Em todo o Brasil, 38% das escolas admitem enfrentar problemas com bullying, conforme aponta o 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No entanto, a frequência constante desses casos indica uma falha sistêmica em abordar a questão de maneira efetiva.

Bullying consiste em toda forma de intimidação contra uma pessoa, abrangendo desde violência psicológica até agressão física e pode ocorrer em diversos locais – o mais comum deles é na escola, onde costuma ser mais frequente e de fácil visualização.

Esse cenário pode estar atribuído a diversos fatores: desde o despreparo de professores e funcionários para identificar e lidar com o bullying, até mesmo a relativização dos casos – muitas vezes interpretados como ‘brincadeiras de crianças’. Há, também, a falta de políticas públicas efetivas. Essas falhas proporcionam aos autores do bullying um ambiente permissivo para a prática de suas ações.

Bullying se perpetua em escolas de MS

Casos recentes registrados em escolas de Mato Grosso do Sul, inclusive, em Campo Grande, mostram que o bullying se manifesta em diversos ambientes e perpassa por diferentes realidades sociais, o que os diferem, contudo, é a maneira como as instituições lidam com esses casos.

Dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, do Governo Federal, revelam que, no último ano, houve um crescimento de 60% nos casos de bullying em escolas de todo o Estado.

Bullying nas escolas
Rondas escolares reforçaram segurança nas escolas (Divulgação, PMCG)

Entre janeiro e março de 2024, o Disque 100 registrou 108 violações no ambiente escolar. Desse total, 88 estão classificadas como violência contra crianças e adolescentes. Além disso, houve cinco registros de violações em berçários e creches.

As principais formas de violência escolar são de natureza emocional: situações de constrangimento, tortura psicológica, ameaças, bullying e injúria. Já as violações compreendem qualquer ato que viole os direitos humanos da vítima.

Ameaças contra criança de 10 anos acende alerta para cyberbullying

Na Capital, o assunto ganhou destaque no início de junho após uma mãe denunciar um caso de cyberbullying envolvendo sua filha de dez anos em uma escola pública da rede municipal.

Conforme a denúncia encaminhada ao Jornal Midiamax, a criança foi ameaçada por outro colega da escola. As ameaças incluíam fotos de facas e áudios violentos direcionados a ela e outras colegas de sala.

Nas conversas extraídas de um grupo de WhatsApp, há mensagens como: “Eu vou chamar a Bia para essa vadi*”, “Só treta. Só falta o mestre agora”, “Mané, amanhã é dia de mudar de lugar, mano”.

Em outra mensagem, uma das crianças escreve: “Eu quero matar a ** e a **”. “Por que a **?”, questiona outra criança. “Eu odeio ela e a **. Olha o que eu vou levar para a escola”, escreve um dos autores ao encaminhar a foto de uma faca no grupo de WhatsApp. A perseguição à criança ocorria desde o ano passado, por isso, a mãe optou por transferi-la de escola.

Negligenciado, bullying pode ter vítimas fatais

O exemplo mais recente de um caso extremo no qual o bullying levou à morte ocorreu em abril deste ano, em uma escola pública de Praia Grande, São Paulo. Tímido e introvertido, Carlos Teixeira, de 13 anos, tornou-se um ‘alvo fácil’ dos colegas.

Logo, as agressões se tornaram recorrentes e cada vez mais violentas. A escola tinha conhecimento das agressões. Mas, segundo o pai, a instituição preferiu omitir-se, alegando inclusive que as lesões eram decorrentes de uma queda na escada.

Imagens divulgadas nas redes sociais mostram Carlos contando aos pais sobre as agressões. Chorando, o adolescente relata sentir dores nas costas ao respirar devido aos inúmeros chutes que sofreu dos colegas de sala. O pai, Julysses Nazarr, procurou uma unidade de saúde, onde Carlos recebeu medicação e alta, sem que houvesse a realização de exames.

Uma semana após a última agressão, Carlos sofreu três paradas cardiorrespiratórias, não resistiu e morreu. Conforme o pai, a morte decorreu de uma infecção no pulmão. No atestado de óbito, consta como broncopneumonia bilateral, um tipo de inflamação nos alvéolos, estruturas dos pulmões responsáveis pela troca de oxigênio com o sangue.

Negligenciado pela escola e pelos profissionais de saúde, Carlos se tornou mais uma vítima a compor as estáticas. Dados do Ministério da Saúde apontam que, entre 2016 e 2021, houve um aumento de 49,3% nas taxas de mortalidade de adolescentes de 15 a 19 anos, chegando a 6,6 por 100 mil. Entre adolescentes de 10 a 14 anos, o aumento foi de 45%, chegando a 1,33 por 100 mil.

Cyberbullying também deve ser combatido nas escolas

Bullying nas escolas
Aluna enviou fotos de facas em grupo (Fala Povo, Jornal Midiamax)

Ana Paula Siqueira, presidente da Associação SOS Bullying, explica que os ambientes virtuais representam um perigo para os jovens. “O cyberbullying é uma forma grave de bullying, que ocorre nas redes sociais e em aplicativos de mensagens, acessando as vítimas 24 horas por dia, 7 dias por semana.”

