“Meu quintal é maior do que o mundo” cantava o eu lírico do poeta Manoel de Barros. Como o poeta, não sou campo-grandense de nascença. Mas meus filhos Mariana e Pedro são natos. Me considero um de coração, pois a cidade pulsa dentro dele.

Em 1984, cheguei para trabalhar como repórter na TV Morena, vindo do interior de São Paulo. Diziam que era uma cidade de oportunidades e custo de vida acessível. Cidade de povo acolhedor, hospitaleiro, de gente bonita e trabalhadora. Praças aconchegantes, arborizadas e entretenimento para todas as idades. Acolhe bem os seus imigrantes e a todos que buscavam aqui sua colocação. Em meio ao amor, contestação e sonho, tornou-se a capital administrativa de Mato Grosso do Sul. A capital política do Estado, criada com a promessa de induzir o desenvolvimento. Mais do que isso, nasceu para ser uma cidade moderna, inovadora e mais humana.

Para além de uma arquitetura inusitada, com largas e arborizadas avenidas, projetava-se aqui um novo Brasil de oportunidades e justiça social. Porém, na prática, a gênese da cidade e as relações sociais estabelecidas em seu processo rotineiro demonstra contradições. A exploração desumana da mão de obra, os pedintes e marginalizados das velhas e novas rodoviárias, das esquinas e ruas nos sinais, do centro e bairros. Os “invasores” das áreas sem qualquer e a exclusão do acesso a eles. Mesmo com tanta reza de padres, crentes e políticos para salvá-los, frustram boa parte da expectativa de uma capital para todos.

Urbanamente desordenada, politicamente populista, socialmente excludente e ambientalmente predatória.

A cidade que queremos passa pela multiplicação daquilo que nasceu de bom através da luta e da dedicação de sua gente que, que ao invés da indiferença e do ódio, plantou esperança no nosso chão. Nossa safra de boas práticas, experiências e avanços não é pequena. Impossível não reconhecer a organização comunitária séria e comprometida que acontece nos quatro cantos da Capital.

Há que se registrar a força cultural dos artistas da nossa terra, a culinária, a música, o teatro, as artes plásticas, o cinema e os festivais que nutrem a alma dessa cidade chamada Morena.

A ocupação criativa implementada em diversos espaços públicos. A solidariedade de incontáveis instituições e organizações da sociedade civil que estendem a mão aos vulneráveis. O engajamento das lideranças religiosas sérias na promoção da paz social e conforto espiritual. A luta política que nos permitiu avanços legislativos e sociais.

Mas há motivos para indignação, como a mobilidade urbana que não foi pensada para uma capital de quase 1 milhão de habitantes e maltrata o usuário do transporte coletivo e os de veículos que se veem cercados de dúvidas de percurso. A gestão desumanizada da saúde onde os usuários são recebidos em postos de saúdes insalubres, os teatros fechados e as escolas que não ensinam e que não acolhem… A desvalorização dos profissionais da educação.

Campo Grande precisa de gente corajosa, capaz de dialogar, fazer parcerias e construir. Precisa de ousadia para romper as velhas práticas sociais e políticas que fazem esta cidade linda aos olhos dos e fria para muitos de seus moradores.

Façamos do amor a essa “aldeia” um brado de liberdade, de inclusão e de cuidado com a natureza, uma ferramenta de humanização a partir da integração; do cuidado com a nossa linda cidade e de sua gente nosso lema central. Nossa Morena ainda é uma jovem menina dos ipês amarelos, brancos, rosas e roxos. Um lugar muito bom de se viver!

Quando cheguei a Campo Grande o trem era sujeito das manhãs, tardes e noites e transcendiam as imaginações. Lembrança que inspirou minha declaração de amor à Cidade Morena.

O APITO DO TREM

Ao apito do trem corria para ver a locomotiva passar. /Vinha de São Paulo, voltava da Bolívia. /Trem da morte! /Trem do Pantanal! /Me instigava aqueles rostos que passavam devagar pela janela do trem. /Jovens, homens, mulheres, crianças. /Alguns acenavam, /outros jogavam lixo pela janela. /Qual o motivo da viagem de quem foi? /De quem voltou ou ficou por lá? /Indagava meu aflito coração. /O Trem parecia passear pela cidade. /Parava na estação. /A estação era velha e linda. Nela pulsavam estórias e histórias. /Os ingleses que a construíram e a Vila dos Ferroviários. /Aquelas casas imponentes e as moradias simples dos funcionários. /Na esquina com a Mato Grosso o ponto de táxi das charretes. /Eu me lembro bem. /Os japoneses tinham as charretes.

Quando cheguei, a cidade ainda era pequena, /mas para mim era enorme, tamanho meu vislumbre!

Ouvi na as estórias do pai de um amigo que vinha para abrir fazendas. /Ele contava das onças e dos índios. /Não podia imaginar que nessa cidade estaria meu coração. /

Hoje ouço o granir das araras atravessando a cidade. /O apito do trem toca a minha memória. /E agora o menino me vem, sentado na esquina vendo o trem indo e vindo. /Todos os dias. /E, ao fechar os olhos, soa ritmado nos ecos da cidade.

O trem já não está mais entre nós. /Agora não temos mais os passageiros, /não tem mais o apito. /Agora os japoneses venderam as charretes e se mudaram para dentro da estação. /Ainda bem que continuam oferecendo o melhor sobá do mundo. /O cheiro da iguaria traz à memória o apito do trem que lembra a cidade onde não nasci, /mas vi crescer e se transformar na linda capital de meu querido Mato Grosso do Sul.

(*) Bosco Martins é jornalista e escritor