Nos vinte anos da criação do ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] o juiz da 5ª Vara da Infância e da Juventude, Danilo Burin surpreende não só pelas opiniões firmes, como também pelas ações e sinceridade que age frente a um problema crescente.

Ele teve a “coragem” de interditar a Unei Dom Bosco, onde disse em entrevista que os adolescentes lá internados estavam vivendo na “podridão” e vai mais além ao afirmar que a lei que proíbe os pais de darem “palmadas” nos filhos é um prato cheio para o aumento da criminalidade. E que o jovem não quer um estado paternalista, mas sim ter dignidade e ganhar dinheiro de seu próprio suor.

“A família está perdendo o direito de criar seus filhos com disciplina e ensinamentos. E na outra via o Estado não devolve isso”, acusa.

Com histórias emocionantes sobre “os seus meninos”, o juiz recebeu a reportagem do Midiamax em seu gabinete, onde mostrou telas pintadas por adolescentes infratores que estão em liberdade assistida. E não nos deixou sair de lá, sem antes nos entregar um exemplar do ECA. “Não cumprimos nem 10% do que está escrito ai”, reclamou.

Midiamax: O sr. pediu a interdição da Unei Dom Bosco, lugar que chamou de podridão. Como está a situação do trabalho de vocês?

Danilo Burin: Eu pedi a interdição, pois vamos fazer o que tem que fazer, porque nosso trabalho é árduo. Eu sofro esse problema, Três Lagoas, Corumbá, Ponta Porã e todas as outras cidades sofrem com isso. É um trabalho solitário e solidário. É o juiz e mais ninguém. O tribunal confia no nosso trabalho e pronto. E lá não tinha condições de recuperar nenhum desses adolescentes.

Midiamax: Como é feito hoje e o que precisa ser feito para melhorar esse trabalho?

Danilo Burin: O que existe é um esforço muito grande por parte dos funcionários e agentes que trabalham lá e com isso inclusive, a Unei Los Angeles tem oito meninos que saem para atividades, como ir jogar futebol, em outra unidade conheceram a fábrica da Coca-cola, foram ao Museu Dom Bosco, esta semana eles vão a um rodízio de pizza, como pessoas normais, sem algema e sem nada. Isso é um trabalho de recuperação muito bonito que se faz. Não ficar lá tudo trancado e sim dar oportunidade deles conhecerem a vida como ela é. Porque eles nunca tiveram a oportunidade de entrar em alguns lugares, de viver certas situações. E vão eles com o diretor.

Midiamax: Mas há pré-requisitos para que eles participem disso não?

Danilo Burin: Sim, tem pré-requisitos para que eles sejam convidados, mas existe a atividade.

Midiamax: E para melhorar os índices de recuperação desses menores infratores?

Danilo Burin: Apesar de tudo, nós temos um número de recuperação muito grande. O que nós precisamos é cumprir o artigo 94 do ECA, que enumera uma série de coisas que temos que fazer para os meninos que estão lá. Proporcionar atividades e profissionalização desses meninos, que nós não estamos fazendo.

Midiamax: Que tipo de trabalho?

Danilo Burin: Quem está fazendo alguma coisa é o pessoal da liberdade assistida que fazem algumas coisas esporádicas de profissionalização junto com o pessoal do Senai [Serviço de aprendizagem industrial] São coisas poucas, o artigo 94 tem 20 incisos, estamos cumprindo apenas alguns, aliás, nem 10% do ECA é cumprido no Brasil.

Midiamax: Mas há ideias de projetos? Como o poder público age diante disso?

Danilo Burin: Sim, há projetos. Já procurei falar com vários políticos, é que somos obrigados a documentar os adolescentes. Geralmente eles não tem uma identidade, para que esses adolescentes tirem o RG custa R$ 22, agora eu pergunto: de onde vamos tirar dinheiro para isso? Como eles vão tirar? Nós geralmente recebemos os meninos sem documento nenhum e colocamos de volta na sociedade do mesmo jeito. Eu não tenho dinheiro para fazer isso, o Estado cobra para tirar a identidade. Já tirei muito dinheiro do meu bolso, mas agora chega. Nós precisamos de ajuda nesse sentido.

Midiamax: O Sr. pessoalmente faz ações com os adolescentes?

Danilo Burin: A gente faz muita coisa por eles. Qualquer coisa que eles tenham, eu me envolvo no meio deles. Converso com eles e ouço o que eles tem pra dizer. E temos alegrias também. Quantas vezes você sai e chega num local, por exemplo, para fazer um lanche e daí quem você encontra lá um menino trabalhando, refazendo a vida dele. Isso dá uma alegria que as pessoas não tem ideia.

