Dizem que a perda de um filho é a maior dor que alguém pode sentir, é como quebrar o curso natural da vida. Mas, e quando essa perda ocorre antes mesmo do nascimento? Com frequência, o luto gestacional é negligenciado e invisibilizado sob a premissa simplista de “é só ter outro” ou “você nem viu ele nascer”. No entanto, a publicação da Lei Estadual 6.143 de 2023 surge como um meio de assegurar o tratamento humanizado a todas as gestantes em .

O reencontro do primeiro amor após 22 anos foi o que impulsionou a servidora pública Suilene Cardoso, 44, a tentar uma gestação aos 41 anos de idade. Como sabia que não seria uma fácil, ela optou pela FIV (Fertilização in vitro), técnica que consiste em fecundar óvulo e espermatozoide em um laboratório, formando embriões que serão cultivados, selecionados e transferidos ao útero da mulher.

“Já tínhamos mais de 40 quando nos reencontramos e decidimos ter um filho, nisso busquei um médico, fizemos todos os exames e realizamos a FIV. No processo descobri que tinha infertilidade sem causa aparente, mas como queria muito ser mãe decidi seguir com a fertilização”, conta.

Segundo a servidora, a fertilização foi um tratamento difícil e demandou um enorme desgaste físico, emocional e financeiro. Embora, tudo valesse a pena pois Suilene estava realizando o sonho de mãe.

Morte na 7ª semana de vida

Tudo parecia bem até que durante uns exames, Suilene descobriu uma trombofilia gestacional. Na 7° semana um sangramento a levou novamente ao consultório médico, mas foi orientada a voltar para casa pois era algo ‘normal'.

“Eu sabia que deveria tomar uma injeção durante toda a gravidez devido a trombofilia, mas o médico não fez isso. Quando tive sangramento vi que não era normal e insisti para ser atendida. Na consulta os batimentos do meu bebê estavam muito fracos, ali já sabia que tinha algo errado”, relembra.

Em 22 de dezembro de 2021, às vésperas do Natal, Suilene recebeu uma ligação e retornou ao consultório médico, foi nesse dia em que ela ouviu a notícia que mudou o rumo de sua história.

“O médico falou que não poderia fazer mais nada e que meu bebê estava morrendo. O mais difícil é que ele poderia ter feito sim, se tivesse tomado a injeção para trombofilia não teria perdido meu filho…Passei seis dias sentindo os batimentos do meu bebê cada vez mais fraco até o dia em que ele foi embora”, relembra.

‘Engole seu luto a faça tudo de novo'

Maternidade
Maternidade (Divulgação)

Logo após a notícia, Suilene foi informada pelo médico que haveria duas formas do bebê sair de seu corpo. “Ele me disse que poderia ocorrer logo e de forma natural, como uma menstruação, falou que sairia como se fosse uma ‘tripinha de galinha'. Ou teria uma hemorragia e seria preciso correr para o hospital”.

Seis dias foi o tempo entre a notícia e a hemorragia que levou ao aborto espontâneo. Durante todo esse tempo, Suilene relata que sentia o coração de seu filho bater cada vez mais fraco até não poder senti-lo mais.

Desolada com a perda de seu filho em meio a negligência médica, Suilene ainda precisou lidar com a invalidação de seu luto por parte do médico.

“Quando retornei a consulta, o médico desumanamente me disse: engole seu luto e bora fazer tudo de novo. Eu simplesmente catei meus cacos, olhei para meu marido e disse, vamos embora. Entendi que ele não queria nada mais além de dinheiro”, relembra.

Resiliência

Mesmo diante da adversidade, a servidora persistiu e buscou novas alternativas para realizar seu sonho de ser mãe.

“Iniciei minha jornada de autodescobrimento por meio da terapia, pratiquei acupuntura, chorei, mas contei com um apoio familiar. Embora o processo tenha sido desafiador, busquei a orientação de outros profissionais de saúde, e foi assim que recebi uma notícia promissora”, relata.

Após uma série de exames, Suilene foi informada que, mesmo aos 40 anos, não enfrentava impedimentos para engravidar. Três meses após modificar seus hábitos, ela conseguiu, de maneira natural, realizar o sonho de dar vida a Helena, a quem carinhosamente chama de ‘milagre'.

