Estágio final do vício, a rua é submundo de abandono, violência e histórias de solidão
No fim da série de reportagens, Jornal Midiamax ouviu histórias de quem chegou no fim da linha da dependência
Clayton Neves –
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O cabelo já batendo na altura da orelha e os gestos sutis, somam à delicadeza do chinelo de sereia e da camiseta com aplicações de lantejoulas prateadas e desenho de dois gatinhos bordados em pelúcia, um na cor rosa e outro na cor branca. Em meio a várias negativas de entrevista, uma pessoa chama atenção pela simpatia ao ser abordada na antiga rodoviária de Campo Grande.
Antes de começar a falar, Desirée Karoline, a Karol, vai atrás do “instrumento” para “dar um pega” que a faz conversar por duas horas seguidas com a reportagem do Jornal Midiamax.
A entrevista acontece na calçada da Rua Dom Aquino, ao lado de outros tantos usuários e de três cachorros vira-latas que marcam território, dois caramelos e um pretinho. ‘Grilada’, a entrevistada insiste para que todos sentem no chão e se incomoda todas as vezes em que o repórter fotográfico se levanta para ajustar o ângulo das fotos. Antes de voltar no passado e resgatar a história de vida, nossa personagem confessa que já não dorme há quase quatro dias.
Mulher trans, Karol tem 36 anos e cresceu em Fátima do Sul, em uma casa com o pai, a mãe e dois irmãos. Desde pequena, conta que sentiu a dor do preconceito, mesmo antes de entender sua sexualidade ou condição de mulher trans. “Na escola me chamavam de bicha louca, mexiam comigo e eu me sentia muito oprimida com isso”, revela.
Enquanto todos se antecipavam para dizer que Karol seria isso ou aquilo, a criança que acabava de entrar na fase da adolescência sequer conseguia entender a diferença entre ela e as amigas de escola.
“Eu me entendia como uma menina, colocava fralda na cabeça, cuidava de bonecas como se fosse mãe delas e me sentia bem assim. Aos 13 anos comecei a ficar triste porque vi que começou a crescer peito nas minhas amigas, mas em mim não”, pontua.
Estupro e distanciamento familiar
Além do bullying que sofria, a poucos meses de completar 15 anos veio o crime que marcaria para sempre a vida da transexual. “Fui estuprada e isso me fez ter ódio de homem. Meu medo era que um homem voltasse a me tocar e tudo aquilo acontecesse de novo, por isso, me fechei para o mundo”, afirma.
O bloqueio só foi superado tempos depois, quando Karol se apaixonou por um rapaz da Igreja Testemunha de Jeová, que frequentava com a família. Da paixão, veio a descoberta da mãe sobre o interesse por homens.
“Eu tinha um diário onde escrevia sobre eu e o menino, mas nos meus textos eu já me referia a mim como Karol. Minha mãe leu e mesmo com outro nome, ela sabia que eu estava falando sobre mim mesma. No dia, ela me acordou chorando e disse que ter um filho gay era uma vergonha”, relembra.
Diante da decepção da mãe, Karol decidiu bloquear a própria essência e jurou que não ficaria mais com homens. “Optei por me anular pela minha família, que queria me ver casada com uma mulher. Permaneci assim por muito tempo”, explica.
Tempos depois, a separação dos pais foi uma “porrada” no psicológico, que a fez refazer a rota da vida. “Virei as costas para tudo e anulei a minha vida pela minha família, mas quando vi meus pais se separarem eu surtei. Me tornei uma pessoa muito rebelde, experimentei maconha e comecei a ficar com homens”, conta.
Com a situação insustentável, Desirée foi expulsa de casa. Nesse período, conheceu o primeiro namorado com quem foi morar em uma casa alugada. Com ele, veio a primeira experiência com a cocaína. “Eu bebia bastante e um dia ele me ofereceu o pó para cortar a bebida. Depois que experimentei, passei a usar cocaína todo fim de semana na balada”, relata.
O início do fim
Brigas e traições fizeram o relacionamento terminar e a busca pelas drogas crescer. Na saga para fugir da realidade, Karol fez a parada mais perigosa da vida. “Comecei a me reunir com amigos para usar pasta base na kitnet onde eu morava. No início era só uma maneira de relaxar porque eu nunca quis a droga, queria ser feliz e não sentir aquela angústia de pensar que não tinha mais meu namorado e nem minha família. Me sentia sozinha e a droga me anestesiava”, confessa.
