Bombardeios, utilização de armas biológicas, envenenamento, tortura, mutilação, estupro e escravidão. Estas são apenas algumas das atrocidades de toda sorte, datilografadas em riqueza de detalhes, que estão entre as mais de 7 mil páginas do conjunto de documentos conhecido como ‘Relatório Figueiredo'.

Divulgado publicamente há exatos três anos, após quase cinco décadas dado como perdido em um suposto incêndio, o relatório descreve as atrocidades brutais e institucionalizadas cometidas pelo Estado brasileiro contra povos indígenas em diversas regiões do país, inclusive , entre os anos de 1946 e 1968.

O relatório é uma crônica de mortes anunciadas, no país em que ser índio basta para ser sinônimo de obstáculo do progresso. Nele, a prática de uma política genocida institucional atendendo interesses de latifundiários é a mais clara e irrefutável conclusão. Entretanto, o modus operandi escolhido para atravancar a existência de povos indígenas no país causa arrepios até aos mais sádicos sociopatas, devido a descrição dos métodos desumanos empregados.

Fruto de uma CPI iniciada em 1967, ainda durante a ditadura militar, os arquivos trazem uma narrativa fúnebre e nefasta, marcada pela crueldade e falta de compaixão, sobre o genocídio étnico com fins higienistas promovido pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – órgão que supostamente deveria cuidar dos interesses desta população.

Com o ressurgimento dos documentos praticamente intactos (29 das 30 partições em que o arquivo foi dividido ao ser apresentado oficialmente, em 1968, estão bem conservadas), descobertos pelo ativista de direitos humanos Marcelo Zelic, em abril 2013, no do Índio (RJ), a exposição da perversidade a que centenas de tribos indígenas foram submetidas causou clamor, inclusive internacional.

Relatório narra genocídio e tortura aos índios, mas segue ignorado em MS
Registro de indígena torturado (Foto: Reprodução)

As milhares de páginas foram digitalizadas e foram exploradas na Comissão da Verdade, uma investigação criada pela presidente Dilma Roussef para investigar os crimes cometidos durante governos de excessão no Brasil, entre 1946 a 1988. Um inquérito judicial foi criado, no qual mais de 130 ex-funcionários do SPI foram acusados ​​de mais de 1.000 crimes. Deste total, apenas 38 foram demitidos. Ninguém foi preso, reinou a impunidade.

Mesmo com a vociferação, entretanto, em Mato Grosso do Sul o assunto seguiu adormecido, chegando até a ser deslegitimado em diversas ocasiões, a exemplo da atual CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que buscar identificar omissão do governo do Estado em casos de violência praticados contra os povos indígenas entre 2000 e 2015 – também chamada, a contragosto de parte dos membros, de CPI do Genocídio. O relatório é assunto pouco ou nada explorado pelo poder público, envolvido historicamente até as tripas com esquemas de usurpação de terras e demarcações criminosas.

Relatos de crueldade

“O ‘tronco' era, todavia, o mais encontradiço de todos os castigos, imperando na 7ª Inspetoria. Consistia na trituração do tornozelo da vítima, colocado entre duas estacas enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”.

Uma verdadeira chacina. O esmagamento lento de tornozelos em ato de tortura conhecido como ‘tronco' era uma das práticas de mutilação cometidas pelos funcionários do SPI. Também há a narração de episódios de envenenamento de índios após serem ‘presenteados' com açúcar misturado a arsênico. Armas biológicas, como o vírus da varíola, foram espalhados em áreas indígenas por meio de roupas e cobertores, ocasionando milhares de mortes. Até bombardeios aéreos de dinamite sobre aldeias foram utilizados. Como resultado dos crimes, dezenas de tribos foram dizimadas, algumas até eliminadas.

Encomendada pelo Ministro do Interior Albuquerque Lima em 1967, em plena ditadura militar, a investigação que culminou no relatório foi compilada pelo procurador Jader de Figueiredo Correia – daí o nome pelo qual ficou conhecido. Até o chocante resultado final, uma expedição percorreu mais de 16 mil quilômetros pelo país, desenvolvendo uma etnografia do caos instaurado, após o massacre de diversas aldeias. Dezenas de agentes do SPI foram ouvidos e mais de 130 aldeias visitadas. O óbvio ululante, uma genocídio indígena, foi constatado e registrado.

