Maioria nas universidades, mulheres cientistas são ofuscadas em universo que privilegia homens

Mulheres predominam em cursos e bolsistas, mas enfrentam obstáculos para ascender na carreira e obter cargos maiores

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Nas universidade, elas são maioria, mas são eclipsadas por homens com mesma qualificação (ilustração: Madu Livramento, Midiamax)

“Vi mulheres pesquisadoras sendo desmerecidas em público por falar algo que era especialidade delas, e também já vi homens que não tinham a menor ideia do que estavam falando serem superelogiados e colocados em um pedestal por falar a coisa mais simplista e rasa do mundo”.

A experiência de Ana Cláudia Goes Rocha, de 22 anos, é compartilhada por outras cientistas que decidiram seguir a área acadêmica. Precisam reafirmar com mais frequência os posicionamentos e ideias mesmo que tenham um alto nível de instrução sobre o tema. 

Esta reportagem sobre mulheres cientistas é a quarta de uma série especial do Jornal Midiamax para o Dia Internacional da Mulher, celebrado na próxima sexta-feira (8). Do progressismo feminino diante do conservadorismo masculino, do invisível trabalho de cuidado e até a pressão de parecer jovem enquanto envelhece, as mulheres lutam pela equidade diante de um mundo que favorece os homens desde a infância. 

No mundo acadêmico, o cenário não é diferente. Apesar de serem a maioria nas universidades, enfrentam uma série de dificuldades para ascender na carreira e ocupar cargos melhores devido aos desafios ligados ao gênero. Este fenômeno no mercado de trabalho é chamado de teto de vidro. Foi usado pela primeira vez, em 1978, por Marilyn Loden para explicar como as mulheres enfrentam mais obstáculos para exercer cargos de liderança. 

Desafios cotidianos de mulheres

Vivian da Veiga Silva, 40 anos, é socióloga e professora das áreas de Sociologia e Antropologia da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), no Campus do Pantanal. Ela pesquisa sobre gênero e atualmente conduz um trabalho sobre as iniciativas coletivas de mulheres na região de fronteira Brasil-Bolívia (Corumbá e Ladário). 

A pesquisadora já foi contemplada duas vezes com recursos em editais da Fundect (Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul) para financiar ações e pesquisas relacionadas às cientistas.

Mulheres cientistas
Vivian pesquisa sobre gênero com enfoque em mulheres em MS. (Arquivo Pessoal)

Vivian afirma com segurança que não existe equidade de gênero na área acadêmica e que no país predomina a ideia que apenas os homens são “capazes e racionais” para serem cientistas e que as mulheres não têm “fibra” para a ciência. 

“É um desafio cotidiano ser ouvida e vista, ser considerada alguém com credibilidade e capacidade”, relembra. 

Vivian aponta que a maioria dos docentes em programas de pós-graduação são homens e a voz masculina acaba sendo sempre mais ouvida do que a feminina. 

“Temos falas como a do presidente do CNPq [Ricardo Galvão], que afirma que o movimento Parent in Science [ações voltadas para maternidade e pesquisa] atrapalham a ciência e a instituição, simplesmente por cobrar ações que possam favorecer mulheres pesquisadoras e mães. Isso demonstra o quão desvalorizada é a mulher no mundo acadêmico”, evidencia. 

Jornadas duplas

Vivian decidiu seguir na área acadêmica ainda durante uma palestra na graduação em que ouviu que o cientista social é um alargador de horizontes. “É alguém que permite expandir nosso olhar do mundo e da realidade social”, recorda. 

Entretanto, o ofício de pesquisadora é acompanhado por outras funções. Além de professora e cientista, Vivian enfrenta outra jornada que exige tempo, paciência e dedicação. “Assim como outras mulheres, desempenho a dupla jornada de cuidadora e docente/pesquisadora, algo bastante cansativo”, relata. 

Raça e gênero

Ana Cláudia Goes Rocha, que abriu esta reportagem, também enfrenta os próprios desafios na vida acadêmica. É uma mulher negra e cientista. Portanto, além da questão de gênero, a raça também entra nessa equação na vida de Ana. 

“A soma dessas duas [questões de raça e gênero] é exaustiva, principalmente porque acaba que em muitos locais eu sou a única lá. Sempre carrego uma histórica que não é só minha e isso tem um peso. Sempre tem o incômodo de falar algo que um homem falaria e no mesmo tom, mas quando sou eu falando sou lida de uma maneira completamente diferente”, expõe.

