“Na época eu não entendia que a dependência química é incurável. Eu fiz o processo do tratamento, fiquei super animado com a vida de novo, só que eu não dei manutenção. Eu saí de lá [da clínica] e achei que era uma pessoa normal. Daí o mundo foi me engolindo e eu recaí com dois meses.” 

Esse é o relato de uma pequena parte da vida de Luiz Felipe Teixeira Ferreira, atualmente com 34 anos, e a relação dele com a dependência das drogas, com todas as sílabas de seu nome verdadeiro. 

Sim, é uma pequena parte da história de Luiz que aceitou usar o nome nesta reportagem porque tem ciência de onde esteve no espiral do vício e recaídas e onde está hoje, recuperado e há dois anos limpo. 

Não tem receio de falar sobre o turbilhão que é o relacionamento com as drogas e gosta de compartilhar a história para que outros vejam que existe uma “luz no fim do túnel”, mesmo nos momentos de recaída, como ele diz. “A dependência é uma doença para a vida toda”, relembra.

Além disso, é comum que aconteça a recaída, ou seja, o retorno ao uso de drogas depois de um tempo limpo, durante o processo de tratamento, como explica a enfermeira e gerente do CAPS Álcool e Drogas em Campo Grande, Vania Jackeline Ramos. 

“O paciente tem que ser visto sempre como um todo, porque quando ele diz que está disposto a aceitar o tratamento, geralmente vemos lágrimas em seus olhos e sabemos que realmente é uma verdade naquele momento, porém o que a dependência faz com o sistema nervoso central do paciente faz com que as recaídas aconteçam. É um dia de cada vez”, explica a profissional. 

Luiz começou ainda na adolescência o uso de álcool e cigarro para, aos 16 anos, chegar na maconha, como uma tentativa de se enturmar nos lugares que frequentava. Passou para a cocaína, o mesclado (pasta base misturada com maconha) e depois conheceu o crack, que o levou ao nível mais severo de uso, que é a dependência. 

“Em situações de estresse e pressões do cotidiano que esse paciente não aprender a lidar, ele pode escapar para a droga como um alívio. O paciente utiliza a droga, depois de ser um adicto, inicialmente como lazer, descontração, mas posteriormente ele usa como um alívio para as angústias”, explica a psicóloga Eliane Aigner Coro.

Luiz conta que mentia para ele mesmo no ciclo da dependência (Foto: Marcos Ermínio, Midiamax)

Uma vida dupla

Luiz Felipe escondeu por muitos anos da família, que mora em Dourados, que usava drogas com medo que descobrissem. Mudou-se para Campo Grande para trabalhar e viveu altos e baixos no nível de uso durante dez anos até chegar ao fundo do poço. 

“Isso fez que o progresso da minha dependência fosse lento. Eu consegui me enganar durante muito tempo, é como se eu tivesse uma vida dupla. A dependência é uma doença progressiva”, reflete Luiz. 

Aos 27 anos perdeu o controle do uso e já percebia os danos físicos e emocionais. Depois de terminar um namoro, Luiz piorou e a família acabou descobrindo a drogadição após ficar dias sem dar notícias. 

Voltou para Dourados e lá foi convencido a fazer o tratamento ambulatorial que inclui acompanhamento médico psiquiátrico com remédio, acompanhamento psicológico, grupo de ajuda mútua e procurou fortalecer o lado espiritual. 

“Consegui me estabilizar e fiquei 11 meses sóbrio. Reconquistei as coisas, tinha perdido a namorada, a parte financeira. Mas depois eu tive recaída e foi parecido com o desenvolvimento da minha dependência, tentando de novo esconder de todo mundo”, relembra. 

Luiz conta que o dependente mente muito para si e para os outros na tentativa de manipular para conseguir o que deseja. Tenta justificar o uso das drogas, que no caso dele era o crack, com as desculpas para aliviar a frustração e até nos momentos de celebração. 

