Ao destruir a fauna e flora, fogo também levou as memórias de toda uma vida no Pantanal
Sob o olhar de quem mora no Pantanal, vivenciar uma nova tragédia traz a desesperança de enxergar o bioma recuperado
Lethycia Anjos, Alicce Rodrigues –
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Na sacada que dá vista ao Rio Paraguai, no Pantanal corumbaense, Carmelita admira a paisagem, tentando guardar momentos antes que o fogo chegue e leve consigo o pouco que ainda resta. Tão rápido quanto a propagação das chamas, em menos de um mês, o verde deu lugar às cinzas, hoje escondidas por trás da fumaça.
Desde o início de junho, os incêndios florestais têm impactado fortemente a fauna e flora pantaneira. Neste ano, cerca de 763 mil hectares foram queimados no bioma sul-mato-grossense. Sob o olhar de quem vive no Pantanal, vivenciar uma nova tragédia e ver a transformação da região é como perder memórias e tradições de toda uma vida.
Foi no Pantanal que Carmelita Monteiro nasceu, cresceu e construiu as memórias de toda uma vida. Ao longo de seus 47 anos, ela vivenciou inúmeros banhos de São João, morou em três casas e até sobreviveu a uma mordida de jacaré. O que ela não esperava era que, um dia, tudo isso se perdesse.
“Eu amo Corumbá, mas tenho medo de perder tudo isso; com esses incêndios, sofro e vejo cinzas por muito tempo. As pessoas dizem que a natureza se recupera rápido, mas não é assim.”
A casa, situada sob um barranco às margens do Rio Paraguai, oferece mais do que uma vista única do Pantanal. Para Carmelita, o local também funciona como uma espécie de terapia que auxilia no dia a dia de sua filha Bárbara, diagnosticada com paralisia cerebral.
Ela conta que Bárbara recebeu o diagnóstico de paralisia cerebral ainda bebê, quando tinha um ano. Segundo a mãe, a condição decorreu de um erro médico. Na época, Bárbara contraiu uma gripe, mas devido à demora no atendimento, teve uma convulsão. Posteriormente, foi diagnosticada com paralisia cerebral.
‘Pense na paz que a gente adquiriu no Pantanal’
Hoje, com 25 anos, Bárbara passa os dias admirando a paisagem sob a janela do quarto, que também dá vista ao Rio Paraguai. Embora as limitações físicas a impeçam de se expressar, Carmelita acredita que a calmaria do Pantanal ajuda a filha a lidar com a doença.
“Quando vim para essa casa, pense na paz que a gente adquiriu. É um lugar tranquilo, tudo que a Bárbara precisava. Por ser perto do rio, à noite tem umidade. O ambiente é ótimo, abençoado. Sinto que ela melhorou muito aqui”, relata.
No entanto, nos últimos meses, como efeito dos incêndios, a casa fica coberta de cinzas, enquanto a fumaça prejudica a saúde de Bárbara, o que obriga a mãe a manter a janela sempre fechada.
“Com essa sequidão, sofremos muito. Além da fumaça, tem o vento que faz um redemoinho e manda areia. Sempre achei engraçado as tempestades, entendo que a natureza tem seus processos, mas agora tenho que ficar secando as lágrimas que a fumaça causa nela e limpando as fuligens que continuam a cair”.
Segundo Carmelita, esta é a primeira vez que os incêndios iniciam tão cedo. No último grande incêndio, ocorrido em 2021, ela relata que levou cerca de oito meses para o verde voltar a brotar sobre as cinzas.
“Do outro lado do rio consigo ouvir os bois gritando, correndo do fogo. É de cortar o coração. Já ouvi meus filhos dizerem agoniados que queriam um super-herói para acabar com o fogo”, diz.
‘É a primeira vez que o fogo chega tão perto’
A casa simples no bairro universitário guarda décadas de histórias vivenciadas no Pantanal. Assim como Carmelita, Agenil Guedes, de 83 anos, reside ao lado do Rio Paraguai e tem testemunhado de perto o desastre ambiental que afeta a maior planície alagável do mundo.
Há 40 anos na casa 535, Agenil tem sido uma observadora atenta das mudanças ocorridas no bioma, especialmente em relação aos incêndios e à seca, que se intensificaram nos últimos anos. Segundo ela, esse ano foi a primeira vez que as chamas chegaram tão próximas de sua casa.