A especialista enfatiza que cabe à escola e aos administradores escolares tomar as medidas previstas em lei e necessárias para neutralizar o cyberbullying. A criança que ameaçou a menina de morte em grupo de escola foi suspensa das atividades.

“Mesmo que a situação tenha ocorrido fora da instituição e fora do horário de aulas, é um grupo de crianças que faz parte do colégio. Já temos decisões judiciais que confirmam a responsabilidade da escola e dos seus gestores, ainda que o caso tenha ocorrido nas redes sociais”, explica Ana Paula.

Sancionada em janeiro deste ano, a Lei 13.185/2015 (Lei do Bullying), estabeleceu medidas de conscientização, prevenção, combate à violência e desenvolvimento de cultura da paz a todas as escolas do país. Agora os autores do crime podem pegar até 4 anos de reclusão.

“O combate ao bullying é uma ação constante, que envolve escola e responsáveis. No caso de crianças e jovens, é preciso estar atento ao comportamento, socialização na classe e no intervalo de aulas, e inclusive vistoriar celulares e redes sociais. O bullying é um assunto sério, que deixa cicatrizes psicológicas e psiquiátricas que esses jovens vão levar por toda a vida”, completa Ana.

Omissão de escola levou caso à instância judicial em Campo Grande

Bullying nas escolas
Bullying nas escolas – ilustrativa (Divulgação, Freepik)

Em janeiro, um caso de bullying ocorrido em uma escola particular da Capital acabou levado à instância judicial devido à omissão da instituição. A denúncia narra que, em fevereiro deste ano, um estudante do 1° ano do Ensino Médio relatou à mãe que não suportava mais as agressões que vinha sofrendo desde dezembro de 2023. As agressões ocorriam por meio de mensagens ofensivas em aplicativos de conversas e redes sociais, além de xingamentos proferidos por outro colega.

As mensagens e áudios sempre ridicularizavam a aparência física do aluno, com insultos como “Estranho”, “Esquisitão”, “Cabelo de Hitler”, entre outros. Esses xingamentos também ocorriam durante o horário escolar, visto que ambos estudavam na mesma sala de aula.

Além das mensagens, a vítima recebeu uma foto onde o autor, juntamente com outros alunos da sala de aula, fazem o sinal de silêncio, como uma ‘ordem’ para que ficasse quieto. Sentindo-se ameaçado e com medo de sofrer alguma agressão física por parte dos colegas de classe, o estudante decidiu relatar os fatos aos pais.

Escola orientou vítima a ‘se portar de maneira mais confiante’

Conforme consta no processo, para proteção da integridade física do filho, os pais registraram um Boletim de Ocorrência, na Deaij (Delegacia Especializada de Atendimento à Infância e Juventude), relatando as mensagens de injúrias e a foto enviada com a ameaça implícita.

No mesmo dia, a escola repassou aos pais do aluno um comunicado reconhecendo os fatos ocorridos e onde afirmou a criação de “um plano de ação para trabalhar o respeito, o bullying e o cyberbullying”.

No entanto, não houve mudanças, e as agressões verbais persistiram. Assim, os pais procuraram novamente a escola em 5 de março de 2024, por meio de uma Notificação Extrajudicial, questionando o que estava sendo feito.

Em resposta à notificação extrajudicial, a escola afirmou ter falado com os envolvidos e seus responsáveis, e que uma advertência por escrito estava registrada na ficha escolar. Já a vítima das agressões recebeu a orientação de “se portar de maneira mais confiante e comunicativa”.

Lei prevê que escolas criem programas de combate ao bullying

Um aspecto essencial a se analisar é a cultura escolar, que pode perpetuar a violência e a exclusão ao não promover um ambiente de respeito e empatia. De acordo com presidente da SOS Bullying, quando a administração escolar não toma uma posição firme contra o bullying, os alunos podem sentir que o comportamento é tolerado ou não será punido.

“Toda escola precisa ter um programa de combate ao bullying registrado na diretoria de ensino ou no cartório. Um programa devidamente registrado deve ter um canal de denúncia, procedimentos para averiguação dos fatos e sindicância interna para identificar os agressores”, explica Ana Paula Siqueira.

Ana Paula enfatiza que, caso a escola falhe em prestar assessoria jurídica, psicológica e social para vítima e agressor, o serviço educacional é defeituoso, nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor.

“Essa lei exige a implementação de um programa de combate ao bullying. Se isso não ocorre, o serviço educacional é defeituoso, e isso vale tanto para escolas particulares quanto para escolas públicas,” destaca.

Na visão da especialista, quando há um programa de combate ao bullying devidamente registrado e efetivo, não é necessário que um aluno envie uma notificação extrajudicial. Se ocorre uma violência ou uma grave ameaça, isso já deve estar previsto, pois essas situações podem ocorrer em qualquer escola.

