Em 4 anos, ONG de MS recebeu R$ 200 milhões para manter profissionais de saúde em aldeias

ONG sediada em Dourados recebeu mais de R$ 800 milhões em quatro anos

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Missão Caiuá é sediada em Dourados (Foto: Divulgação)

A ONG (Organização Não Governamental) Missão Evangélica Caiuá recebeu R$ 50 milhões por ano em convênio do Governo Federal para atuação na saúde indígena de aldeias de Mato Grosso do Sul. A informação foi revelada pela própria ONG, que ganhou repercussão nesta semana após reportagens nacionais que destacaram os R$ 872 milhões repassados pelo governo Bolsonaro (PL) para a instituição no período de 4 anos.

A ONG está sediada em Dourados, a 225 quilômetros de Campo Grande. O grupo atua diretamente na assistência de saúde de povos indígenas, intermediando contratações de médicos e outros profissionais de saúde. A atuação da ONG já levantou suspeitas no Estado, inclusive com reportagens publicadas pelo Jornal Midiamax em 2016.

O assunto veio à tona essa semana dias após a crise humanitária dos indígenas Yanomami, em Roraima, ganhar as páginas de jornais mundo afora.

Reportagem publicada pelo Jornal O Globo mostra que nos quatro anos de governo de Bolsonaro, o Programa de Proteção e Recuperação da Saúde Indígena teve orçamento de R$ 6,1 bilhões e mais de R$ 5,4 bilhões gastos. Ou seja, 88% do fundo foi utilizado, de fato.

Os números elevados do que seriam os fundos destinados à saúde indígena chamaram atenção diante da tragédia humanitária vivida pelo povo Yanomami, que, segundo o MPF (Ministério Público Federal), é fruto da omissão do Estado em assegurar a proteção dos indígenas.

Dados portal da transparência
Foto: Portal da Transparência do Governo Federal

Conforme disse o advogado da ONG, Cleverson Daniel Dutra, ao Jornal Midiamax, o valor de R$ 872 milhões é relativo à soma de todos os nove convênios que a entidade mantém com o Governo Federal desde 2019, portanto, não são valores específicos para os Yanomamis. Montante também seria destinado aos quatro Estados onde a instituição atua: Mato Grosso do Sul, Acre, Amazonas e Roraima.

“A entidade possui atualmente nove convênios e atende aos DSEIS do Mato Grosso do Sul, Alto Rio Purus (Acre), Manaus, Parintins, Médio Rio Solimões, Vale do Rio Javari, Alto Rio Solimões e Médio Rio Purus (Amazonas) e Yanomami (Roraíma)”.

R$ 50 milhões por ano em MS

Ainda conforme a instituição, o Governo Federal enviou uma média de R$ 50 milhões por ano entre 2019 e 2022 a Mato Grosso do Sul, totalizando R$ 200 milhões neste período. Isso significa que a instituição contava com uma média de R$ 4,16 milhões de recursos mensais para a realização de trabalhos de apoio a indígenas no Estado.

“A função da entidade é contratar profissionais, como médicos, enfermeiros, dentistas, agentes de saúde e outros profissionais. Os agentes de saúde são indígenas que trabalham dentro das próprias comunidades”, ressalta Cleverson.

Conforme os dados passados pela instituição à equipe de reportagem, cerca de 800 profissionais de saúde atuam em todo o território sul-mato-grossense, sendo 500 apenas agentes de saúde que acompanham a situação de dentro das comunidades. Enquanto isso, demais especialistas, como médicos e enfermeiros, ficam lotados nas Equipes Multidisciplinares em Saúde Indígena (EMSI) que ficam à disposição de cada Dsei (Distrito Sanitário Especial Indígena).

“A entidade apenas contrata e paga salários e demais direitos trabalhistas. Cabe ao Governo Federal por meio dos DSEI’s organizar e coordenar os profissionais para aturarem dentro das comunidades indígenas, provendo insumos e transporte para os profissionais, bem como aos indígenas”, explica o advogado.

Atualmente, a entidade tem aproximadamente 4.800 profissionais contratados para atuar em todos os convênios.

Apoio às aldeias

Diante da repercussão dos dados, a ONG ainda explica que os profissionais de saúde fazem trabalhos diários dentro das áreas indígenas. Na região amazônica, por exemplo, o transporte é feito por barcos e aeronaves.