Midiamax: O que a sociedade pode fazer para auxiliar?

Danilo Burin: Meu problema é que trabalhamos sozinhos. A equipe consegue fazer ações em pontos específicos, como a Liberdade Assistida. Eu não tenho tempo de procurar as coisas, não tenho alguém aqui que nos auxilie para que possamos sair a campo. Tenho projetos na cabeça, espetaculares, mas não conseguimos colocar em prática.

Midiamax: Pode citar um desses projetos?

Danilo Burin: Eu já falei com o governador para ele nos auxiliar em um programa que crie um órgão tipo “instituto Mirim” exclusivamente para adolescentes que estão em conflito com a lei. É um caminho a ser seguido. Já pensou se conseguimos fazer isso? Quantos adolescentes podem ser recuperados? Um exemplo só: por que eu não faço um treinamento desses adolescentes para eles trabalharem em escritórios de advogados, só para termos ideia de um ramo de atividade?

Midiamax: De que forma seria feito?

Danilo Burin: Com os advogados, por exemplo. Os adolescente poderiam tirar fotocópias, levar documentos, fazer pequenos serviços. Tirariamos muitos meninos da rua e colocaríamos na condição de cidadão, de trabalhador. Só que eu estou aqui. O governador disse que iria fazer, mas até agora nada aconteceu. São coisas que nos desgastam. Mas se algum empresário estiver interessado, pode nos ajudar.

Midiamax: Mas as pessoas ainda tem receio de contratar alguém que já teve problemas com a lei. Como poderiam ter certeza?

Danilo Burin: Tem todo um processo para o adolescente seja habilitado para isso. Todo um respaldo anterior. Não é tirar a Unei e falar: ‘toma aqui, dá emprego para esse menino’. Nada disso! Tem que ter todo um trabalho, onde ele fica pelo menos um semestre em uma entidade, tem aulas, vai para escola em meio período e no outro período tem treinamento, e depois encaminhamos os que estão aptos para o mercado de trabalho. É um projeto que eu vou tocar quando me aposentar.

Midiamax: Um dos pontos mais contundentes de toda essa questão que envolve adolescentes infratores é o indicativo da redução da maioridade penal. O que o Sr. acha desse assunto?

Danilo Burin: Sou totalmente contra a redução da maioridade penal. Quem conhece a realidade desses adolescentes, quem vive o dia a dia com eles não pode nunca ser a favor da redução da maioridade penal. Os juízes que trabalham com adolescentes infratores em sua maioria são contra. Principalmente pela questão do adolescente estar em formação, querendo ou não ele está. Pega um menino de 14 anos e tranca-o num quarto por uma hora. Agora pega um adulto e tranca uma hora num quarto. Para o adolescente, uma hora é uns 15 dias. Ele não suporta, está tudo fervilhando! Agora, esse menino em formação, se você oferece educação e atividades, você tem ele nas mãos e consegue fazer o que quiser. Por isso a orientação é muito importante. Caímos outra vez no artigo 94.

Midiamax: Mas uma boa parcela da sociedade acredita que a maioridade penal deve ser reduzidas e adolescentes infratores terem penas mais pesadas em casos de crimes.

Danilo Burin: Coloca um menino de 16 anos no presídio [que é o que pedem de redução]. Eu pergunto: resolveu o problema dos adultos no presídio? Por que vamos colocar mais dois anos de menino lá dentro dos presídios? Vai resolver o problema? Não! Ainda conseguimos fazer muita coisa com muito pouco que nós temos.

Midiamax: Coisas boas? De que forma?

Danilo Burin: Eu tenho exemplos de pessoas que conseguiram dar a volta por cima, como um menino que matou um rapaz. Ele estava na faculdade com 17 anos. Ficou apreendido na Unei Dom Bosco. Ano passado ele esteve aqui na minha sala, feliz da vida. ‘O Sr. não está me reconhecendo?’, ele me questionou. Como eu não sabia quem era, são muitos meninos que passam por aqui perguntei. ‘Sou aquele que o Sr. disse na Unei não era meu lugar e me colocou em semi-liberdade e eu pude continuar minha faculdade’, ele me contou. Hoje ele é professor universitário e está fazendo mestrado. Tem também os quadros que enfeitam nosso gabinete com quadros que foram pintados por meninos em liberdade assistida.

Midiamax: Qual o perfil do adolescente infrator?