Relatório narra genocídio e tortura aos índios, mas segue ignorado em MS
‘Caput' do relatório (Foto: Reprodução)

O SPI foi criado em 1910, como órgão ligado ao Ministério do Interior, no contexto em que ocorria o avanço do país para as terras sertanejas – período em que o povoamento de Mato Grosso (inclusive a região sul, que atualmente corresponde a MS) ganhava força. Muito embora fosse apresentado como um órgão para mediar interesses indígenas, os relatos de crueldade começaram a chegar ao governo e por esta razão, a investigação foi surpreendentemente criada. Em 1967, o SPI foi extinto, sendo substituído Funai (Fundação Nacional do Índio) e os servidores remanejados para a recém criada fundação.

Antes de ser encontrado, tudo que se sabia sobre o documento estava registrado nas reportagens da época, em ocasião de uma entrevista coletiva em março de 1968 no qual a conclusão do levantamento foi detalhada. Foi dado como perdido durante um incêndio no Ministério da Agricultura, nos anos seguintes de ser entregue. Por isso, a ‘descoberta' ganhou sabor especial – um ano antes da localização, os integrantes da comissão que investigou os crimes da ditadura militar foi formada. Os arquivos do relatório passaram a integrar as provas e o resultado final mostrou que os anos de chumbo foram ainda mais sombrios que o conhecido.

Relatório narra corrupção generalizada

Relatório narra genocídio e tortura aos índios, mas segue ignorado em MS
Imagem encontrada nos arquivos do relatório (Foto: Reprodução)

Esquemas de corrupção envolvendo o poder legislativo e funcionários do SPI são constantes no Relatório Figueiredo. Documentos anexos ao levantamento, por exemplo, narram o episódio em que a Assembleia Legislativa de Mato Grosso – antes da dos Estados – sob o comando do então deputado Rachid Mamed, criou uma legislação em que terras de indígenas da etnia kadwéu, nos arredores de Corumbá, foram distribuídas entre as oligarquias locais, dentre elas a família de Pedro Pedrossian, governador que sancionou a matéria.

A informação é clara num exemplar do Diário Oficial do Estado de Mato Grosso de tiragem limitadíssima – apenas três exemplares – que por astúcia de Figueiredo foi obtida e incluída no relatório. Na época, a lei chegou a ser contestada no STF (Supremo Tribunal Federal) e só muito recentemente recebeu um ‘arquive-se', no qual o ministro Teori Zawaski lavou as mãos, devido a complexidade de resolver a situação.

Ainda sobre o território do atual Mato Grosso do Sul, a investigação relata a expulsão brutal de índios da etnia Xavante da região de Três Lagoas. Em Miranda, índios Terena tiveram área significantemente reduzida, a exemplo das aldeias Moreira e Passarinho, ambas em Miranda, e Limão Verde, em Aquidauana.

A desapropriação de uma área indígena em é citada e está claramente relacionada à problemática que envolve a reserva indígena da cidade, onde mais de 15 mil índios vivem, atualmente, confinados numa área de apenas três mil hectares. O relatório descreve que, na época de Getúlia Vargas, foi promovida a inteira desapropriação de territórios indígenas e, posteriormente, criada limitada “zona de colonização”.

Tabu

Relatório narra genocídio e tortura aos índios, mas segue ignorado em MS
Registro da expedição, em 1967 (Foto: Reprodução)

Mesmo com o inegável valor documental e histórico, o conteúdo do Relatório Figueiredo é considerado inescrupuloso em diversas searas, desde convenções e organizações ruralistas a assembleias legislativas de Estados brasileiros – sobretudo aqueles marcados econômica e politicamente pelo agronegócio, como é o caso de Mato Grosso do Sul.