Até 2019, Karol conseguiu trabalhar para sustentar o vício, no entanto, com a dependência cada vez maior, não teve mais condição de assumir outro compromisso a não ser com a droga. Até agora, foram oito internações em clínicas de reabilitação, em todas elas, o vontade da pasta base falou mais alto. “Hoje eu não roubo ninguém, inclusive, teve um tempo que fui morar em uma biqueira onde trabalhava a troco de droga. Peço na rua e até faço programa para me manter”, diz.
Já entregue ao vício, em setembro de 2022, Desirrée Karolina decidiu assumir publicamente a identidade feminina que sempre guardou consigo, com a revelação, veio novamente a rejeição da família que até está disposta a ajudá-la, mas com a condição de que assuma personalidade masculina.
“Minha família não me aceita, dizem que posso ir para casa, mas tem que ser como homem. Me fazem tirar esmalte da unha, vestir roupa de homem e isso faz eu me isolar ainda mais. Não posso mais esconder quem eu sou de verdade”, finaliza.
Antiga Rodoviária, submundo bem no Centro
Campo Grande, janeiro de 2023, Bairro Amambaí. É perto das 8h30 quando o veículo do jornal deixa eu e o Henrique Arakaki, repórter fotográfico, em frente ao local onde um dia funcionou a rodoviária da Capital. A nós, coube a tarefa de produzir a matéria que encerra série de reportagens do Jornal Midiamax, que revelou o ciclo da dependência química em suas mais variadas facetas, no nosso caso, a última e mais degradante delas.
Refém dos sinais do tempo, que corroem a estrutura e o que resta da tinta azul-marinho, o prédio Laburu e todo o entorno se transformaram no cenário onde a força e grandeza do ser humano são colocadas em xeque, à medida que a linha tênue entre vida e morte fica escancarada.
Nos últimos anos, moradores e o próprio Poder Público assistiram à área ser tomada por população de usuários de drogas. Pessoas dominadas pelo vício, que encontraram abrigo entre as plataformas que antes protegiam ônibus.
Símbolos da recente reforma iniciada pela Prefeitura, tapumes de zinco aos metros formam barreira que cerca o prédio, mesmo assim, manobra insuficiente para afastar o grupo que se amontoa nas calçadas e divide espaço com o trio de vira-latas que acena a quem passa.
Onde a visão alcança, vai e vem de pessoas com a agitação típica de quem está sob o efeito de drogas, para quem deu “game over” e foi vencido pela exaustão de dias usando pasta base, a proteção para o chão gelado são papelões, lonas e trapos sujos do que um dia foram cobertores e roupas. Por vezes, nem isso.
Nas mãos da maioria que frequenta a antiga rodoviária, latas de refrigerante, cachimbos artesanais e isqueiros são companhias acionadas a todo momento e sem qualquer filtro. Foi “Praga”, um dos nossos entrevistados, quem me revelou que os assessórios são chamados de “instrumentos”.
Depois de perguntar ao máximo de pessoas sobre o motivo para chegarem na situação em que estavam, ouvimos histórias de abandono, pobreza extrema, violência sexual e doméstica e o relato de quem não teve psicológico para enfrentar a dor do luto e da perda de assistir lares serem destruídos. Também, a história de quem acreditou que a droga era diversão, mas conheceu a fase mais cruel da dependência.
Espancado na noite de Natal
Aos 35 anos, “Praga” é um homem negro que mal consegue falar entre um delírio e outro, resultado da mistura do álcool e pasta base. Pelo corpo sujo, protegido apenas com um short jeans encardido, saltam cicatrizes da época que lhe rendeu o apelido do qual se apropriou. “Eu batia em todo mundo”, confessa.
Há 8 anos, ele ‘mora’ no entorno da antiga rodoviária de Campo Grande e conta que dorme pelas calçadas da região. Banho, nem sabe dizer quando foi último.
Nos ossos evidentes por todo o corpo magro, a prova de que até a alimentação fica em segundo plano diante do vício. “A droga me colocou nessa vida desgraçada”, relata.
Entre as histórias que ‘Praga’ coleciona, relatos de abandono, violência e solidão. “Minha mãe me abandonou quando eu era criança e fui adotado por uma família que me explorava, me batia e me chamava de macaquinho. Uma vez, quando eu tinha sete anos, lembro que me bateram e me deixaram trancado sozinho em um quarto escuro bem no dia do Natal”, lembra.
Para ele, a droga foi refúgio diante do abalo emocional e do psicológico fragilizado desde a época de infância. “Comecei a usar para esquecer das coisas e entreter a mente, mas agora estou nessa situação e sozinho no mundo. Já me internei várias vezes mas não adiantou porque esse vício maldito sempre fala mais alto” detalha.
