O dia 25 de julho é dia de luta, comemoração e ancestralidade. É celebrado o Dia Internacional da Mulher Negra LatinoAmericana e Caribenha. No Brasil, essa data possui outro nome, Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, valorizando o protagonismo de uma rainha que lutou fervorosamente contra a escravidão em nosso país.

Tereza de Benguela viveu no século XVIII e, após a morte de seu companheiro José Piolho, se tornou rainha do Quilombo Quariterê, localizado na fronteira entre a Bolívia e, à época, capitania do Mato Grosso. Há poucos registros da vida e dos feitos de Tereza, mas não podem ser apagados, nem esquecidos, os 20 anos de resistência do quilombo sob a liderança da chamada “rainha Tereza”.

Tereza de Benguela (Reprodução/ Brasil Escola)

O dia de Tereza foi instituído no Brasil em 2 de julho de 2014, por meio da Lei no 12.987, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff. Hoje, Tereza de Benguela é símbolo de força e ancestralidade para as mulheres negras que vivem, sonham e lutam no Brasil atual. Brasil este que possui 55,5% da população autodeclarada como preta ou parda, conforme o Censo Demográfico de 2022 realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 

No Mato Grosso do Sul, o número de autodeclarações de pessoas pretas é de 6,5% e pardas 46,9%. Além disso, nosso estado possui 2.572 pessoas quilombolas, assim como Tereza de Benguela. Dentre elas, 44,52% vivem em territórios quilombolas e 55,48% fora dessas áreas. 

Para destrinchar os sentimentos envolvidos nesta data, o Jornal Midiamax conversou com sete jovens mulheres negras e artistas de Campo Grande. Elas nos contaram suas trajetórias, dores, sonhos e amores vividos e vivenciados a partir de suas identidades negras, femininas e, em alguns casos, LGBTs. 

Jovens Terezas

Isabela Lopes é artista cênica, dançarina, modelo e pós-graduanda em Ensino de Arte e do Movimento. Para ela, Tereza é referência essencial para se ter sempre em mente. “Acredito que a Tereza de Benguela é uma forte inspiração para o meu estilo de vivenciar a vida na atualidade. Há cerca de 2 anos venho trabalhando meu pensamento crítico em relação ao mercado de trabalho, e as possíveis formas de aquilombamento dentro do mesmo”, afirma. 

A atriz acredita ser urgente uma mudança de postura na sociedade em relação às mulheres negras. “Precisamos subverter essa imagem servil que geralmente submetem grande parte das mulheres pretas no mercado de trabalho, precisamos liderar e recrutar mais das nossas. Aquele ditado que quando a gente chega no topo, precisamos alargar as portas e tendas para caber mais e mais das nossas”.

Lua Maria e sua obra “Espelho de nós sobre moldura” na exposição R[EXISTÊNCIA, no Rio de Janeiro, em junho de 2024. (Foto: Arquivo Pessoal)

Para Lua Maria, produtora cultural e multiartista, o dia 25 é dia de festa. “É uma data em que a gente tem que celebrar e lembrar que o corpo negro não é só dor, existência, violência policial. Dias como o dia da mulher negra são dias para comemorar que a gente está viva, conseguindo fazer coisas significativas para nossa comunidade”.

Andressa Santana, conhecida como Lady Afro, é DJ, dançarina ballroom, performer, produtora cultural e multiartista. Ela afirma que o papel dessa data é de empoderar e protagonizar mulheres pretas em seus diversos tons de pele. “Representa nós negras brasileiras, que somos de vários tons de pele, somos negras latinas, somos parte da miscigenação do Brasil. Nos empoderar, nos identificar e celebrar a nossa resistência, a nossa força. Porque nós somos mulheres muito fortes, às vezes a gente nem quer ser, mas o mundo faz com que a gente tenha que ser mulheres fortes”

Colorismo: racismo quase mascarado

A jornalista, diretora da Websérie “5, 6, 7, 8… Colorindo o ballet clássico”, modelo e bailarina, Luísa Barbieri passou a maior parte da vida confusa com sua identidade, e apenas durante a graduação que se entendeu como mulher negra. “Pra mim, o que significa ser mulher preta é um autoconhecimento diário. É um descobrimento diário. Eu me entendi como uma mulher negra quando eu entrei na fase adulta, então eu demorei, fui construir essa identidade de forma mais tardia. É uma luta diária”.