Com a segunda maior população de indígenas do país e dadas as denúncias do documento, é de se esperar que o Estado do agronegócio tenha nas questões relacionadas às etnias ameríndias um verdadeiro barril de pólvora. Porém, curiosamente, a Assembleia Legislativa do Estado decidiu manuseá-lo. Além da CPI do Genocídio, corre na Casa outra investigação que perscruta a suposta participação do Cimi (Conselho Missionário Indigenista) em retomadas de terras indígenas, criada sob o pressuposto de que a entidade católica teria financiado as ações.

Em ambas as investigações, o conteúdo do Relatório Figueiredo é tido como tabu. Qualquer argumento que relacione o genocídio institucional do Estado com a atualidade é derrubado sob o pretexto de que vasculhar o passado é incitar mais ainda a violência entre fazendeiros e indígenas e de que o termo também ofende a reputação de Mato Grosso do Sul.

A palavra genocídio, inclusive, causa mal estar na Casa de Leis e é absolutamente mal vista nas sessões de investigação. Um dos membros das duas comissões, a deputada estadual Mara Caseiro (PSDB), chegou a publicar uma questão de ordem sugerindo que o que o uso da palavra ‘genocídio' promove “um sentimento de ódio infundado” da opinião pública contra fazendeiros, acerca da utilização do termo em matérias jornalísticas que cobrem a CPI do Genocídio. Caseiro, a propósito, é proprietária de duas fazendas em Eldorado, no interior do Estado, e a criadora da CPI do Cimi.

Ataques, genocídio e ‘povicídio'

Uma das oitivas da CPI do Genocídio, ocorrida no dia 7 de abril, Marcelo Zelic, descobridor do documento histórico, foi convocado para apresentar um relatório em que defende ações institucionais para conter os conflitos indígenas. Em certo ponto, Zelic utilizou a palavra ‘genocídio', sendo imediatamente censurado por Caseiro.

“Não há indício de genocídio em Mato Grosso do Sul. O que há são crimes contra indígenas, de indígenas contra indígenas. Até podem acontecer algumas violências de brancos contra indígenas, mas agora eu vou dizer pro senhor, nós tivemos aqui o secretário de Segurança Pública do Estado, nós temos os dados e as autorias dos assassinatos e neles fica bem evidente que não há genocídio”, disse a deputada.

Zelic retrucou afirmando que o conceito de genocídio é mais amplo que o assassinato sistemático de uma etnia. “O conceito do genocídio não está associado só ao fato das pessoas serem assassinadas. No caso do Guarani-Kaiowá, a situação de confinamento desse povo em si já se coloca como um quadro de genocídio”, afirmou o ativista.

Relatório narra genocídio e tortura aos índios, mas segue ignorado em MS
Trecho do relatório (Foto: Reprodução)

A deputada mais uma vez bravejou. “Falar que no Estado de Mato Grosso do Sul há genocídio é a mesma coisa que dizer que no Estado brasileiro há o ‘povocídio' (sic) da nação”, disse. “Eu gostaria de pedir ao senhor que, se o senhor preza pelo nosso Estado e pela paz do nosso Estado, que o senhor não usasse esse termo genocídio, porque aí o senhor está vindo lá de fora denegrir o nosso Estado. Apenas isso”, acrescentou.

No mesmo sentido, o deputado Rinaldo Modesto (PSDB) também interveio. “O conceito que eu tenho de genocídio que eu tenho é o extermínio deliberado de uma comunidade pela sua raça, pela sua etnia, pela sua religião, que não é o caso aqui, o senhor me perdoe”.

Minutos depois, quando Zelic citou o Relatório Figueiredo sobre o escuso esquema de usurpação e distribuição de terras aos oligarcas no Estado e de limpeza étnica, o ativista foi mais uma vez interrompido por Caseiro. “Se a gente ficar aqui discutindo coisa do passado a gente não anda. Esse debate hoje não contribui nada. O senhor me desculpe, mas o que contribui é uma solução prática e direta. Levantar defuntos? Temos que ver o agora. Nós queremos uma solução prática, agora”, economizou.

*A visualização dos arquivos do Relatório Figueiredo está disponível gratuitamente na internet, no site do Museu do Índio. Para conferir, clique AQUI. O arquivo principal pode ser baixado em formato PDF clicando AQUI.