Danilo Burin: Geralmente é proveniente de família completamente desestruturada. Ou então a família está tudo junto, mas cada um por si. Ou muitas vezes o pai já está no crime. Eu tenho três famílias que já passaram por aqui onde todos eles estão presos. O pai, a mãe e filhos. Um se criou aqui conosco. São famílias. O principal fator é essa falta de valores.

Midiamax: E o Sr. se sente em uma luta solitária? O que os pais e mães lhe dizem quando precisam vir aqui por conta de um delito cometido por eles?

Danilo Burin: Às vezes eu brigo de mais, me chamam de louco, me agridem. Mas veio uma mãe aqui, em que o filho está internado, conversar comigo porque o filho não admite que ninguém chegue perto daquela mãe. Ele já disse para a mãe que quando ele sair de lá vai matar esse namorado da mãe. O pai dele morreu dentro do presídio, era o herói dele. A mãe está apavorada! A mãe contou que perdeu o controle dele pois um dia, quando o adolescente tinha 9 anos ela deu três varadas nas pernas dele e 15 minutos depois estava o Conselho Tutelar na casa dela, repreendendo e chamando a atenção dessa mãe na frente do menino. ‘Perdi totalmente a autoridade com esse menino’, me contou a mãe.

Midiamax: E o que tem a dizer sobre o projeto de Lei que proíbe os pais de baterem nos filhos, mesmo que seja para correção?

Danilo Burin: O novo projeto de lei que ‘proibe’ que os pais corrijam seus filhos com palmadas, vai fazer com que um grande número de adolescentes passem por aqui. Agora o adolescente pode simplesmente dizer: ‘Eu faço o que eu quero e você não vai me repreender. Se você me bater eu chamo o Conselho agora’. São vários pais que vem aqui e reclamam disso. Dizem que não podem mais corrigir as crianças e adolescente.

Midiamax: Mas a lei diz que é para proteger crianças e adolescentes. Como o Sr. vê a intervenção do poder público nessa questão?

Danilo Burin: Para mim, os órgãos públicos devem estar a favor de uma disciplina familiar, não criar bandidos com 4, 5 anos de idade. Essa lei, ela vai aumentar a quantidade de adolescentes que vão passar por essa vara de infância. A lei em vez de auxiliar, não só atrapalha como tira dos pais o poder pátrio.

Midiamax: Qual seria o melhor caminho para a prevenção de crianças e adolescentes desse mundo ilegal?

Danilo Burin: É preciso que o poder público reveja a condição dos adolescentes. Eles não querem assistencialismo, eles querem emprego. Muitos querem apenas trabalhar, pois já tem família, já tem filhos para criar e falam: ‘Dr. eu não quero cesta básica, eu quero trabalhar. E quando descobrem que eu sou menor simplesmente me mandam embora sem nem me pagar meus direitos’. É isso que eles reclamam. Que nas relações de trabalho, eles não tem direito respeitado.

Midiamax: E o jovem então se sente tentado a entrar no mundo do crime?

Danilo Burin: Daí ele diz que a única coisa que tem pra fazer é vender droga para sustentar os filhos e a família. Uma situação que não podemos apoiar, mas que é o caminho que nossos jovens estão tomando. O poder público não está vendo isso. Infelizmente na nossa cidade também tem um promotor do trabalho que não deixa adolescentes trabalhar. Eu não falo de trabalho escravo. Eu falo de trabalho de subsistência, onde eles possam ao menos se sustentar. Se pudessem trabalhar, muitos desses adolescentes nem sentariam aqui na minha frente. Agora trabalhar é explorar? Eles querem apenas é ganhar o dinheiro deles. E crianças e adolescentes que estão ali, auxiliando os pais a limparem uma casa ou em pequenas tarefas não estão sendo explorados, estão aprendendo a fazer algo, a ter disciplina.

Midiamax: O Estado está tirando dos pais o direito do “pátrio poder” então?

Danilo Burin: O Estado está tirando o pátrio poder dos pais, de disciplinar e criar da forma que ele quer. Mas o mesmo Estado que faz isso, não faz o contrário, não oferece essas condições aos adolescentes para isso. Onde se cria o menino? Na rua! Ele diz: ‘eu vou porque eu quero e você não pode me trancar’. Eu não aceito isso de forma alguma! Sou totalmente contra esse tipo de direcionamento.

Midiamax: Qual seria então o papel do Estado com os adolescentes?

Danilo Burin: O papel do Estado é dar condições do menino trabalhar, dar dignidade, pois muitos deles dizem que precisam trabalhar. Dignidade para um jovem é ganhar com o suor dele. Um Estado paternalista não interessa a eles.