“Alguns dias ficava tão quente que não víamos o sol. Só sentia o calor e a fumaça. O céu ficava encoberto, parecia que a cada incêndio o fogo chegava mais perto. Nunca senti isso nesses 40 anos”, relata.
Os incêndios no Pantanal, que antes eram vistos como parte natural do ciclo ecológico, agora representam uma ameaça crescente. Para Agenil, a preocupação não se limita apenas à sua própria segurança, mas também se estende às estruturas vizinhas, como hotéis e barcos ancorados nas proximidades, que ficam vulneráveis à propagação das chamas.
“Fico com medo constante do fogo pular para o lado da minha casa”, diz ela. Apesar do receio, o anel e os brincos com a imagem de Nossa Senhora Aparecida refletem em Agenil a devoção de quem ainda tem esperança de ver o Pantanal recuperado.
‘Esse fogo não é natural’
Andreza Guedes, neta de Agenil, ressalta que sempre se sentiu no paraíso, mas hoje enfrenta dificuldades até para respirar. “Esse fogo não é natural; é causado pela ação humana, mas muitos normalizam e dizem que sempre acontece”.
A declaração de Andreza condiz com a realidade. Desde 2021, ambientalistas alertam que a mudança no padrão de incêndios está diretamente ligada às condições climáticas extremas, intensificadas pela interferência humana, como o desmatamento e o uso inadequado do fogo. Esse aumento da frequência e intensidade dos incêndios reflete um cenário global de mudanças climáticas, no qual ecossistemas naturais, como o Pantanal, enfrentam um futuro incerto.
Fogo ameaça tradição centenária na Barra do São Lourenço
É dos ramos secos do aguapé, planta típica do Pantanal, que as artesãs da Barra do São Lourenço, em Corumbá, criam peças únicas e difundem a cultura do povo Guató por todo o Brasil. No entanto, a recorrência dos incêndios florestais tem diminuído drasticamente os aguapés, colocando em risco a continuidade de um saber ancestral transmitido de geração em geração.
Aos 57 anos, Leonilda Reis de Sousa, presidente da Associação Renascer, é uma das responsáveis por manter viva a tradição. Na comunidade ribeirinha, não apenas o aguapé, mas também os frutos nativos e as sementes se transformam em arte nas mãos das artesãs. O que a aflige, é que, a cada ano, os impactos ambientais estão tornando a matéria-prima mais escassa.
“Tenho 57 anos e passei a maior parte da minha vida na Barra do São Lourenço. Meus pais, meus avós, todos nasceram no Pantanal, e digo que nunca vi uma situação como esta. O fogo está fora de controle, e fico apavorada só de imaginar como será no futuro”, relata.
Leonilda explica que, por ser uma região habitada por ribeirinhos, quase não há desmatamento, mas a morte e redução dos aguapés está sendo causada por mudanças climáticas extremas, como incêndios e secas.
“Você não sabe o quanto o fogo têm nos impactado. Não podemos plantar, a pesca fica comprometida e o nosso sustento, que é o aguapé, diminui o tamanho. A nossa saúde também fica muito impactada”, lamenta.
‘Sinto que perdi minha liberdade’
“Antes, tínhamos liberdade para ir a todos os lugares. Entrávamos em um braço de rio, navegávamos em uma baía, íamos para outro. Havia abundância de peixes e animais. A natureza oferecia frutos por todos os lados e sempre encontrávamos algo para comer. Hoje, tudo está diferente”, descreve Leonilda, refletindo sobre as mudanças no Pantanal.
Embora haja apoio contínuo no combate às chamas, Leonilda confessa que, por vezes, se sente desassistida pelo poder público. Segundo ela, o apoio vem das brigadas comunitárias, Corpo de Bombeiros, projeto Povo das Águas e ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). No entanto, a artesã afirma sentir falta de políticas públicas mais efetivas por parte do Governo do Estado e Prefeitura de Corumbá para prevenir novos desastres ambientais.
Origem do fogo
Conforme o Ministério do Meio Ambiente, todos os incêndios no bioma detectados entre maio e junho têm como causa a ação humana e não há registro de incêndios causados por raios. Além disso, o uso do fogo no Pantanal está proibido e é crime, com pena de dois a quatro anos de prisão.
A situação se agravou devido ao fato de que o bioma enfrenta a seca mais grave em 70 anos, intensificada pela mudança do clima. O período de julho de 2023 a junho de 2024 é o mais quente já registrado nas medições recentes. Soma-se a isso o fato de a bacia do Rio Paraguai ter registrado o menor acumulado de chuvas por ano hidrológico desde 2001.