Com mãos que se mexem involuntariamente a todo tempo, ‘Praga’ mostra como prepara o ‘instrumento’ para fumar as pequenas pedras amareladas de pasta base. Na direção da câmera, envolve a droga em um pequeno pedaço de bombril, que depois é posicionado na entrada de um canudo de metal. Na sequência, põe fogo no bombril enquanto puxa a fumaça pela outra ponta.
“Se posso deixar um recado para todo mundo é que nunca experimentem isso daqui”, aconselha. Nesse momento a entrevista termina porque o rapaz já não consegue mais controlar a agitação e as falas desconexas.
Olha aí, ai é o meu guri!
Em 1997, Elza Soares lançava versão da música de Chico Buarque que a fez reviver a dor de perder três filhos. Anos depois, o desalento vivido pela cantora, contado ao mundo em forma de canção, se repetiria na vida de Luzia Franco, de 49 anos. Mulher negra, de olhos claros, que encontro sentada em um meio-fio olhando para o nada.
A diferença entre Elza e Luzia é que o vazio que levou a artista a cantar, na vida da corumbaense, somou-se a tantos outros gatilhos que a fizeram procurar consolo no álcool e na pasta base.
Aos 17 anos, o filho da Luzia morreu assassinado com dois tiros e enquanto agonizava, ao lado de um amigo que o socorreu, o adolescente chamava insistentemente pela mãe. Luzia trabalhava em uma fazenda no Pantanal e sequer pôde ir ao velório.
“Ele morreu me chamando e dizendo que não queria morrer. Foi morto por um menino que a gente conhecia desde criança, bem na esquina da casa onde morava com a avó. Pedi ajuda para os meus patrões, mas disseram que não tinha avião para me levar até a cidade. Só consegui ir dois dias depois de carona com o barco que levava”, relata.
Abandonada na infância
Além do episódio com o filho, a história da cozinheira coleciona tragédias desde a adolescência. Antes dos 14 anos, foi entregue pela mãe na casa de uma família de fazendeiros de Corumbá. “Eu chorei pedindo que ela não me deixasse lá e todos os dias chorava de saudade dela. Não sei qual o combinado feito com a família, mas eu lavava, passava, cozinhava e fazia de tudo no casarão”, lembra.
Anos mais tarde, ainda adolescente, ela teve de fugir da fazenda onde foi deixada e chegou a morar na rua, nesse mesmo período, veio o primeiro contato com o álcool. “Tomei dois Danones que estavam na geladeira e a patroa quis me bater. Me defendi e fugi de lá. Quando cheguei na cidade já era à noite e me escondi em uma caixa de papelão. Eu estava morrendo de medo, mas fiquei lá até amanhecer”, afirma.
Sozinha e ainda adolescente, Luzia voltou ao serviço doméstico após dias perambulando na rua, no entanto, desta vez o consumo de álcool já fazia parte da rotina.
Nos anos seguintes, a cozinheira se casou, teve filhos e veio morar em Campo Grande. No entanto, quando a torcida era por uma nova vida, a experiência de casada foi um novo baque. “Ele me ameaçava, me batia e tudo era um inferno”, detalha.
Cada vez mais desmotivada, Luzia se afundou cada vez mais na bebida. Por conta disso, perdeu a guarda de três netos que cuidava e ganhou mais um motivo para entrar ainda mais no vício. O estágio seguinte da história é o que já contei aqui.
“Muita decepção, é por isso que estou nessa vida. Pessoal fala que a gente está jogado na rua porque quer, mas ninguém sabe como fica nossa cabeça com tudo o que a gente já passou”, finaliza.
Tráfico presente
Entre as horas que nossa equipe de reportagem esteve na rodoviária, o tráfico escancarado de drogas se fez presente. Pasmem, mesmo com nossa presença, dois traficantes não se intimidaram em negociar a venda de pasta base a dois passos de nós.
Bem vestidos, ao contrário de todos ao redor, a tranquilidade de quem tira lucro da dependência química evidencia a certeza da impunidade.
Existe tratamento pelo SUS?
O SUS (Sistema Único de Saúde) oferece tratamento para dependência química para usuários por meio do Caps (Centros de Atenção Psicossocial) Álcool e Drogas. Em Campo Grande, existe uma unidade, localizada na rua Theotonio Rosa Pires, 19, região central.
A unidade oferece atendimento ‘porta aberta’, o que significa que fica aberta 24 horas e disponível para receber pacientes.
Para saber mais detalhes sobre o tratamento em Campo Grande, clique aqui.
Confira no decorrer desta semana a série de reportagens do Jornal Midiamax sobre o ciclo das drogas em Campo Grande, do uso recreativo nas festas, o combate ao tráfico, tratamento, recaídas e até o fundo do poço onde vivem aqueles que não conseguem se livrar do vício e perdem tudo.
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