Por mais um dia de sobriedade, anônimos se unem por uma vida sem vício

Era uma noite de sexta-feira e diferentemente de outros anos, ninguém ali iria para festas, bares ou baladas. Todos esperavam ansiosos para mais uma reunião. Ao entrar na sala a primeira coisa que chama a atenção é o número de homens de meia-idade que aguardam sentados a sineta tocar. O barulho do sino avisa mais uma […]

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Era uma noite de sexta-feira e diferentemente de outros anos, ninguém ali iria para festas, bares ou baladas. Todos esperavam ansiosos para mais uma reunião. Ao entrar na sala a primeira coisa que chama a atenção é o número de homens de meia-idade que aguardam sentados a sineta tocar. O barulho do sino avisa mais uma sessão do AA (Alcoólicos Anônimos).

Olhando mais ao fundo veem-se também algumas mulheres, mas bem menos, se comparado à quantidade de homens. Outras estão com os companheiros, dando força por mais um dia de sobriedade. Esta é a primeira lição que se aprende no AA e como um mantra eles repetem a cada fim de depoimento “por mais 24 horas de sobriedade”.

Pode parecer estranho para quem não vive com um dependente essa frase repetida a cada fim de relato. Mas após ouvir dez deles e se emocionar com a filha contando que estava ali para comemorar os seis anos de sobriedade do pai ficou claro: o grupo devolve aos alcoólicos a vida que eles tiram de si mesmos.

A jovem, uma menina bonita, com cerca de uns 20 anos, contou que nunca foi à frente dos ‘companheiros’, como eles se chamam, dar seu testemunho porque sabia que iria chorar, e chorou e fez chorar.

Com lágrimas nos olhos e voz embargada, a jovem contou que chorava não pelo que vivia hoje, mas pelo o que lhe foi tirado. “Não era só meu pai que tinha o problema, mas a família que também não entendia. O problema do meu pai também era os das amigas, o bar que ele ia, também ia o pai da amiga. E a gente achava que era normal”, disse.

Emocionada, ela lembrou que o pai já havia procurado o grupo antes, mas somente em 2008 se estabeleceu e está conseguindo vencer a dependência. Antes, a bebida sempre ganhava.

Assim como o relato dela, outro frequentador contou que veio de uma família de alcoólatras e que viu o pai morrer por causa da bebida. Temendo o mesmo fim, procurou o AA. “Meu pai morreu em casa, entregue, o álcool venceu”, contou.

As histórias se repetem. Todos contam a dificuldade que tinham e como o álcool lhes tirou quase tudo, senão tudo.

Um dos frequentadores contou que tentou matar a própria mulher um dia que estava bêbado. E apesar de tudo ela o perdoou, o levou até o AA e hoje eles seguem juntos, lutando diariamente por mais um dia sem bebida.

Outro anônimo relatou ter perdido a família e um emprego de 22 anos em uma firma de respeito. “O álcool me tirou tudo, meu nome, meu crédito, minha vergonha”.

Vergonha x Coragem

Vergonha foi uma das palavras mais usadas pelos anônimos. Eles contam que as pessoas chegam ao grupo cabisbaixo, com vergonha de estarem pedindo ajuda, enquanto que na verdade, deveria é ter vergonha da vida que levavam.

“Quando cheguei aqui. Cheguei sem graça, de cabeça baixa. Sentei lá no fundo para não ser notado. Vim a algumas reuniões e não voltei mais. Fui voltar depois de muito tempo, porque para estar aqui é preciso ter coragem”, disse um deles.

E realmente é preciso coragem para enfrentar a doença de cabeça erguida. Assumir que o alcoolismo venceu e que sozinho ele continuará ganhando dia a dia novas batalhas. “Chegar aqui é difícil. A gente chega com vergonha de vir, mas não tem vergonha de ser bêbado”, afirmou outro anônimo.

Mentira

A mentira é outra constante na vida dos dependentes. Em todos os relatos, os frequentadores contaram que mentiam tanto que muitas vezes não sabiam mais o que era verdade e o que era mentira. “Eu era um artista, um artista desses que mentem. Como um palhaço eu enganava, eu mentia. Mentia para mim, para minha mulher, para minha família. Só parei de mentir quando parei de beber”, disse.

“Hoje sou um ex-bêbado, um ex-mentiroso em constante observação. Não bebo mais e por isso não saio daqui. O AA me deu minha vida de volta, me deu a dignidade, a vergonha e a verdade que eu havia perdido”, disse.

Todo dia, um novo dia

Contar os dias para os anônimos se faz tão importante que é comemorado com festa, como um renascimento. Há seis anos livre do álcool, um dos membros conta que quem chega ao AA é porque já não suporta a vida que leva.

Há seis anos longe do álcool, ele conta nunca ter comemorado seu aniversário de nascimento com tanta alegria quanto o de sobriedade. “Só de estar aqui já é uma satisfação muito grande. Não me lembro de ter comemorado meu aniversário com tanta vontade como comemoro este”, afirmou.

Veja pesquisa sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira.

Alcoolismo em mulheres e homens, as diferenças

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