“O Governo Federal quem faz isso por meio dos DSEI. No Mato Grosso do Sul temos mais de 700 profissionais que atuam dentro das diversas aldeias indígenas desde os Guatós (Corumbá) até os Guaranis (Japorã). Só na região amazônica são mais de 4.000 profissionais e nos Yanomamis são mais de 800”.

Frente a essa afirmativa, o Jornal Midiamax também entrou em contato com lideranças indígenas do Estado para entender se os serviços realmente chegam a quem precisa.

Conforme pontuado por Jorge Soares, cacique da Aldeia Te’yikue, localizada em Caarapó, os médicos prestam atendimentos regulares na sua comunidade. “Uma equipe atende a minha comunidade e tem uma equipe volante atendendo as aldeias de fora também”, comenta.

Lindomar, liderança indígena da Aldeia Mãe Terra e Ka’IKoe, afirma que os profissionais de saúde também fazem visitas regulares à comunidade e possuem dia de atendimento em cada aldeia da região de Miranda.

Pedro Lulu, membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena MS – que cuida das oito etnias do Estado e fiscaliza os serviços – explica que a ONG Evangélica Caiuá atua desde 1910 em MS. Desde a chegada da saúde indígena ao Brasil, a instituição ficou responsável pela contratação de profissionais de saúde indígena na região.

“É um recurso específico apenas para a contratação dos profissionais. É um trabalho que prossegue até hoje. Brasília faz um chamamento público nas ONGs interessadas em trabalhar nas saúdes indígenas. E quando faz esse processo, a Missão Caiuá se inscreve e ela ganha nesses quesitos”, comenta Pedro.

O membro do conselho indígena ainda reforça que a ONG só faz contratação de profissionais. Além disso, a maioria dos trabalhadores dentro das aldeias é indígena, como os agentes de saúde e agentes de saneamento, que cuidam da parte ambiental.

Mesmo com os atendimentos em dia, as lideranças ainda comentam que, muitas vezes, faltam insumos e equipamentos adequados para que as equipes façam os atendimentos. Sobre isso, o conselho ressalta que são recursos de responsabilidade do Governo.

“Muitas pessoas confundem porque acham que a Missão Caiuá compra remédio, viatura, mas não. Ela recebe recursos apenas para contratar profissionais da saúde indígena. A contratação de viatura, por exemplo, é terceirizada. A compra de remédio é com recursos federais”, diz Pedro Lulu.

Além disso, os profissionais de saúde precisam fazer boletins de atendimento para mandar para Brasília e, só então, mais recursos para os atendimentos são liberados anualmente.

Desligamento de profissionais

Pedro Lulu ainda explica que a fiscalização dos profissionais contratados pela ONG é feita por Brasília, algo que incomoda as comunidades regionais. Isso porque acaba que instituição fica sem autonomia sobre quem permanece, ou não, no quadro de funcionários.

Sobre as demissões no início de cada ano, informação apontada pelo O Globo, o advogado também explicou ao Jornal Midiamax que só existem demissões quando o convênio com o Governo Federal encerra. “Atualmente o convênio foi prorrogado até 31/12/2023, desse modo, não existem demissões a cada final de ano”.

Atendimentos apenas nas aldeias urbanas de Dourados

Nério Kadoshi, da etnia terena e responsável pelas aldeias urbanas das regiões de Campo Grande e Aquidauana, afirma que os médicos da Missão Evangélica Caiuá nunca prestaram atendimentos nas aldeias urbanas das quais é responsável. Assim, moradores são atendidos por profissionais do próprio município nos postos de saúde.

Sobre isso, o advogado diz que os profissionais atendem apenas as aldeias urbanas de Dourados.

“Apenas em Dourados consideram como aldeias urbanas dada a localização geográfica das mesmas. O atendimento das equipes de saúde são sempre feitos dentro das aldeias reconhecidas pelo governo com tal”, afirma.

Assim, os indígenas que residem dentro das cidades devem buscar atendimento nos serviços de saúde municipais ou irem até as aldeias buscarem o atendimento que precisam.

Relembre o caso

O valor de R$ 872 milhões repassado para a ONG Caiuá seria quase o dobro da segunda organização que mais recebeu repasses do Governo Federal, o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueiredo, com R$ 462 milhões.

De acordo com o divulgado, a organização não apenas realiza trabalho em MS, como também em outros estados. O presidente da Urihi Associação Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami, explicou ao O Globo que a ONG Caiuá faz apenas a contratação de funcionários, como médicos e enfermeiros, mas que a organização não tem entrado nas terras indígenas nos últimos quatro anos. A reportagem pontua que os salários foram pagos, mas sem a execução correta do serviço.