“A pessoa quando está no uso contínuo de drogas ela começa a se desconectar das pessoas e da realidade, sejam amigos, família e relacionamentos amorosos. Ela entra em um círculo de vergonha, culpa, angústia e começa a viver só em função disso. A psicoterapia é essencial para ajudar a se reconectar com outros, com os afetos e isso vai fortalecer ela”, aconselha a psicóloga Eliane Coro.

Uma dependência leva a outra

Além da dependência química, Luiz gostava de jogos de azar, o que potencializava os sentimentos de se recompensar com o crack quando perdia. 

Entre os anos 2017 e 2018, ele diz que chegou ao pior momento da drogadição. Desistiu de si mesmo, pensava em suicídio enquanto a droga o matava aos poucos.

Não tinha interesse em mais nada. Havia aberto uma empresa com um colega e começou a se desfazer para custear o vício. Vendeu tudo. Só não se tornou pessoa em situação de rua porque a família não o abandonou em Dourados, mesmo passando vários dias longe de casa.

“Um dia pedi dinheiro para a minha mãe e ela me falou ‘filho, não aguento mais ver você nessa situação, vai acabar matando a mãe, vai chegar em uma hora que eu não vou tá mais aqui’, e aquilo mexeu comigo mesmo no uso e aí decidi me internar para causar menos sofrimento para a minha família”, recorda.

A primeira internação em uma clínica de reabilitação foi em Campo Grande em setembro de 2018, mesmo resistente e com medo que enfrentaria. Tinha uma visão distorcida do que era uma clínica. Imaginava que ficaria trancado dentro de um quarto tomando remédios o dia inteiro. 

Ficou sete meses e 15 dias em tratamento e foi convidado a fazer um estágio na parte da gerência, mas recusou pelo sentimento imediatista de tentar recuperar tudo que perdeu com as drogas.

“Na clínica foi muito legal, tive apoio da minha família e comecei a ver a luz no fim do túnel. O egocentrismo é o núcleo da dependência química. Eu me achava um condenado, diferente dos outros, achava que não tinha mais jeito. Esse convívio com outros dependentes é fundamental. Eu fui vendo que outros passaram pela mesma coisa que eu passei”, conta Luiz Felipe. 

Tratamento foi a única saída para Luiz se livrar do vício (Foto: Marcos Ermínio, Midiamax)

A esperança e a recaída

Além de controlar o vício, o tratamento na clínica o ajudou no autoconhecimento e a valorizar o que tem e ver que o propósito é melhorar como ser humano. 

Porém, ele voltou a morar em Dourados e com dois meses teve uma recaída após perder cerca de R$ 5 mil em um cassino em Ponta Porã. Passou quatro dias usando crack, voltou para a cidade natal e logo depois retornou para o tratamento em outra clínica na Capital. 

“Entrei em pânico, sabia que tinha feito m**** e precisaria passar pelo processo tudo de novo. Não conseguia falar com ninguém, só usava. A compulsão aumentou. Nessa primeira recaída eu percebi que voltou bem mais forte. Acabou o meu dinheiro, eu vendi roupa, sapato, vendi estepe do carro, só não vendi o carro porque não tive coragem porque era da minha mãe”, ele confessa.

Desta vez, o tratamento levou 11 meses e Luiz novamente recusou o convite de estágio para trabalhar na clínica. Decidiu buscar independência da família e se mudou para Primavera do Leste (MT) para trabalhar, mas novamente teve uma recaída após seis meses. 

“A recaída tem um poder de autodestruição muito grande. Eu já não ligava mais na recuperação, não acreditava mais em mim, me chicoteava demais e me punia. Cada recaída aumentava a impulsividade e tempo de uso”, relembra.

Entrou em uma clínica na Capital pela terceira vez, por mais seis meses. Desta vez ele decidiu aceitar o “chamado” de estágio e há dois anos mora na clínica em que é gerente e terapeuta.

Luiz está sem usar drogas desde 2020 e conta que o seu envolvimento com o trabalho, o apoio da família e com a religiosidade o ajudam a se manter sóbrio. Frequenta a missa todos os domingos e mantém uma conversa com Deus, mesmo nos piores momentos e de revolta. Ver o outro lado, o das famílias que chegam na clínica e os próprios dependentes químicos, também o ajudou a se ver na dor dos outros. 

