‘Sinais de que ela está traindo’: sem filtro, conteúdos são nocivos diante do alto índice de feminicídios em MS

Violência está relacionada a não aceitação da parceira como alguém que pensa, sente e deseja diferente

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Supostas 'dicas' de relacionamento se espalham pelas redes e têm milhares de visualizações.
Supostas 'dicas' de relacionamento se espalham pelas redes e têm milhares de visualizações.

Ela deixa o celular sempre no modo silencioso ou com a tela virada para baixo, tem uma preocupação excessiva com a própria aparência, é muito ciumenta, não dá satisfação de todos os lugares que vai e sai com as amigas, sem você. Para alguns criadores de conteúdo no Tiktok, estes seriam sinais mais do que suficientes para chegar à conclusão de que você está sendo traído. A ‘trend’, que se espalhou na rede com supostas dicas de relacionamento, traz perigos em uma das sociedades que mais mata mulheres. No primeiro semestre, Mato Grosso do Sul chamou a atenção ao bater recorde de feminicídios. 

A chamada ‘trend’, ou tendência na tradução, ocorre quando um determinado assunto começa a viralizar nas redes sociais. Na rede onde os vídeos são curtos e interativos, alguns influenciadores começaram a criar conteúdos com dicas de relacionamentos. Entre elas, há algumas que são perigosas e podem afetar negativamente quem está assistindo. 

Com a chamada “Sinais de que ela está te traindo”, as supostas dicas foram reproduzidas por diversos criadores e renderam milhares de visualizações. Porém, o que parece ser inocente pode acabar muito mal. O problema é que os conteúdos trazem ‘sinais’ que, na prática, poderiam significar qualquer coisa. Mas, ao deduzir uma traição, o caso pode terminar em agressão ou até feminicídio, em uma sociedade em que muitos homens acreditam que são donos das mulheres. 

Nos comentários, os relatos são de quem está passando pela situação e já começa a desconfiar. “A minha [namorada] sempre some e diz que saiu ou dormiu, devo me preocupar?”, comentou um rapaz em um dos vídeos. “É como diz o ditado, quem não deve, não teme”, disse outro. “Se você acha que ela está te traindo, termine. No relacionamento, é preciso confiança”, comentou outro usuário. 

A psicóloga presidente do CRP14/MS (Conselho Regional de Psicologia da 14ª Região) e psicanalista lacaniana, Marilene Kovalski, explica que o alto índice de feminicídio está muito relacionado a essa não aceitação do outro. “[Não aceitar] como alguém que pensa, sente, deseja diferente do sujeito. É a eliminação pela incapacidade de se relacionar com o diferente”.

Para a psicóloga clínica e mestre em psicologia Giovana Guzzo Freire, o perigo de ‘trends’ como essa está na fantasia. Se a fantasia estiver em primeiro plano, o ciúme vai dominar. Ela explica que os vídeos usam informações gerais e a pessoa que está assistindo pode querer aplicar aquelas suspeitas em sua particularidade, é aí que está o perigo. “O vídeo pega informações gerais, mas aí casa com a fantasia do sujeito que está assistindo e ele quer aplicar isso na sua vida pessoal. As informações podem sim deixar a pessoa em alerta, mas cada um tem um jeito diferente de ser. Ninguém vai ser igual a ninguém, todos têm sua personalidade”, diz.

É importante lembrar que, antes de chegar a conclusões, o diálogo é essencial. Para a psicóloga Marilene, a conversa serve como uma ponte diante da impossibilidade colocada pela diferença que temos como seres humanos. “Antes de deduzir, fantasiar, o melhor é conversar, se posicionar, ouvir o outro, construir um entendimento possível que atenda a ambos. Esse desejo de criptografar movimentos e comportamentos do outro só nos leva ao distanciamento afetivo e social. É preciso coragem e disposição para investir num relacionamento”, reforça.

Freire também reforça que esse comportamento de tentar adivinhar o que o outro está pensando e fazendo é prejudicial ao relacionamento. Nunca ninguém vai acertar sobre o que o outro está fazendo, ninguém vai ler pensamento. “Essa lacuna entre o que ele está fazendo e o que eu penso é impreenchível, e aí entra os ciúmes, discussões, brigas, a posse. ‘Eu quero fazer o que eu quero, que você seja do jeito que eu escolhi’”, afirma a psicóloga clínica.

Para Kovalski, a tal ‘trend’ pode ser problemática ao tentar traduzir o que o outro quis dizer através de suas ações. Ela afirma que tentar fazer essa interpretação na ausência da parceira ou parceiro pode levar ao erro. Ela ressalta que o relacionamento deve ser sempre construído com respeito e confiança. “Sem isso, pode ser um jogo, mas não uma relação”, conclui.

Sentimento de posse está entre os fatores que levam à violência doméstica. (Foto: Marcos Santos/USP)

 

Ciúme e sentimento de posse

Raiva, desprezo, sentimento de posse e ciúmes estão entre os sentimentos que podem acabar em feminicídio. O crime é caracterizado pelo assassinato de uma mulher pela condição de ser mulher.

De acordo com o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher, o feminicídio é a última instância de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte. “Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mulher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro”.

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