outra servidora da Polícia Civil, que também prefere não ser identificada, ressalta que, em uma questão de acidente de trânsito, o delegado, naquele momento, não era delegado e sim um civil. “Assim como um desembargador, um promotor, um conselheiro, um fiscal de rendas… ali não era um funcionário público. Não estava acontecendo um crime e sim uma infração de trânsito. Uma fechada. Ela reagiu, porém, não aconteceu crime nenhum e ela foi embora porque não houve uma colisão”, avaliou.

No entanto, ainda conforme a servidora, não caberia, portanto, uma ordem de parada. “Houve uma fechada no trânsito envolvendo a pessoa dele [Adriano], então, ali não caberia nada, então, naquele momento ali começa uma perseguição. Ele deveria anotar a placa e relatar ao departamento de trânsito caso quisesse alguma providência. Ao contrário, tudo o que ocorreu a partir dali, é viciado, está errado, no meu entendimento”, comentou. 

Delegada aposentada e que inclusive participou da inauguração da 1ª Delegacia da Mulher, em Campo Grande, a servidora, que também não quer ser identificada, comentou que acredita que houve “abuso de autoridade, além da falta de respeito e profissionalismo”. 

“A mulher, desde sempre, encontrou dificuldades em diversas situações, inclusive no trânsito. Lembro de relatos de vítimas que comentavam uma situação e sempre falavam de homens que davam gargalhadas e faziam deboches, falando: tinha que ser mulher na direção. Situações como estas ocorrem há décadas”, comentou. 

Sobre os comentários postados na internet, as mulheres usam, inúmeras vezes, a palavra “absurdo” para definir a conduta e a perseguição do delegado à jovem de 24 anos.

 “… Do jeito que está a violência e os feminicídios, se um ser desses me mandasse parar eu iria meter o pé, se o cara está descaracterizado como adivinhar que era policial e quem me garante que no ato da abordagem com os ânimos alterados que o alvo ao invés dos pneus não seria outro ????”, postou. 

“Até parece que eu iria parar para um carro não caracterizado, vou saber se são luzes de alguma autoridade, eu mulher, sozinha, a noite, com um homem me dando sinal, quero ver eu parar! Pensaria ser tentativa de assalto e sairia dirigindo tentando escapar, vou parar pra prestar atenção se é de polícia ou não… certeza que ela estava morrendo de medo mesmo sabendo que furou sinal!”, alegou outra.

Boletim de ocorrência

No B.O redigido por um subalterno de Adriano, a versão registrada admite que tudo começou devido a uma briga de trânsito. Na versão da ocorrência, foi confirmado que Adriano buzinou após ser ‘fechado' e que a motorista de 24 anos teria ‘mostrado o dedo' após levar a buzinada. O histórico afirma que o delegado atirou por duas vezes depois que ela já tinha parado o carro, e um dos disparos quando ela tentou fugir.

Segundo a versão da Polícia Civil, o delegado-geral teria atirado porque achou que a jovem, mesmo com o carro trancado pelo carro dele, estaria “virando o volante para o lado dele e engatando ré”. No entanto, pouco antes, ele mesmo diz que não sabia quantas pessoas poderiam estar no carro porque tinha Insulfilm, ou seja, contraditoriamente, diz que não seria possível ver o interior do veículo.

Durante o atendimento da ocorrência dos disparos feitos pelo delegado-geral,  os policiais que atenderam à ocorrência do chefe recolheram a memória de uma câmera que ela tinha no para-brisa do carro, e o celular da jovem. A motorista garante que, nas filmagens, poderia provar que o delegado-geral a perseguiu sem se identificar logo após se irritar em uma desinteligência de trânsito. “Simplesmente mostrei o dedo para ele porque meu carro afogou e ele buzinou. Eu não tenho bola de cristal para saber que ele é delegado”, disse a jovem. 

Sem se identificar

A jovem ainda disse que não sabia que carros normais tinham sirene. “Eu até achei que era uma ambulância e do nada ele para na minha frente e começa a apontar uma arma para mim, ele não se identificou e começou a atirar”, relatou a estudante. De fato, até mesmo carros com blindagem, que podem ser comprados sem licença específica, possuem sirene e não é possível identificar, somente pelo sinal sonoro, que a pessoa que está conduzindo seja de alguma força de segurança.

“Ele meteu uma buzinada. Eu mostrei o dedo, porque fiquei irritada, e ele já começou berrar. Eu saí de perto, como qualquer mulher faria quando vê um homem agressivo vindo pra cima. Ele acionou uma sirene, mas eu vi que não tinha identificação nenhuma no carro. Achei até que era uma ambulância por perto. Estava preocupada em escapar de um cara que me xingou no trânsito e não gostou porque respondi”, relata.

O caso lembra outra narrativa de tragédia no trânsito de Campo Grande, quando o PRF (policial rodoviário federal) Ricardo Moon, atirou e matou o empresário Adriano Correa, também após ficar irritado com uma ‘fechada'. Depois, no julgamento, a defesa de Moon também adotou a tática de dizer que o policial disparou porque achou que o motorista ia atirar nele com um maçarico culinário. O objeto chegou a ser ‘plantado' no carro da vítima, mas a manobra deu errado e Moon não provou a versão registrada. Ele foi condenado a 24 anos, mas ainda não está cumprindo a pena.