“O que foi mais importante para mim dessa vez para dar certo a recuperação foi ter aceitado o chamado. As pessoas que têm alcançado a sobriedade estão diretamente envolvidas ou com grupos de ajuda mútua ou com uma religião ou com o trabalho ligado diretamente com os dependentes”, acredita o homem. 

Família também sofre junto com parente dependente (Foto: Henrique Arakaki, Midiamax)

Nem todas as famílias resistem a tanta dor

Na família de Roberto Silva*, a presença da prima de 45 anos é totalmente recusada atualmente depois de sete internações em clínicas particulares no período de dez anos.

Começou a usar drogas de forma recreativa quando na época era gerente de uma loja, tinha o próprio negócio de representação comercial de cosméticos, era casada e mãe de um menino e menina. Largou tudo. Viajou com uma amiga e desapareceu por dois anos e meio e em 2013 voltou viciada no crack. 

“Nessa primeira vez ela ficou pouco tempo internada e teve várias recaídas, tanto que ela teve sete internações e hoje ela mora na rua. A família cansou de fazer o que tinha que ser feito e não aceita ela em casa porque quando ela volta tudo que faz é roubar pra ter mais drogas. Mas se ela voltar hoje a família interna pela oitava vez de novo”, garante Roberto.

A prima mora atualmente em uma casa abandonada no centro de Campo Grande com um companheiro e pede na rua dinheiro para comida e para manter o vício. Os dois filhos, com a ajuda de uma tia, se formaram em uma faculdade, mas cortaram totalmente o contato com a mãe após tantas tentativas frustradas de internações. A última vez que foi encaminhada para uma clínica foi há seis meses. 

“Os filhos não podem fazer nada já que a mesma não quer ajuda, né? Eles já tentaram fazer de tudo. Agora estão esperando ela tomar iniciativa. Até então todo mundo tinha contato com ela quando ia na casa de uma tia que recebia ela, mas essa tia faleceu há dois meses, então dois meses que ninguém mais tem contato com ela”, lamenta Roberto. 

“Vou lutar pelos meus filhos”

“Eu não sei por quanto tempo eu vou viver, mas enquanto eu tiver vida, força física e mental eu vou ajudar meus filhos”, afirma Sônia Luz sobre a drogadição dos dois filhos. 

Assim como os outros personagens desta matéria, os dois jovens começaram a usar drogas com amigos quando tinham 14 e 17 anos. Experimentaram a maconha e depois começaram a diversificar até chegar ao crack.

Sônia relembra que nessa época tinha acabado de se divorciar e começado a trabalhar fora, o que afetou os filhos emocionalmente. Achava que o comportamento do mais velho era rebeldia, então demorou para perceber a drogadição. 

CAPS Álcool e Drogas funciona 24 horas e por demanda espontânea. (Foto: Arquivo Pessoal)

“Eu comecei uma luta muito grande, sem conhecimento nenhum de como ajudar meus filhos. O uso das drogas desencadeou doenças psicossomáticas como a esquizofrenia em um deles. Eu tive que passar por várias situações a ponto perder coisas dentro de casa”, relembra a mãe. 

Sônia explica que o dependente químico tira alguma coisa de dentro de casa porque não quer ir para rua roubar e porque o familiar tende a perdoar. 

“Se a mãe chama a polícia também não dá nada porque é caso de saúde pública, ele está na casa dele então subentende-se que é esse objeto também pertence a ele, então não dá nada”, frisa a mulher. 

Descobriu que poderia internar os filhos em uma clínica terapêutica, mas ficou frustrada quando na primeira reunião em 2012 ouviu que a dependência química não tem cura. “Aquilo lá me chocou porque eu pagava a clínica na esperança de meu filho sair da drogadição e ser curado dessa doença”, recorda. 

Ao longo dos dez anos, os filhos de Sônia entraram e saíram das clínicas várias vezes sem terminar o tratamento ou tendo recaídas logo após saírem da internação. Atualmente, apenas um deles está em uma clínica e a mãe conta com esperança na voz que desta vez a situação é mais positiva. 