“Achar que não existe bullying nas escolas é ilusório. Todas as escolas, desde as públicas até as mais caras do mundo, terão casos de bullying. A grande questão é saber como lidar com esses entraves que sempre vão existir”, afirma a especialista.

O que dizem as instituições de ensino?

Em nota, a Semed (Secretaria Municipal de Educação) afirmou que o caso da menina de dez anos está esclarecido e que aconteceu no início do mês de maio. Conforme a nota, seis alunos do 5º ano criaram um grupo de WhatsApp entre eles e, por volta de 00h, um dos meninos disse que não gostava da colega, mandou uma foto de faca de cozinha no grupo e a menina tirou uma foto de duas facas e mandou no grupo, como ameaça.

Ao vistoriar o celular do neto, a avó de um dos alunos encontrou as conversas e alertou a direção da escola, que então comunicou os pais dos alunos envolvidos. Segundo a Semed, a diretora fez atas sobre o caso e orientou os pais para que vistoriem os celulares de seus filhos.

“A Secretaria informa ainda, que há um setor na Semed chamado Secoe (Setor de Acompanhamento de Conflitos Relacionados à Evasão e Violência Escolar), que desenvolve uma ação conjunta com a Guarda Civil Metropolitana em relação a realização de palestras de orientação sobre a prevenção ao uso de drogas, violência contra a mulher e orientações às famílias em situação de risco.

O Projeto Escola Segura da Guarda Civil Metropolitana realiza ações e palestras de cunho preventivo, educativo e orientativo com foco na redução dos índices de violência no município de Campo Grande desde 2009.

Todos os anos percorre as escolas municipais alcançando estudantes do 6º ao 9º ano, trabalhando o enfrentamento a violência, voltado para as temáticas de bullying, violência doméstica”, afirma a Semed.

Escola particular diz que não houve omissão no caso

Quanto ao caso ocorrido em uma escola particular, a instituição relatou à reportagem do Midiamax que, desde que tomou conhecimento do assunto, procurou acolher o aluno e sua família, ouvindo as partes e buscando formas de solucionar a situação, por isso, defendem que não houve omissão por parte da escola.

“A equipe escolar elaborou um plano de ação em que o aluno citado pode ter acompanhamento psicólogico e pela orientadora da escola semanalmente. Os profissionais da educação redobraram a atenção sobre ele e os demais colegas de classe. Além disso, trabalhamos em sala de aula os temas de diversidade, inclusão, bullying e cyberbullying, incluindo participações de outras instituições, como Conselho Tutelar.

As mensagens ofensivas foram enviadas por aplicativo de conversas e redes sociais por um ex-aluno da instituição e pelo qual a instituição não pode tomar iniciativas. Entretanto, realizamos tudo o que estava ao alcance em relação ao aluno citado e aos outros estudantes”, diz a nota.

Casos recorrentes expõem vulnerabilidade das escolas

Ataque em escola
Ataque em escola (Kisie Ainoã, Jornal Midiamax)

Em 2023, o Estado contabilizou uma série de casos de violência que acenderam o alerta entre pais e autoridade de educação e segurança. No dia 23 de março, um aluno causou pânico em uma escola estadual em Campo Grande ao ameaçar funcionários e colegas com uma arma falsa. Apesar do susto, o diretor da escola conseguiu imobilizar o adolescente.

O caso mais emblemático ocorreu em 18 de maio, quando um adolescente de 15 anos esfaqueou uma advogada de 46 anos que buscava seu filho na Escola Municipal Bernardo Franco Baís, na Avenida Calógeras.

Na época, o ex-aluno da escola relatou que esperou a mãe sair para o trabalho e então pegou a faca para cometer o crime. Conforme depoimento, o crime teria sido motivado após ele ter sido estuprado por três alunos dentro do banheiro da escola em 2022. Segundo a Semed, não há registros do caso.

As brigas entre alunos estão entre os principais episódios violentos em MS. No primeiro dia letivo de 2023, alunas da rede estadual se envolveram em uma briga no Terminal Júlio de Castilho, logo após saírem da escola. As meninas se agrediram com puxões de cabelo, socos e chegaram até a rolar pelo chão do terminal. Outros jovens que presenciaram a cena até pareciam se entreter com as agressões físicas.

Em setembro de 2023, outro caso, um aluno foi espancado até perder a consciência em frente à Escola Municipal Tomaz Ghirardelli, também em Campo Grande. Conforme a Secretaria Municipal de Educação, ele foi levado para a Santa Casa pelo Corpo de Bombeiros.

Disque 100

Canal de denúncias sob a responsabilidade da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos do MDHC, o Disque 100 recebe, analisa e encaminha denúncias de violações.

O serviço gratuito pode ser acionado por ligação gratuita no WhatsApp (61) 99611-0100 ou Telegram (“Direitos Humanos Brasil” na busca do aplicativo). Além disso, é possível denunciar na Ouvidoria e aplicativo Direitos Humanos Brasil.

Em todas as plataformas, as denúncias são gratuitas, anônimas e recebem um número de protocolo para que o denunciante possa acompanhar o andamento. Basta ligar para o número 100 para fazer o acompanhamento.

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