Primeiro passo na vida adulta começa agora

Aos 8 anos, Verônica* viveu, junto ao irmão mais novo, situações que colocaram à prova a resistência ainda prematura das crianças. Ela e o irmão foram retirados da guarda dos pais pela Justiça, que precisou intervir. E lá se vão 9 anos. Agora, ela tem 17, conseguiu emancipação na Justiça e dá o primeiro passo na caminhada para a vida adulta: monta a primeira ‘casa’, uma quitinete, sozinha.

Quem acompanhou os anos de resistência e amadurecimento de Verônica é a juíza Katy Braun, titular da Vara de Infância, Juventude e Idoso do TJ-MS (Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul). As duas – Verônica mais do que Katy – emocionam-se ao lembrar dos percursos e pensar no futuro, que começa a ser construído. A juíza divulgou uma campanha pedindo auxílio financeiro no Facebook, para que a adolescente mobiliasse a nova moradia.

Poucos dias já renderam tudo que ela precisa, com exceção de um computador, ainda em falta. Outra preocupação da juíza é com o emprego da jovem, cujo vínculo acaba em julho. Verônica irá precisar de uma nova oportunidade. Quem puder e quiser ajudar, pode entrar em contato pelos números 3317-3512 ou 3317-3548.

Não são apenas as memórias de uma adolescência em abrigos que integram a rotina de Verônica. Ela estuda e divide o tempo com o trabalho no Fórum – de jovem aprendiz – e amadurece a ideia de cursar Direito, inspirada e possivelmente influenciada pelo meio que convive.

“Eu trabalho na Vara de Execução penal, eu gosto bastante. Quando eu era menor eu queria ser juíza, mas, agora, tem uma menina que trabalhou comigo e eu admirava muito ela, ela sempre foi dedicada, ela se formou, fez OAB, passou na OAB certinho”, comenta a adolescente.

Para que uma pessoa seja emancipada, conforme explicou a juíza, é necessário concluir o ensino superior ou casar. Verônica vai tentar comprovar na Justiça que já tem as condições materiais e morais de gerir a própria vida.

Abrigos, casa dos tios e a ‘fada madrinha’

Por um ano Verônica conviveu com uma família. “A gente tentou muito tempo a reintegração familiar, o que não foi possível, então eles acabaram destituídos do poder familiar e encaminhados para adoção. Logo depois que isso aconteceu, eles encontraram uma família, ficaram um ano com a família e aí foram devolvidos, como a gente diz”, comenta a juíza.

A adolescente tinha 14 anos quando a família desistiu da adoção. Então, os irmãos foram viver com os tios e mais um desafio se colocou no caminho da adolescente: o tio faleceu, e a tia, conforme explicou a juíza, não deu conta de cuidar dos irmãos.

Mesmo precisando de auxílio para iniciar a vida adulta, Verônica e todas as crianças e adolescentes abrigados precisam mesmo é de afeto. Tanto é que a existência de uma espécie de ‘fada madrinha’ na vida da jovem, fez com que ela sentisse o apoio necessário para seguir.

 “A Verônica teve uma madrinha, uma senhora que foi uma referência afetiva e moral pra ela nesse período todo e agora que ela deixou a casa da tia, pra ela não voltar pro abrigo, essa senhora a acolheu como madrinha e sugeriu que ela encarasse a vida como uma pessoa independente”, comentou a magistrada.

Ao pensar na afetividade, a jovem não segura as lágrimas. “Não quero chorar… às vezes, as crianças nem precisam tanto das coisas materiais, mas, além disso, atenção, porque é o que a gente mais precisa de verdade. Tem muita gente que nem sabe que existe isso. Às vezes eu conto pros meus amigos, e meus amigos: ah? Você ta zoando né?”, relatou, em meio ao choro.

“Essa convivência, os estudos têm mostrado, deve ser, preferencialmente, com a família, mas se você não tem os pais, mas tem outras pessoas de referência com quem você possa se sentir seguro, saber que tem alguém que não vai te abandonar, isso ajuda muito e essa madrinha da Verônica representa isso na vida dela”, enfatiza a juíza.

Enquanto o irmão estuda em Colégio Interno, Verônica termina o ensino médio. Ela se destaca, já que a maioria dos adolescentes que viveram situações como a dela tem dificuldade em concluir os estudos.

“Ela está terminando o ensino médio, o que é muito incomum nas crianças. As crianças, como elas vem de famílias que tem problemas, dificilmente elas estão registradas na escola, então elas chegam com atraso escolar muito grande e por causa da situação afetiva das crianças que ficam em abrigo, isso é muito prejudicial para o aprendizado, então eles acabam não avançando muito nos estudos, diferente da Verônica”, explica a magistrada.

A juíza não esconde o orgulho e admiração pela jovem, que ela viu crescer de maneira diferente de outros adolescentes abrigados. Enquanto outras meninas casaram ou desenvolveram o vício em substâncias, Verônica quer ser o exemplo.

“Quando a Dra. falou da entrevista, eu até cheguei no meu serviço e falei: que legal, porque as outras pessoas vão ver e não vai ajudar só eu, porque não tem só eu. Tem um monte de crianças, adolescentes, que estão precisando também, que estão saindo agora de lá e, às vezes pior do que eu”.

*O nome é fictício, para resguardar a identidade da adolescente. A jovem concordou, assim como a juíza, em divulgar as fotografias. O nome verdadeiro, no entanto, pode dar acesso ao histórico familiar dela, o que é vetado pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).