Na madrugada da sexta-feira (6), a Companhia de Jesus no Paraguai informou que Bartomeu Melià Lliteres morreu devido a uma insuficiência hepática, em Assunção, no Paraguai. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU faz memória da sua vida mobilizada e refletida entre a inculturação, a pesquisa, a luta e a evangelização. As informações são do portal Racismo Ambiental.

Melià nasceu em 1932, no município de Porreres, situado na ilha mediterrânea de Mallorca, pertencente à Espanha. A língua materna de Melià é o mallorquín, que ele resumia como um dialeto catalão mais arcaico; porém, foi por outro idioma “não oficial” – naquela época – que ele se tornou um dos maiores linguistas e antropólogos do século XX: o guarani.

Em 1954, completavam-se cinco anos da sua entrada na Companhia de Jesus e, ainda seminarista, foi enviado como missionário ao Paraguai. Em seus primeiros anos no país, realizou estudos do guarani, cujo idioma até hoje 90% da população do país fala, e logo tornou-se professor de guarani para os missionários que chegaram depois dele. Viajou, no final da década de 1950, para concluir os estudos da formação sacerdotal na França; contudo, em 1969, devido a sua tese de doutorado na Universidade de Estrasburgo, iniciou sua imersão na realidade dos guaranis: “eu me questionava sobre algo que não poderia ser respondido na França”, relatou em entrevista à IHU On-Line, concedida em 2010, quando participou como conferencista do XII Simpósio Internacional IHU – A Experiência Missioneira: território, cultura e identidade. A tese “tratava-se da criação de uma linguagem cristã nas Missões Jesuíticas. Assim, passei a entrar nas aldeias guarani [da floresta]. Fui aceito para participar inclusive dos rituais secretos dos índios, em sua casa de rezas”, explica Melià.

Sua pesquisa trouxe novas concepções do fazer historiográfico conciliando a antropologia à história, reconhecendo que as missões, antes de jesuítas, eram guaranis. Melià reconheceu a complementariedade entre as cosmovisões e espiritualidades dos povos nativos com os jesuítas. Encontrou nessa relação novos sujeitos da História, procurando sobre a própria cultura guaranítica as fontes documentais. Como destaca a professora Maria Cristina Bohn Martins, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, Melià “inaugurou as abordagens etno-históricas, tornando clara a necessidade do diálogo transdisciplinar [história e antropologia] para qualificar a análise deste tema. Isto também implica – e ele foi o primeiro a indicar isto com toda clareza – a necessidade de compreender que as missões eram, antes que jesuítas ou coloniais, missões de indígenas guaranis”.

Essa imersão de Melià nas aldeias guaranis não foi apenas como um filólogo ou antropólogo junto ao seu objeto de pesquisa, mas sim uma experiência recíproca de amizade e luta por reconhecimento. Já como professor de etnologia e cultura guarani na Universidade Católica de Assunção, estabeleceu uma relação de reciprocidade com os diferentes subgrupos guaranis: Mbyá, Avá e Paĩ-Tavyterã. Nessa época o Paraguai já vivia sob a ditadura de Alfredo Stroessner, que promovia, como denunciado por Melià e a Conferência Episcopal Paraguaia em 1974, um “verdadeiro genocídio” contra os Aché-guayakí. “Eu entrei na defesa dos Aché-guayaki, que vinham sofrendo ataques incessantes. A questão virou um problema internacional, chegando aos Estados Unidos (ao congresso norte-americano). Os Estados Unidos cobraram explicações do Stroessner. Dez jesuítas foram expulsos, e eu fui nesta leva”, conta em entrevista publicada pela Revista Mana.

Melià, mesmo exilado, não abandonou a pesquisa e a defesa sobre a história e a cultura guarani. Depois de um tempo em Roma, veio ao Brasil, convidado para lecionar como professor visitante da Universidade de São Paulo – USP, em 1977. Nos anos exilados, ainda passaria pela Universidade de Campinas e seria coordenador da Missão Anchieta, em Mato Grosso, onde trabalhou com índios Kayabi e Nambiquara. Depois trabalhou no Rio Grande do Sul, na cidade de Miraguaí – ao noroeste do estado – com os Kaingangs e lecionou na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

Em 3 de fevereiro de 1989, Melià retornaria ao Paraguai, concluindo uma viagem que fora interrompida pelo falecimento de seu pai. O professor conta, em entrevista à Mana, que “no aeroporto, eu fiquei sabendo da queda do Stroessner. Por sorte, o avião no qual viajei foi o único a pousar em Assunção naqueles dias”. A derrocada da ditadura fez com que Melià estabelecesse, desde 1990, moradia definitiva com o povo paraguaio e seus nativos, além dos guaranis, os enawené-nawé. Em entrevista à IHU On-Line, acrescentou que sua vida não era somente pesquisar, mas também “lutar pelos territórios indígenas. Porém não se consegue avançar muito porque o problema de terras está ligado a um novo conceito de propriedade, que entende que apenas quem compra a terra pode ser seu dono”.

Em 2010, Bartomeu Melià recebeu o prêmio Bartolomé de las Casas pela defesa dos povos indígenas; em 2012 foi condecorado pela Câmara dos Deputados do Paraguai com a Orden Nacional del Mérito Comuneros, pela contribuição e defesa dos povos guaranis; e em 2018 recebeu o reconhecimento de Doutor Honoris Causa da Pontifícia Universidade Comillas, de Madri.

Em sua última entrevista traduzida e publicada no sítio do IHU, concedida à revista colombiana Vida Nueva, em março de 2018, continuou denunciando a violência que por décadas – e séculos – ainda ocorre no país em que optou por viver: “É o capítulo mais triste do Paraguai. Por parte da política oficial, atrevo-me a chamá-lo de genocídio dissimulado. O cultivo da soja, do qual o Paraguai tanto se orgulha, é feito à custa do desmatamento e do desenraizamento da nação guarani. O maior produtor de soja é, de fato, o maior produtor de pobreza e miséria extrema. Muita terra para poucos, e muitos, a maioria, sem terra onde colocar o pé e menos ainda a casa”.