“Não queremos morar em uma grande fazenda. O que queremos é a legalização das nossas terras”. A afirmação é de um indígena que mora com a família de 9 pessoas em um pequeno barraco de uma das retomadas (acampamentos) no entorno da Reserva Indígena Federal de .

A declaração é uma resposta, compartilhada pela comunidade Ñu Verá e também por entidades que atuam na causa indígena, depois da declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que durante visita a , na sexta-feira (12), propôs ao governador (PSDB) que o Estado, junto da união, comprem uma área para “salvar os Guarani” que vivem em Dourados, cidade com a maior reserva indígena do Brasil.

A área onde as cerca de 300 famílias vivem não tem água potável e nem saneamento básico e é considerada de extrema miséria, já que as moradias são classificadas como insalubres. As famílias vivem com ajuda do Governo Federal, mas, segundo dizem, as cestas básicas não chegam para todos, o que acentua ainda mais a vulnerabilidade.

Segundo a liderança ouvida pelo Jornal Midiamax e que você viu no começo dessa reportagem, as comunidades que disputam espaço com sitiantes de Dourados já estão instaladas, mesmo que em condições precárias. Na avaliação dele, que preferiu não se identificar, é necessário que as autoridades reconheçam essas áreas ocupadas como território indígena.

“Enquanto isso não acontecer vamos continuar vivendo na miséria porque não podemos plantar nada sob risco de . O que a gente quer é que essas terras sejam entregues definitivamente para nós, porque nos pertencem. Junto com a demarcação também precisam vir políticas públicas”, disse outra moradora da comunidade Ñu Verá.

Área é disputada entre indígenas e sitiantes

A área de retomada tem histórico de conflitos entre indígenas e sitiantes. Durante ataques de ambos os lados, em janeiro de 2020 a situação ficou ainda mais tensa. Três indígenas e um segurança privado acabaram feridos durante disparos de arma de fogo. Além da Ñu Verá, pelo menos mais seis áreas estão ocupadas por indígenas que reivindicam a posse junto ao Governo Federal.

Em 2023, o assunto voltou a ser notícia. Um grupo de indígenas foi preso durante uma operação de retirada de ocupação, em uma área de construção de condomínio de luxo de Dourados. O terreno é disputado por empresa privada e comunidades da etnia Guarani-Kaiowá.

Cerca de 10 pessoas foram levadas para a delegacia pela Polícia Militar, através do Batalhão do Choque e Força Tática, conforme o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) e depois para a PED (Penitenciária Estadual de Dourados). A área é reivindicada pela comunidade Yvu Verá, que segue acampada no local há mais de um ano.

Em mais uma avaliação da declaração do presidente Lula na semana passada, outra liderança de uma comunidade vizinha, a Avaeté I, disse ao Jornal Midiamax que “só discurso não salva ninguém”.

“Já estamos cansados de palavras e promessas vazias. Essa proposta feita em Campo Grande além de não contemplar as nossas lutas históricas estão completamente descontextualizadas da nossa realidade. Com certeza esse tipo solução só serve para confundir a cabeça das pessoas e também para agradar grandes fazendeiros”, afirma.

Compra de áreas não é regulamentada no Brasil, rebate Cimi

No entendimento do Cimi (Conselho Missionário Indigenista), a ideia de compra de uma área para abrigar indígenas não tem apoio jurídico e nem é regulamentada pela legislação brasileira. “Isso seria para criação de uma reserva. Seria o mesmo trabalho que o SPI (Serviço de Proteção aos Indígenas) fez na época da colonização, do povoamento”, explica o assessor jurídico da entidade, Anderson Souza Santos.

Segundo ele, na verdade, a proposta pode atender os sitiantes que disputam a posse de terras com indígenas que ocupam áreas no entorno da reserva e que são objetos de conflitos que repetem há anos.

“Poderiam sim comprar uma fazenda em Dourados, em outro local que não tenha reivindicação por tradicionalidade, e realocar esses pequenos produtores para lá. Isso seria viável. Agora, comprar uma outra fazenda pra levar os Guarani-Kaiowá como se fosse salvar o povo, já não tem sentido”.

Segundo o advogado indigenista não é assim que se resolve o problema. “De toda forma, a viabilidade seria essa, comprar pra reassentar os pequenos produtores do entorno de Dourados. E liberar o espaço pra que a comunidade continue, porque eles já estão na posse”, justifica Anderson, que considerou equivocada a fala do presidente Lula.

“Primeiro mostra que ele não tem conhecimento de como pode resolver, de fato, a situação da demarcação de terras no . Parece que ele não acompanha ou não teve interesse ainda de se reunir com as pessoas que entendem disso dentro do governo e de fato apontar qual o caminho para ele que precisa ser tomado, que não é dessa forma”, pontua o advogado.

‘Ninguém consultou'

Para o professor e membro do Coletivo Terra Vemelha, Marcelo Salles Batarce, os índios estão sendo desconsiderados em todos os sentidos, nessa repercussão que está sendo dada após a fala do presidente.

“A gente não tem uma posição clara sobre a opinião dos indígenas que moram naquela região ali. Ninguém consultou, esse debate não foi feito com eles. Ou seja, o presidente Lula não levou uma proposta dos índios, nem o Estado, ou seja, os protagonistas dessa história não estão na conversa”, explica Batarce ao destacar o processo de resistência dos moradores dessas comunidades.

Ainda segundo o professor, a iniciativa de compra de terra poderia configurar uma bondade. “Mas, na verdade, há uma preocupação aí, porque os índios estão buscando realmente os seus direitos. Ou seja, muito do que está sendo colocado aí é em resposta a uma ação de protagonismo dos índios que estão na frente dessa luta”, ressalta.

Fazendeiros concordam com venda de áreas, que serão mapeadas

Para o vereador Rogério Yuri (PSDB), que lidera a Frente Parlamentar da Câmara de Vereadores de Dourados criada para mediar conflitos entre indígenas e sitiantes, a maioria dos proprietários concorda em comercializar a área. Segundo ele, o grupo está fazendo um mapeamento da área para apresentar uma solução que atenda as duas partes.

“Fizemos uma reunião no último 9 de abril e estamos nesse momento fazendo um mapeamento completo dessas áreas tanto em relação às propriedades reclamadas pelos sitiantes, quanto às áreas alegadas pelos indígenas como tradicional da etnia guarani. Precisamos saber exatamente a extensão disso tudo”, pondera o parlamentar.

Segundo Yuri, existem algumas soluções que podem ser colocadas em prática em relação às áreas em torno da Reserva Indígena Federal e que já são de conhecimento tanto do governador Eduardo Ridel quanto do presidente Lula. “Tudo isso é fruto do trabalho iniciado oficialmente no dia 13 de setembro, quando nos reunimos com todas as forças policiais, MPF e também a Funai”, explica.

“Entre as propostas que estamos debatendo exaustivamente está uma de aquisição das propriedades junto aos sitiantes. Uma forma de levantamentos desses recursos para indenização seria feita por meio de financiamento internacional. Nesse sentido, estamos conversando inclusive com o Ministério Público Federal”, detalha o presidente da Frente Parlamentar.