Segundo pesquisa do MapBiomas Água, em relação ao tamanho do próprio bioma, o Pantanal foi o que mais secou ao longo da série histórica, que cobre o período entre 1985 e 2023.
A superfície de água anual (pelo menos 6 meses com água) em 2023 foi de 382 mil hectares – 61% abaixo da média histórica. Houve redução da área alagada e do tempo de permanência da água. No ano passado, apenas 2,6% do bioma estava coberto por água. O Pantanal responde por 2% da superfície de água do total nacional.
O ano de 2023 foi 50% mais seco que 2018. Naquele ano, a água no Pantanal já estava abaixo da média da série histórica, que compara os dados desde 1985.
Ciclo das águas
Sob as lentes do fotógrafo Guilherme Giovani, as mudanças ocorridas no Pantanal se tornam algo mais concreto que os relatos. Para quem ainda desacredita, as imagens servem como um testemunho visual das transformações que o bioma enfrenta. Em junho, uma de suas fotos viralizou ao mostrar a dimensão do fogo.
Conforme Guilherme, nos últimos anos, ficou nítido que os desastres ambientais têm afetado o ciclo das águas (cheia e seca). Ele observa que, antes de 2020, o bioma já enfrentava uma forte estiagem, e em 2023 houve uma cheia significativa, sendo que a última cheia desse nível havia sido em 2013.
“Hoje, durante as cheias, o rio não enche tanto, as águas não chegam onde costumavam e parecem durar menos tempo. Isso implica em uma seca prolongada e a possibilidade de fogo aumenta, gerando novos incêndios”, explica.
O ciclo ao qual Guilherme se refere consiste em inundações que se repetem todos os anos, proporcionando a renovação da fauna e da flora no Pantanal. As chuvas iniciam em novembro; a partir de um trimestre de chuvas intensas na região dos morros, o nível das águas dos rios passa a subir e se espalhar por toda a planície.
Contudo, neste ano, a estiagem impossibilitou a subida dos rios. De acordo com um balanço do Cemtec (Centro de Monitoramento do Clima e do Tempo), divulgado no dia 8 de julho, nos três dias anteriores o nível da bacia do Rio Paraguai estava abaixo da cota e com redução do nível a cada dia analisado. O mesmo se repetiu nas áreas dos rios Aquidauana, Miranda e Cuiabá.
‘Alguns lugares não irão se recuperar’
O fogo traz uma cadeia de eventos impactantes, como a morte da fauna, seja por queimaduras ou atropelamentos na BR-262, onde o fogo costuma chegar e os animais fogem. Além disso, o fotógrafo ressalta que os poucos que sobrevivem podem morrer intoxicados pela fuligem ao tentar caçar. Essa fuligem depois vai parar nos rios, prejudicando os peixes.
“Observo que lugares e vegetações não se recuperaram mais por conta desses cenários de seca e fogo. Ao mudar seu habitat natural, muitos animais deixam de procriar. Isso ocorreu com algumas espécies em 2020. Por isso, os registros fotográficos são importantes para esse comparativo e contar a história”.
‘Procurar culpados é sempre delicado’
Na visão do profissional, os desastres ambientais ocorridos no Pantanal são consequência de uma série de fatores que perpassam questões climáticas, mas são intensificadas pela ação humana.
“Procurar culpados é sempre delicado. Analiso como uma sequência de comportamentos inadequados: Existem satélites monitorando desmate ilegal e fogo; nesse caso, quem descumpre a lei deve responder. Até pouco tempo, a queima controlada era autorizada; hoje, pela situação do Pantanal, está proibida.”
Quanto ao desmatamento, Guilherme Giovani acredita que é um problema grave em todos os biomas. “Até onde sei, cada propriedade no Pantanal precisa ter 20% de área preservada, intocada. Se isso é realidade em todas as propriedades, eu não sei, mas é o que se estabelece”.
Para o fotógrafo, a saída é uma boa educação ambiental, uma conscientização de que lixo gera fogo, poluição e doenças, e que o meio ambiente é lugar de contemplação e paz.
“É preciso investir em prevenção eficaz e políticas públicas, mas assim como o ser humano, o Pantanal tem a capacidade de se reinventar. Ainda existem pessoas que lutam para que o bioma se mantenha preservado, isso nos dá esperança”.
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