O filho, que sempre tinha o hábito de voltar para casa e logo depois sair e voltar dias depois da recaída, desta vez ficou em casa, a ajudou com os serviços de casa e foi para igreja. Na segunda-feira estava animado em voltar para a clínica para fazer um curso que tinha interesse. 

“Vem para casa cheio de alegria, mas aí tem aqueles velhos hábitos, as velhas amizades, né? E ainda se encontram na mesma região onde tudo começou, então tem fatores de risco de recaída. Eu sempre vou falar assim acreditando que essa é a última internação do meu filho. Ele está pra terminar”, crê Sonia.

De buscar os filhos na boca de fumo a pagar traficante na porta de casa, Sônia enumera tudo que já fez pelos filhos nesses anos de drogadição e que mesmo assim não desiste da recuperação deles.

“Eu já perdi todos os móveis de uma vez só. Depois eu fui construindo tudo de novo e fui pondo as coisas que faltava. Não tenho direito de ter televisão na minha casa. Já tive várias. Hoje eu já não preciso mais dessa televisão. Preciso que meus filhos recuperem e cada objeto que eu tenho dentro de casa é uma oferta pra ele recair. Então já não faço muita questão de computador, notebook, celular, bichos. É bem complicado, mas desistir dos meus filhos nunca, jamais”, garante Sônia.

A mulher conta que não esmoreceu do objetivo porque mesmo em meio a recaídas e episódios mais críticos, os filhos veem na mãe a força e esperança de um dia se recuperarem.

“Não desista porque sozinho eles não conseguem sair da drogadição. Tem que ter ajuda, tem que ter amor, tem que ter carinho e ser um pouco mais forte, mais firme com eles também. Eles não podem entender que você é um fracasso porque senão ninguém pode ajudar”, aconselha. 

*Os nomes identificados com asteriscos foram alterados para preservar a identidade a pedido da fonte.

CAPS Álcool e Drogas realiza atividades com os pacientes em tratamento. (Foto: Arquivo Pessoal)

Como as drogas agem no corpo humano?

De acordo com a gerente do CAPS Álcool e Drogas, Vânia Ramos, as substâncias psicoativas modificam as sinapses neurais, proporcionando uma falsa sensação de bem-estar e melhora da dor, seja física ou emocional. 

Segundo a profissional, a dependência ocorre como uma trilogia onde está totalmente interligado: ambiente – substância – pessoa. 

O ambiente está ligado ao local em que o ser humano está inserido desde criança e decorrer da vida.

“As substâncias nem sempre são ilícitas. O que a maioria das pessoas não se dão conta é que a dependência pode iniciar na maioria das vezes por substâncias lícitas que podem ser facilmente compradas, possuem valores acessíveis e que podem trazer o início da dependência como as medicações como analgésicos, benzodiazepínicos, anti-inflamatórios entre outros”, afirma a enfermeira. 

Já o fator humano pode estar ligado a uma predisposição à dependência química interligada à história familiar e hábitos dos pais. “Hoje temos também o que vem trazendo bastante dependência são os chás alucinógenos (Cogumelo, Ayuaska, entre outros.). A cultura de ser visto na sociedade é o que vem também trazendo muitas pessoas ao uso ou abuso de substâncias”, alerta a profissional. 

Existe tratamento pelo SUS?

O SUS (Sistema Único de Saúde) oferece tratamento para dependência química para usuários por meio do Caps (Centros de Atenção Psicossocial) Álcool e Drogas. Em Campo Grande, existe uma unidade, localizada na rua Theotonio Rosa Pires, 19, região central. 

A unidade oferece atendimento ‘porta aberta’, o que significa que fica aberta 24 horas e disponível para receber pacientes.

Para saber mais detalhes sobre o tratamento em Campo Grande, clique aqui.

Confira no decorrer desta semana a série de reportagens do Jornal Midiamax sobre o ciclo das drogas em Campo Grande, do uso recreativo nas festaso combate ao tráfico, tratamento, recaídas e até o fundo do poço onde vivem aqueles que não conseguem se livrar do vício e perdem tudo.