Ana é pesquisadora na área de bioantropologia. (Arquivo Pessoal)

Ela é formada em ciências sociais e mestranda em antropologia social. Os focos de pesquisa variam entre antropologia forense, bioantropologia e arqueologia. O trabalho no mestrado é uma análise sobre os processos funerários de povos indígenas peruanos e brasileiros.

A pesquisadora estudou várias áreas de conhecimento antes de decidir em qual seguiria, mas sempre teve a certeza que seria cientista. 

Saiba mais: Sem medo dos mortos: laboratório forense em MS ensina a identificar desaparecidos

Contudo, as experiências negativas como pesquisadora a levou a criar mecanismos de defesa para lidar com situações machistas e racistas. “Isso, infelizmente, vem só ao longo do tempo”, lamenta.

Desvalorização de pesquisadores

Outro ponto sensível, e este não é exclusivo das mulheres, é a desvalorização da categoria. Os pesquisadores no Brasil, na maioria dos casos, são bolsistas de algum órgão fomentador. Assim, apesar de trabalharem por várias horas durante o dia, eles não têm direito ao mesmo que os trabalhadores celetistas, como FGTS, 13º salário e INSS.

Alguns desses recursos são de instituições federais, como Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), ou regionais, como a Fundect (Fundação de Apoio ao Desenvolvimento do Ensino, Ciência e Tecnologia do Estado de Mato Grosso do Sul).

“Acontece muito de te diminuírem quando você fala que trabalha com pesquisa porque para um dia de trabalho de campo é um mês que você passa sentado na frente do computador analisando dados, escrevendo, fazendo revisão bibliográfica etc. Esse é o lado que quando as pessoas geralmente veem acham que você não tá fazendo nada ou que é um trabalho fácil demais”, desabafa. 

Teto de vidro

Ana durante o Integra UFMS. (Arquivo Pessoal)

As mulheres são maioria nos bancos das universidades e na pesquisa científica em Mato Grosso do Sul. Elas predominam em número de estudantes de graduação, pós-graduação e bolsistas em pesquisas em instituições de ensino públicas do Estado. Contudo, estão em menor número na docência e como participantes ou líderes de projetos de pesquisa. 

A situação fica mais dramática quando o olhar volta-se para os postos de reitoria, ou seja, o cargo mais alto em uma instituição de ensino. 

Das quatro instituições de ensino pública em Mato Grosso do Sul (UFMS, UEMS, UFGD e IFMS), em três delas o cargo de reitor é ocupado por homens – todos brancos. Apenas no Instituto Federal de Mato Grosso do Sul a função é desempenhada por uma mulher. 

Elaine Borges Monteiro Cassiano foi a primeira reitora eleita do IFMS e está no segundo mandato. Maria Neusa de Lima Pereira exerceu o mesmo cargo entre maio de 2014 a novembro de 2015. 

Um estudo intitulado “Androcentrismo no Campo Científico: Sistemas Brasileiros de Pós-Graduação, Ciência e Tecnologia como estudo de caso” mostrou que as mulheres representam 58% entre os bolsistas da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), mas raras em cargos superiores. Na coordenação de grupos de pesquisa são 38% do total. Na ABC (Academia Brasileira de Ciências), são apenas 7% dos cargos de mais alta instância no comitê de seleção.

Um degrau de cada vez para as mulheres

Portanto, apesar do conhecimento, com o fenômeno conhecido como teto de vidro, as mulheres encontram mais dificuldades para ascender na carreira.

Os espaços são ocupados em um degrau de cada vez, visto que as várias jornadas – maternidade, cuidados de doentes da famílias, da casa, entre outras – impedem que as mulheres tenham a mesma disponibilidade e oportunidades que os homens. 

Se um casal de pesquisadores resolve ter filhos, por exemplo, a mulher precisará se afastar do próprio trabalho por mais tempo em comparação com o marido. Isso impacta na quantidade de artigos publicados e, consequentemente, na produtividade dessa pesquisadora. Esse cenário influenciará, futuramente, nas oportunidades para obter bolsas de pesquisas ou projetos. 

