Dourados é o álbum e a cidade que Ruy Sposati deixa pra trás

“Isso é Dourados, Dourados, Dourados”. O refrão de Dourados State of mind, primeiro single do novo álbum do cantor Ruspô, martela no fundo da mente de quem enxerga a cidade com a perspectiva da música: um local onde – para além de diversas outras características – a segregação indígena salta aos olhos. Lançado nesta terça-feira (15), o álbum Dourados fala de um Brasil mais cinzento, onde os conflitos – em uma mistura entre pessoal e social – se intensificaram. O novo trabalho continua a ‘Etnografia musical’ (leia aqui a resenha do single) iniciada no primeiro álbum Esses Patifes, mas com uma densidade completamente diferente.

Dourados fala de um ‘Brasil que ficou em si’, ao retratar questões íntimas do compositor misturadas à experiências que revelam as contradições sociais de estados como Pará, Mato Grosso do Sul e São Paulo, lugares por onde Ruy Sposati, 32 – a pessoa por trás do Ruspô – perambulou.

É o caso da música perder, uma das canções que traduzem o aspecto mais melancólico do álbum. “O mundo não é ruim, só é grande, e a arte de perder não é nenhum mistério”, afirma um dos versos. É o falar de si, ao falar dos outros. É o ‘diluir-se no processo’, como afirmou o compositor.

A melancolia cinzenta de Dourados é sutil e ‘camuflada’ em melodias alegres como as da música moça chorando – que abre o disco – e vai tornando-se mais densa conforme chega ao fim: dá pra sentir e ‘ouvir’ a arte cinzenta da capa do álbum na última música, Jacareacanga. A imagem e a música, juntas, dão a impressão de que o dia amanhece lentamente em um cenário pós-apocalíptico.

 

 

“A gente sistematizou o disco em lado a e lado b, o lado b é um pouco pesaroso, bem mais cinza. Eu acho que o que mais interessa, onde eu mais dialogo, são justamente essas músicas onde eu consigo deixar escoar essa angústia, essa melancolia, que eu não extravaso em outros caminhos e acabam saindo na música”, explicou.

Algumas músicas também experimentam estilos um pouco diferentes do primeiro álbum. Moça chorando – cover do Mestre Suassuna – traz uma espécie de ‘frescor tropical’, como disse o músico. Já Etiqueta, terceira música do discoinclui o uso da viola caipira. Além da experimentação, Ruspô traz, com etiqueta, questionamentos sobre lugares de classe e provoca em quem ouve – ao fazer perguntas como “quem são os jardineiros e os lavadores de qualquer cidade grande?” -, a reflexão sobre figuras invisíveis.

Novo álbum de Ruspô traz a beleza cinzenta de um ‘Brasil íntimo’ e cheio de conflitos“Eu morava em uma ocupação em Belo Horizonte. Na ocupação tinha uma figura que lavava carro lá na frente, o Betão, e eu me lembro que foi desse contraste que ela surgiu. Tinham várias funcionárias de famílias nesse bairro que era bem rico, e ficava bem marcado essa questão de classe. E também, ela fala de uma questão, que é a gente ter essa cultura de não se identificar, de não se reconhecer enquanto classe”, conta ele.

Agora chega de curiosidade. Você pode ouvir o álbum aqui e fazer o download, de graça, aqui.

Ruspô também transformou em música o episódio que envolveu o assassinato do agente de saúde indígena Clodiodi Aquileu dos Santos no dia 14 de junho, na fazenda Yvu, em Caarapó. Essa transformação, no entanto, não é nem um pouco ‘pesada’. Meu glorioso Clodiodi – também uma homenagem a uma das músicas preferidas de Ruy, Meu Glorioso São Cristóvão, de Jorge Ben Jor – conseguiu colocar na canção o renascimento de Clodiodi como uma espécie de mártir para a comunidade indígena. A música, dessa forma, alcança dimensões que vão muito além do luto.

“No dia que eles enterraram o Clodiodi eu estava lá, os meninos estavam enterrando-o sorrindo. Tem um aspecto talvez mais cosmológico disso, e não tem dúvida de que é um momento muito pesado, mas nesse momento que os meninos estavam sorrindo vem muito em função de um de algo maior, da luta pela terra. É uma beleza outra que você encontra entre os indígenas”, relata.

Meu glorioso Clodiodi e 1999 são duas canções que abordam histórias vivenciadas por ele, e que trazem, em meio a outras características, o papel arbitrário de autoridades em épocas diferentes.1999 fala sobre o assassinato de um amigo, cometido por policiais militares no ano que dá nome a música. O momento em que a história ‘pediu para virar música’, no entanto, não é aleatório. Ele dialoga com diversos episódios de tensão e abuso de autoridade que Ruy presenciou trabalhando como jornalista.

 

Resquícios dos ataques sofridos pelos Kaiowá pelas lentes de Ruy (Ruy Sposati/Reprodução)

 

Pergunto a ele sobre a coincidência estranha dos trabalhos musicais serem concluídos ou divulgados quando o compositor coloca o pé na estrada e deixa para trás os lugares que relata nas canções – Dourados é lançado no momento em que Ruy deixa de morar na cidade, no mesmo dia que levava as malas todas para São Paulo, onde deve ficar por um tempo.

“Eu não tinha pensado muito nisso…”, hesita ele. “A música Dourados state of mind vem muito nisso, ela foi feita um mês antes de eu ir embora de Mato Grosso do Sul para Belo Horizonte, na época. Eu percebo que eu acelero o processo de fechar as músicas quando eu estou em trânsito. O disco vem pra tapar um buraco, talvez estranho. Quando eu voltei de uma viagem, já imaginando que não ia dar certo ficar aqui [Mato Grosso do Sul], o disco veio com tudo”.

Ruspô parece reencarnar a antiga figura dos bardos ou trovadores, ao aparecer na cena musical como essa figura peculiar, que passa por diversos lugares e leva consigo histórias e características étnicas&tradicionais, mescladas à dimensões do próprio universo particular.

 

Os Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul são parte essencial do som de Ruspô (Ruy Sposati/Reprodução)

 

Ruy vai embora de Mato Grosso Sul deixando não só uma etnografia musical – que aborda a vivência, por exemplo, junto aos Guarani e Kaiowá (a música Dourados State of mind é permeada pelo canto tradicional das rezadoras) -, ele deixa um retrato artístico do Estado. Da arte em potência, quando o que vem de dentro e o que entra de fora convergem em algo completamente original, colocando uma nova perspectiva sobre questões da existência. Arte, esta, feita à partir das contradições&conflitos étnicos, socioeconômicos e históricos do Brasil, misturadas ao tom poético e delicado das palavras que usou para compor as músicas, e da voz suave com que as canta.

Ruspô está deixando Dourados. Ao mesmo tempo em que, coincidentemente ou não, deixa Dourados de presente para todos nós.