Renascer Girassol

A determinação e resiliência de Suilene a inspiraram a transformar sua própria dor em suporte para outras mulheres. Assim nasceu o grupo de apoio Renascer Girassol, destinado a mães que, como ela, enfrentaram a dor de uma perda gestacional.

“Decidi mostrar a outras mulheres que é possível viver o sonho da maternidade. Juntamente com uma colega, criamos o grupo para oferecer suporte a mulheres que, como eu, enfrentaram ‘sozinhas' essa dor”, relata.

Óbitos infantis e fetais em MS (Madu Livramento, Midiamax)

No grupo, Suilene descobriu que muitas de suas amigas compartilhavam experiências semelhantes, mas sentiam vergonha de expor suas histórias.

“A perda gestacional não recebe o reconhecimento devida. Dizem que não causa dor, que não é nosso filho, ou que nem mesmo estava vivo. Ouvimos tantos comentários insensíveis que nos impedem de compartilhar nossas vivências”.

Dor invisibilizada

Ultrassom
Ultrassom (Foto Ilustrativa)

A humanização do luto parental é uma batalha constante entre mães e ativistas da causa. Com o intuito de trazer mais empatia a esse processo, Mato Grosso do Sul promulgou uma Lei que assegura os direitos das mulheres que enfrentam perda gestacional e neonatal nas unidades de saúde do Estado.

A legislação define como perda gestacional e neonatal toda e qualquer situação que leve ao aborto ou óbito fetal, bem como qualquer circunstância que resulte no óbito de crianças de zero a vinte e sete dias de vida completos.

Para a psicóloga especialista em saúde da mulher, Simone Cougo, essa medida é de extrema importância, pois representa um meio de validar o processo de luto vivenciado pela mãe.

“Infelizmente o luto por perda gestacional ainda é invisibilizado. Mães e pais que vivenciam essa perda comumente relatam pouca valorização de sua dor e não se sentem acolhidos e compreendidos pela família, por profissionais da saúde e sociedade em geral”, ressalta.

A Lei Estadual 6.143 de 2023 estabelece como direito das mulheres que enfrentam perda gestacional ou neonatal:

  • Ser acompanhada por pessoa de sua livre escolha;
  • Ser informada sobre o procedimento médico que será adotado;
  • Não ser submetida a procedimento sem que haja necessidade clínica fundamentada em evidência científica;
  • Não ser constrangida a permanecer em silêncio;
  • Escolher se quer ou não ter direito de contato pele com pele com o bebê, imediatamente após o nascimento, em caso de natimorto, desde que preservada sua saúde;
  • Permanecer no pré e pós-parto em enfermaria separada das demais pacientes, ou seja, das que não tenham sofrido perda gestacional;
  • Ser respeitado o tempo para o luto da mãe e de seu acompanhante; e
  • Ser acompanhada por profissional da psicologia, por recomendação médica.

As mudanças, segundo a especialista, desempenham um papel significativo tanto no combate à violência obstétrica quanto no reconhecimento do luto diante da perda gestacional: agora é possível conferir à morte de um bebê (pré ou pós-termo) o status de morte de um filho.

“Não se trata apenas de uma formalidade, mas sim de um reconhecimento social de uma perda vivenciada que envolve planos, representações e todo um futuro relacionado a um filho. Se o luto materno já não é tão valorizado, o luto paterno e de outros familiares é ainda menos visível”, destaca.

A orientação e a escuta adequadas da mãe e do acompanhante por profissionais de saúde são imprescindíveis durante o processo de luto, pois podem identificar aqueles para os quais os rituais de fechamento e/ou a possibilidade de velar e sepultar seus filhos são maneiras importantes de vivenciar o luto e lidar com a dor.

‘Uma vida não substitui outra'

Maternidade (Henrique Arakaki, Midiamax)

Doula há 8 anos, Laís Camargo explica que uma experiência de perda gestacional menos traumática é tão importante quanto uma experiência de parto positiva, pois muda toda a história da mulher.

“É extremamente importante olhar para essas situações com mais sensibilidade; são marcas muito profundas que ficam. Ter apoio nesses momentos é essencial; é uma grande evolução trazer essa humanização no atendimento hospitalar”, diz.