Luísa Barbieri desfilando no PRETOU para a marca independente Pele Preta. (Foto: Muriel Xavier)

Esse autoconhecimento e autoidentificação como negra é complicado para meninas negras de pele clara, que muitas vezes são vistas como “pardas”, e ditas “brancas demais para serem pretas e pretas demais para serem brancas”. Há um nome para isso: colorismo. Em seu livro “Colorismo”, a advogada e pesquisadora  Alessandra Devulsky afirma que “o colorismo é uma ideologia, assim como o racismo”.

Ela explica que o colorismo funciona como um apagamento das múltiplas formas de ser uma pessoa negra, além de contribuir para a rivalização entre pessoas racializadas. “No Brasil, o colorismo estipula o quanto é possível ser negro gozando de alguma segurança. A mestiçagem serve, assim, como laisser-passer [passabilidade]. Contudo, um negro de pele clara, lido como sujeito autorizado a circular na esfera branca de poder, ao portar um turbante, ao usar um dread no cabelo, pode perder com muita facilidade seu laisser-passer”.

A autora explica que essa passabilidade de pessoas negras de pele clara é uma expressão do racismo, de forma que as pessoas negras retintas sofrem violências que pessoas de pele clara não enfrentam, mas, em contrapartida, é também um apagamento identitário imposto a quem têm dúvidas sobre sua racialização. “A primeira forma pela qual o colorismo afeta negros claros é criando essas barreiras ideológicas no interesse natural que todo ser humano tem por compreender suas origens”.

A falta de representatividade e valorização da cultura negra é também uma forma de atuação do colorismo. “Crianças que crescem em meio a um ambiente escolar e familiar estruturado em princípios de inferiorização da cultura africana, de vilanização das vítimas da escravidão e de invisibilização dos heróis e heroínas da resistência contra a escravidão não poderiam se desenvolver valorizando sua negritude”, complementa Alessandra. 

Ser mulher negra: uma construção coletiva

Assim como Luísa, várias meninas negras passam por essas dúvidas e invalidações de suas identidades. Beatriz Brites, também jornalista e idealizadora do podcast “Elas no movimento”, sobre mulheres negras nos movimentos sociais de Campo Grande, enfrentou julgamentos e preconceitos em relação a este “não lugar”, como ela mesma diz. “Pra mim, ser preta significa me reafirmar, pertencer a algum lugar, porque eu estava em um despertencimento. Sou parda? Sou branca? Sou preta? Enfim…”.

Beatriz Brites apresentando seu Trabalho de Conclusão de Curso “Elas no Movimento”, sobre mulheres negras nos movimentos sociais de Campo Grande. (Foto: Ana Laura Menegat/ Arquivo Pessoal)

Beatriz relembra sua infância e das dores que sentia naquele momento e ainda carrega consigo na vida adulta. Ela conta que entre as coleguinhas brancas, ela nunca era escolhida para as brincadeiras. Além de exclusões na escola, também se sentia excluída daquilo que via na televisão: meninas brancas, de cabelos lisos e loiros, narizes finos. “Eu queria performar exatamente o que eu via na televisão como bonito”, relata.

Isabela Lopes no desfile de moda PRETOU, em maio deste ano (Foto: Muriel Xavier)

Para ela, se reconhecer como mulher preta é se reconhecer em si mesma e entender o porquê de algumas feridas doerem tanto. “Significa entender coisas que antes eu não entendia, dar nomes e conceitos a coisas que eu não entendia que aconteciam comigo, minha auto rejeição, comportamentos da sociedade, tanto comigo quanto com outras pessoas. Eu lembro de ver na TV aqueles ‘Top 10 mulheres mais lindas do Brasil’ e eu sonhava em ser uma daquelas mulheres quando eu crescesse. Eu odiava meu cabelo, odiava a cor dos meus olhos, odiava minha pele”.