Os repasses para as terras yanomamis, segundo o Portal da Transparência, mostram que em 2022 o orçamento era de R$ 59 milhões, sendo R$ 51 milhões executados. O presidente da associação explicou que a maior parte desses recursos foi utilizada “para a contratação de empresas de transporte aéreo, como aviões e helicópteros, que levam médicos e funcionários à região”. Fonte da Funai ouvida pelo O Globo afirmou que muitos deles têm como donos os próprios garimpeiros, que passaram a diversificar os seus negócios.  

Em entrevista ao jornal O Globo, o advogado da ONG afirmou que o papel da organização é apenas contratar funcionários da área da saúde e que nem todo valor chega até a entidade, que há contingências. Ele ainda explicou que houve ‘falha na gestão do governo federal’, que não conseguiu levar médicos e enfermeiros até as aldeias necessitadas.

Crise humanitária dos Yanomami (Foto: Condisi-YY/Divulgação)

MPF vê ‘tragédia humanitária’ com yanomamis

A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do MPF (Ministério Público Federal) aponta que a “grave situação” de saúde e segurança alimentar vivida pelo povo Yanomami é resultado da omissão do Estado em assegurar a proteção da terra indígena, tendo o governo Jair Bolsonaro adotado “providências limitadas” sobre o tema. Em nota pública, a Procuradoria alerta para “verdadeira tragédia humanitária” e possível caracterização de genocídio, inclusive com eventual responsabilização internacional do Estado.

As ponderações do MPF foram divulgadas nesta segunda-feira (23), mesmo dia em que o ministro da Justiça e Segurança Pública Flávio Dino determinou à Polícia Federal que abra uma investigação sobre possíveis crimes de genocídio, omissão de socorro e crime ambiental. Ao fundamentar o pedido de instauração do inquérito, Dino citou “incentivo político a garimpos ilegais em terras indígenas, abandono no que tange ao oferecimento de ações e serviços de saúde, e ausência de estratégias para garantia da segurança alimentar aos Yanomami”.

O ofício à PF fala em “cenário de possível desmonte intencional contra os indígenas Yanomami ou genocídio”. “Os reiterados pedidos de ajuda contra a violência decorrente do garimpo ilegal, bem como a ausência de efetivas ações e serviços de saúde à disposição dos Yanomami frisam possível intenção de causar lesão grave à integridade ou mesmo provocar a extinção do referido grupo originário”, ressaltou Dino ao determinar a abertura das apurações sobre a crise na terra indígena Yanomami.

A Procuradoria destacou ações adotadas em meio ao governo Jair Bolsonaro para cobrar providências do Estado ante a expansão do garimpo ilegal e a precariedade dos serviços de saúde prestados ao povo Yanomami. O órgão citou processos movidos, em primeiro grau e na esfera cível, para garantir a instalação de Bases de Proteção Etnoambiental em pontos estratégicos da terra indígena e para elaboração de um plano emergencial de combate a crimes ambientais e retirada de invasores em meio à pandemia da covid-19.

Em novembro, o MPF oficiou o governo de transição informando sobre o “cenário calamitoso” na terra indígena Yanomami, que “configuraria verdadeira tragédia humanitária e indicaria um processo em curso que, caso não imediatamente freado, poderá caracterizar hipótese de genocídio, inclusive passível, em tese, de responsabilização internacional do Estado”.

No mesmo mês, a Polícia Federal e a Procuradoria da República em Roraima chegaram a deflagrar uma operação contra esquema de desvio de medicamentos do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. Os investigadores suspeitavam que apenas 30% dos mais de 90 tipos de remédios contratados pelos indígenas teriam sido devidamente entregues, deixando crianças desassistidas – somente com relação ao tratamento de verminoses, o desvio teria impactado o tratamento de 10 mil crianças.

Considerando os danos causados pelo garimpo à terra indígena Yanomami, a Procuradoria ainda chamou atenção para a tramitação do projeto de lei que objetiva legalizar a exploração mineral e de recursos hídricos nas terras indígenas. O Ministério Público Federal já apontou a inconstitucionalidade do texto. Segundo a Hutukara Associação Yanomami, houve um crescimento “alarmante” do número de garimpeiros na terra indígena, estimado em mais de 20 mil.

*Colaborou Mariane Chianezi

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