Segundo uma das coordenadoras de comunicação da RBMC (Rede Brasileira de Mulheres Cientistas) e professora da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), Katarini Giroldo Miguel, as mulheres são obrigadas a acumular serviços de cuidados ao mesmo tempo em que desenvolvem uma carreira acadêmica em um ambiente extremamente competitivo e produtivista. 

“Muitas vezes elas não conseguem alcançar, por exemplo, os patamares que são exigidos para produção. Então, produção de artigo, participação em eventos, estar em constante atividade científica e fazendo as articulações. Por quê? Simplesmente, porque falta tempo, energia e, às vezes, recursos também. Esses homens que estão no topo da pirâmide da produção científica são os que mais recebem investimento. Eles recebem bolsas de pesquisa, por exemplo. E aí, com isso, as mulheres vão sendo minadas”, explica. 

Realidade em MS

Levantamento do Jornal Midiamax a partir dos dados fornecidos por quatro instituições públicas em MS demonstra que esse cenário da pesquisa mencionada acima reflete-se no Estado. 

O número de alunas em cursos de graduação chega a 54,89% entre os 50.616 estudantes totais. Essa participação no universo da pós-graduação é maior. Elas ocupam 63,17% das vagas entre os 14.128 discentes da UFMS, UEMS e UFGD. O IFMS não informou os dados. 

Como bolsistas, elas representam 59,21% entre os 2.170 bolsas da UFMS, UFGD e IFMS. No caso da UEMS, os dados foram informados em porcentagem e a situação é de 60% bolsistas mulheres e 40% bolsas pagas para homens.

(Madu Livramento, Midiamax)
(Madu Livramento, Midiamax)

Entretanto, as mulheres ocupam menos espaço em cargos mais permanentes como na área de docência e de projetos de pesquisa. As docentes são 44,14% entre os 3.475 docentes nas instituições de ensino técnico ou superior públicos da UFMS, UFGD, UEMS e IFMS juntos. 

Na liderança de projetos de pesquisa, a quantidade é de 48,27% de mulheres entre os 1.680 cientistas de três instituições. A UEMS informou que a proporção é de 34% mulheres e 66% homens.

(Madu Livramento, Midiamax)
(Madu Livramento, Midiamax)

Sistema ignora sobrecarga das mulheres

Docente da UFMS, Katarini Miguel, exemplifica sobre cenário de desigualdades. As mulheres obtiveram apenas 36% das bolsas de produtividade do CNPq e muitos pareceres para negar o recursos foram relacionados às questões de maternidade. 

“Pode falar ‘ah, mas é uma procura menor das mulheres para esse tipo de bolsa’. Sim, porque a exigência é tanta que ela não consegue nem concorrer. A exigência de internacionalização, de quantidade de artigos, produtividade, eventos, etc., que ela não consegue alcançar esse patamar para concorrer a essas bolsas”, aponta. 

Outro exemplo foi durante a pandemia. Nesse período, que a maioria das pessoas estava em casa, o nível de produção de homens aumentou em comparação com o das cientistas. “Na pandemia, a gente teve homens produzindo porque obviamente que estavam em suas casas. Eles tinham quem cuidavam dos filhos ou uma mulher muitas vezes trabalhando para eles. Com isso, eles podiam ficar produzindo bastante”, ela relembra. 

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Desafios além dos muros da universidade

A professora adjunta do curso de jornalismo da UFMS e também uma das coordenadoras de comunicação da RBMC (Rede Brasileira de Mulheres Cientistas), Rafaella Lopes Pereira Peres, expõe que a problemática vai além dos muros das universidades e de institutos de pesquisa. 

O preconceito contra as mulheres na política ou no mercado de trabalho, a violência doméstica, a informalidade em empregos, maiores responsabilidades sobre cuidados e tarefas domésticas são outros desafios que atravessam o mundo feminino. 

“Embora, formalmente, os direitos pareçam iguais, a luta pela presença da mulher na universidade é só mais uma camada de um processo lento e ainda frágil de busca por equidade nas mais diversas esferas da vida privada e social. Tão importante quanto a valorização da mulher na ciência são o fim da violência doméstica, a equidade salarial, a divisão dos afazeres domésticos e dos cuidados com crianças, idosos e doentes”, exemplifica. 

Outro ponto importante para ocupar espaço é sobre o assédio moral ou sexual que ocorre dentro e fora das universidades, o que acaba as desestabilizando. É preciso pensar em gênero, raça, classe e demais especificidades que diferenciam as oportunidades. 