Por isso, Isabela Lopes considera tão importante e necessária a prática do aquilombamento como forma de resgatar as raízes e enaltecer a ancestralidade. “Eu acredito que o aquilombamento é a consciência e o sentimento. Nessa trajetória de vida a gente vai negociando tantas coisas que não nos deixam aquilombar, que a gente se afasta do contexto de luta, mas é importante pra gente entender os lugares que a gente não quer voltar mais”. 

Para ela, a arte é também um local de resgate de raízes um dia esquecidas ou apagadas. Ela cita a festa Afrogueto, organizada e protagonizada por artistas negras e negros de Campo Grande. “A arte propõe esse portal: um quilombo sem ser um quilombo fixo, mas é um lugar do encontro. Faz a gente se encontrar, se amar, se desejar mais, lembrar das nossas raízes e lugares”.

Ser mulher negra E amar outras mulheres

Ser mulher negra é duplamente difícil. Ser negra e LGBTQIAPN+ ganha ainda mais uma camada de lutas diárias, e ao mesmo tempo, ganha também mais uma camada de orgulho. Andressa é uma mulher lésbica que não deixa sua voz ser censurada. Ela faz de seu corpo sua ferramenta de revolução e, por meio de suas músicas e performances, Lady Afro enche os espaços que ocupa de movimento, arte e diversidade. “Para mim ser mulher preta lésbica é sinônimo de resistência, luta, força e ancestralidade”, afirma.

Lady Afro se apresentando como DJ e performer no desfile PRETOU. (Foto: Muriel Xavier)

Para Lua Maria, carregar essa identidade é bonito, mas pesado. “Ser mulher preta e LGBT é como se todo o cargo da resistência ficasse sobre as minhas costas o tempo inteiro. Eu não consigo ser outra coisa se não uma mulher preta LGBT em todos os espaços que eu vou e que eu ocupo. Eu sinto dores que me atravessam”.

Essas dores que atravessam Lua, também atravessam as pessoas LGTQIAPN+ que vivem em nosso país e carregam por todos os lados o peso de ser quem são. Durante a produção desta reportagem, algumas dessas feridas iniciaram o processo de cura. Sabe aquele primeiro passo para sarar um joelho ralado? Lavar em água corrente com sabão e passar um merthiolate?!

Quando a equipe do Jornal Midiamax entrou em contato com Beatriz Brites, ela nos contou que ainda não havia assumido sua bissexualidade para sua mãe, por medo da não aceitação. “A minha mãe, que é minha melhor amiga, ainda não sabe que sou bissexual e eu temo muito a reação dela quando ela descobrir, porque ela é cristã e tem alguns conceitos muito enraizados e muito indiscutíveis sobre isso. A gente já conversou sobre, sem eu me colocar na história, então eu sei alguns pensamentos dela e me assusta isso”, desabafa.

Alguns dias depois nos reunimos para uma roda de conversas (que você, leitora e leitor, vai poder conhecer ao final deste texto) e Beatriz falou sobre essa dor e as ausências sentidas por ocultar essa parte de si mesma à alguém tão importante. Hoje, a realidade é outra: Beatriz contou para sua mãe sobre sua sexualidade e foi recebida com acolhimento e até brincadeiras: “eu desconfiava”, relata a mãe.

Resistir na arte de Campo Grande

A fotógrafa Hanna de Souza tem olhar carinhoso e atento para registrar expressões artísticas da cultura preta, periférica e LGBTQIAPN+ de Campo Grande. “Ser uma mulher preta na cultura de Campão é enfrentar diversas dificuldades, principalmente quando produzimos uma arte considerada marginalizada. CG ainda tem uma estrutura muito sexista, racista e homofóbica, de que o rap, o funk, o vogue, tudo isso não é bonito, eles não consideram isso como arte”.

