O caso de Daniela Almeida Vera, a idosa de 81 anos que viveu décadas com um feto calcificado no útero, é um claro sintoma sobre a dificuldade de acesso da população indígena a serviços de saúde pública em Mato Grosso do Sul.

Mesmo sendo um problema que atravessou cinco décadas, não são incomuns, atualmente, relatos de dificuldades no acesso à saúde entre as cerca de 116.346 pessoas, das quais 69.886 vivem em Terras Indígenas, segundo o Censo 2022 realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – muitas das quais vivem em regiões isoladas.

Essas dificuldades passam por questões logísticas, políticas ou culturais. Por exemplo, a família da idosa, de origem indígena e moradora de um assentamento em Aral Moreira, cidade distante 376 km de Campo Grande, conta que ela não gostava de frequentar o médico.

“Ela falava que sentia algo estranho dentro dela, que chamava de tumor. Ela chegou a falar que se mexia igual a um bebê, mas orientamos ela para ir ao médico e ela tinha medo. Só procurou atendimento médico quando começou a passar mal”, contou uma das filhas de Daniela.

Dificuldade de atendimento

Uma demonstração de como esse acesso pode ser precário está no fato de que, desde 2021, o MPF (Ministério Público Federal) tenta promover a identificação e o cadastramento dos indígenas moradores em Campo Grande sem acesso ao SUS (Sistema Unificado de Saúde). Esse pedido foi acatado pela Justiça Federal e determinado à União.

Ainda durante a pandemia, foi concedida tutela de urgência após o pedido feito pelo MPF, considerando o aumento de infectados pelo coronavírus. Com a decisão, o MPF pediu a expansão da liminar para beneficiar todos os indígenas de Aquidauana, Anastácio, Bodoquena, Dois Irmãos do Buriti, Nioaque, Miranda, Nioaque, Porto Murtinho, Sidrolândia e Terenos.

Em fevereiro de 2024, a União foi citada para se manifestar sobre o pedido. A decisão está sendo aguardada.

Vulnerabilidade de indígenas gestantes

Barreiras culturais, geográficas e também de infraestrutura, como até mesmo sanitárias, dificultam o acesso à saúde pública por essa população. A pesquisa mais recente da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) sobre o assunto revela baixos percentuais de assistência pré-natal de mulheres indígenas em Mato Grosso do Sul. Os dados apontam para desigualdades no acesso e no cuidado adequado às necessidades das gestantes indígenas. 

Ao todo, 469 mulheres foram entrevistadas. Essas mulheres receberam assistência ao parto em 10 municípios do estado: Dourados (121, ou 25,8%), Amambai (110, 23,5%), Caarapó (30, 6,4%), Campo Grande (48, 10,2%), Aquidauana (24, 5,1%), Miranda (63, 13,4%), Iguatemi (12, 2,6%), Antônio João (11, 2,3 %) e Tacuru (37, 7,9%).

Conforme a pesquisa, cerca de metade das mulheres, 241, passaram por sete ou mais consultas de pré-natal (51,5%) e 157 delas (37,2%) receberam entre 4 e 6 consultas. Já 53 participantes (11,3%) não tiveram nenhuma ou de uma a três consultas. 

Para os pesquisadores, estes percentuais ainda refletem o baixo acesso à assistência ao pré-natal, potencializando complicações para a saúde materna e infantil. Um total de 311 (66,3%) iniciaram o pré-natal no primeiro trimestre e cerca de 158 (33,7%) no segundo e terceiro trimestre de gestação, o que evidencia dificuldades no acesso ao pré-natal e, assim, pode sugerir desafios na organização do Sasi (Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS) para a oferta de cuidado.

Em relação ao parto, 355 (75,7%) realizaram parto normal e 114 (24,3%), cesárea. Dados do Sinasc (Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos) podem ser utilizados para as comparações com os resultados deste estudo. Segundo o Sinasc, a taxa de partos tipo cesárea de mulheres não indígenas foi de 64,3%, em 2020. Este percentual é cerca de três vezes superior quando comparado às mulheres indígenas.

O levantamento foi feito no período de novembro de 2021 a agosto de 2022 e avaliou a cobertura e qualidade da atenção ao pré-natal e parto ofertada às mulheres indígenas no Estado. 

Participaram da pesquisa mulheres das etnias Guarani e Kaiowá (63,4%) e Terena (33,8%), sendo que 86,1% residiam em aldeia e fizeram pré-natal em Unidade Básica de Saúde Indígena (85,7%). Além das entrevistas individuais, também foram analisadas as informações da caderneta da gestante.

Para a coordenadora do estudo e pesquisadora da Fiocruz, Renata Picoli, “a compreensão das situações de vulnerabilidades sociais vivenciadas pelos povos indígenas do Estado, caracterizadas pelos conflitos territoriais, iniquidades em saúde, podem ajudar a compreender os piores valores de assistência pré-natal”.