“É essencial ampliar os investimentos públicos, incentivar o desenvolvimento de parcerias, incentivar práticas de pesquisa que valorem diversas formas de produção do conhecimento, melhorar a comunicação, a divulgação e o diálogo sobre a ciência produzida, especialmente, por mulheres, fomentar a equidade de gênero, o respeito à diversidade, o combate ao assédio e à violência contra as mulheres e minorias, atentar às especificidades e à interseccionalidade, reforçar, constantemente, a importância da consciência social”, sugere a professora da UFMS. 

Mulheres formam rede com mais de 4 mil cientistas

A Rede Brasileira de Mulheres Cientistas nasceu em 2021, durante a pandemia, para defender e reivindicar ações com foco em gênero, raça, classe e outros marcadores sociais. Conta, atualmente, com mais de 4 mil cientistas de várias regiões do país. 

Segundo Rafaella Perez, a Rede se concentrou em 2023, principalmente, nas discussões sobre barreiras para o ingresso, progressão e permanência das mulheres nos ambientes institucionais e na proposição coletiva de estratégias para combater problemáticas que as atingem diretamente. 

Entre esses pontos estiveram o assédio nas UFs e IFs; as dificuldades de cientistas que maternam ou realizam trabalho de cuidado; o silenciamento e a invisibilidade de mulheridades negras na ciência; a violência de gênero na política e em cargos públicos; a redução progressiva de mulheres quando se avança nas posições da carreira acadêmica, o apagão das licenciaturas, entre outros. 

“A RBMC reflete sobre a desigualdade de gênero e raça ainda muito presentes nas Ciências. Reforça a importância de iniciativas que fomentem a atuação de mulheres nos ambientes acadêmicos e impulsionem a formação de novas pesquisadoras”, afirma. 

Contudo, Katarini Miguel pondera que o movimento precisa avançar sobre questões raciais. Se o sistema não favorece mulheres brancas, para mulheres negras o caminho é mais longo e árduo para chegar ao topo. 

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“Nós temos pouquíssimas mulheres negras e isso obviamente reflete o cenário do país, porque tem poucas mulheres negras como cientistas e pesquisadores. Isso precisa mudar.  […] a gente sabe que as dificuldades são muito maiores porque elas estão na base da pirâmide porque não conseguem muitas vezes acessar uma universidade por uma série de dificuldades”, expõe. 

Ações regionais

Regionalmente, a Fundect lançou em 2022 o edital “Mulheres na Ciência Sul-Mato-Grossense”. Foram destinados R$ 4,8 milhões em recursos para 62 projetos liderados por pesquisadoras e que ainda estão em andamento. 

O edital tem o objetivo de amparar projetos de pesquisa e inovação que contribuam significativamente para o desenvolvimento científico-tecnológico regional.

Outra iniciativa regional é o Projeto MS +Ciência, com a produção do documentário “Mulheres na Ciência”. A obra reúne entrevistas com mais de dez mulheres sobre os desafios de seguir na carreira acadêmica. 

Alunas de graduação e pós-graduação, gestoras da educação superior e pesquisadoras de reconhecimento internacional contam aspectos que as marcaram durante o trabalho, desde o machismo como a conciliação da carreira com a maternidade. Na última sexta-feira (8) foi feito o pré-lançamento do documentário, mas a versão final deve ser exibida em 21 de agosto, no Dia Estadual da Educação Superior em MS.

“Apesar de as mulheres representarem mais de 60% dos que concluem uma graduação no Brasil e 54% dos estudantes em cursos de pós-graduação, apenas 35% das bolsas de produtividade do CNPq de topo de carreira acadêmica são atribuídas a mulheres”, aponta a coordenadora executiva do projeto, bióloga e doutora Alessandra Paim Berti.

De acordo com o coordenador da ação, o jornalista e pesquisador André Mazini, haverá exibição do conteúdo em duas sessões de cinema, nas cidades de Dourados e Campo Grande. “Estamos trabalhando em cima de mais de 10 horas de relatos potentes que revelam o drama que muitas mulheres enfrentam ao optar por uma carreira acadêmica”, diz.

O trailer e as demais detalhes sobre o documentário, bastidores e informações sobre o temas podem ser acessados em https://midiaciencia.com/mulheresciencia.

Confira as reportagens anteriores desta série:

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