O “eles” a quem Hanna se refere são as pessoas que ocupam posições estruturais de privilégio, como homens cisgênero, brancos e héteros, que desconhecem as dores e vivências de mulheres negras, LGBTs e periféricas. “Na minha vivência ser uma mulher preta e lgbt significa que terei menos oportunidades em várias áreas da vida, significa que terei sempre que lutar o triplo para conseguir reconhecimento, mas também significa que consigo enxergar a vida de uma outra maneira”, desabafa a fotógrafa.

Alessandra Coelho em Slam. (Foto: Elio Angelo)

A poeta, baterista e professora Alessandra Coelho concorda com Hanna, e sente certo medo ao longo do caminho. “Campo Grande é uma cidade de becos por onde passar sendo uma mulher racializada bissexual é perigoso”. Mesmo com medo, ela complementa: “me arrisco”.

As palavras de Alessandra correm pela cidade, percorrem os becos e ecoam pelas avenidas. Mesmo que o medo frequente sua mente e seu coração vez ou outra, a coragem de colocar sentimentos, desejos e revoltas em versos faz com que outras garotas se sintam encorajadas a enfrentarem o sistema e serem quem são. 

Como Andressa, a Lady Afro, que resiste há seis anos. Ela afirma seguir não apenas pelo seu próprio sonho, mas por acreditar que a subida é coletiva e compartilhada. “Eu resisto nessa luta, tentando fazer com que outras pessoas pretas alcancem os palcos, os lugares nos quais elas têm que pertencer. Tento levar representatividade através das minhas roupas e dos eventos. Não é fácil, mas a gente vai resistindo”.

Da esquerda para a direita: Hanna, Lua e Lady Afro na festa Afrogueto, em 2023. (Foto: Arquivo Pessoal)

Orgulho de ser preta

Carregar essa identidade fica um pouco mais leve quando mulheres negras se unem e compartilham suas vivências e seus sentimentos. E a força se renova em dias como o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, também conhecido como o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino Americana e Caribenha. Dia 25 de julho. Dia de festa e ancestralidade.

Hanna no lançamento de “Usamos tudo para poesia”, livro de Alessandra Coelho. (Foto: Ana Laura Menegat/ Arquivo Pessoal)

“Essa data é o momento para darmos visibilidade às coisas que as mulheres negras, latino americanas e caribenhas estão fazendo. Que lugares elas estão ocupando? Não só trazer o racismo e coisas tristes para a pauta. Falar de racismo é importante, estamos ativas na luta antirracista, mas acho que nesse dia é muito legal darmos visibilidade para essas mulheres, despertar na sociedade o que as pessoas pretas estão fazendo. Eu financio a arte de pessoas negras?”, questiona a jornalista Luísa de Oliveira. 

A fotógrafa Hanna sente que as mulheres pretas só são ouvidas em julho e luta para que essa escuta ativa e consciente seja prática diária. “Também é uma data para celebrar as nossas raízes, se orgulhar por ser uma mulher preta, e contar nossas histórias de vida e levar cada vez mais pessoas a olhar para nossas lutas”, complementa.

Para a jornalista Beatriz, esse é um momento de escuta e aprendizado. É hora de estudar e voltar às raízes. “O que essas mulheres negras latino americanas e caribenhas fizeram antes de nós? Quem foram elas? Com isso eu aprendo muito sobre o que mudou e o que precisa mudar. É muito importante falarmos sobre e questionarmos, para assim amplificar o assunto”.

Aquilombar

Quer continuar se aprofundando nesse diálogo? Cinco das sete entrevistadas para essa reportagem participaram de uma roda de conversa com a equipe do Jornal Midiamax. A produção foi realizada por Ana Laura Menegat, Bruna Marcondes e Carlos Velasques, e a entrevista conduzida por Monique Farias. 

Você pode assistir à gravação completa por meio do nosso canal no YouTube:

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