Quando uma mãe está enlutada, é fundamental que as pessoas ao seu redor tenham sensibilidade com a situação de luto e revejam frases e atitudes que possam revitimizar sua dor.

“É muito cruel para a mãe que acaba de perder o bebê ouvir coisas do tipo: ‘logo você tem outro', como se uma vida pudesse substituir outra… Então essa reflexão precisa existir não só entre os parentes, mas dentro das instituições de saúde”, orienta a doula.

A psicóloga Simone Cougo ressalta que o luto gestacional é compreendido como um processo de luto concreto que precisa ser reconhecido, pois cada pessoa vai encará-lo de uma forma.

“Não existem cinco fases lineares do luto – negação, raiva, barganha, depressão, aceitação. Isso não acontece em uma única ordem; elas se misturam, se alternam, porque os sentimentos diante da perda são diversos. É essencial vivenciar o luto em seu próprio ritmo e contar com apoio quando necessário”, destaca.

Índices de mortalidade infantil acendem alerta em MS

Gestante Ilustrativa – (Nathalia Alcântara, Midiamax)

Em 2022, Mato Grosso do Sul registrou 474 óbitos fetais e 494 óbitos infantis. Dos 79 municípios do Estado, 72 (91,14%) registraram óbitos infantis e 65 municípios (82,27%) registraram óbitos fetais no último ano, conforme dados do Boletim Epidemiológico de Prevenção da Mortalidade Materna e Infantil divulgado neste ano pela SES (Secretaria de Estado de Saúde).

Taxa de mortalidade infantil por microrregião de Saúde do MS (Madu Livramento, Midiamax)

Em todo o Estado, cinco municípios concentram a maior taxa de mortalidade infantil, são eles:

Óbitos infantis por raça/cor em MS (Madu Livramento, Midiamax)

Campo Grande figura na 39° posição com uma taxa de mortalidade de 10,92. Dados do último Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), indicam que em 2020 foram registrados 41.308 nascidos vivos, frente a 451 óbitos em menores de um ano. Os números representam uma incidência de 10,92 para cada mil nascidos vivos em Mato Grosso do Sul.

Contato pele a pele pode auxiliar no processo de luto

Bebê (Foto: Ilustrativa)

O direito ao contato pele a pele com o bebê pelo tempo que a mãe desejar, mesmo em casos de óbito, também é assegurado pela nova lei. Segundo a psicóloga, essa experiência é um ritual que pode ser vivenciado para lidar com a dor pela perda de um filho.

“Não é um momento para uma futura ‘superação', porque a perda por morte não é superada, e sim enfrentada. A memória sobre o bebê não deixa de existir; é um enfrentamento constante onde a dor vai e vem em intensidades diferentes”, explica Simone.

Laís Camargo ressalta que há comprovações científicas de que o contato pele a pele aumenta o vínculo e reduz os índices de depressão pós-parto. “No caso de bebê natimorto, é igualmente importante, não importando o tempo de gestação”, enfatiza a doula.

Atendimento humanizado é realidade em Campo Grande

gravidez na adolescência
Atendimento humanizado é fundamental no processo de luto (Foto: Divulgação, Prefeitura Três Lagoas)

Principal hospital materno de Campo Grande, a Maternidade Cândido Mariano, adota diversos protocolos para um atendimento humanizado às gestantes, incluindo aquelas que enfrentam aborto ou óbito fetal.

Antes mesmo da legislação vigente, a direção do hospital garante enfermarias separadas para gestantes que passam por aborto ou óbito fetal. A maternidade destaca que diversos pontos da lei já são prática na unidade, como o direito a um acompanhante escolhido livremente, a não ser constrangida ao silêncio e a ser informada sobre os procedimentos médicos.

A equipe do hospital recebe treinamento para proporcionar atendimento humanizado em partos normais, cesáreas ou curetagens. As gestantes são informadas sobre o tratamento, procedimentos e assinam termos de consentimento.

Em casos de óbitos fetais, a Maternidade respeita o tempo de luto das mães e oferece acompanhamento psicológico conforme recomendação médica. Uma profissional de psicologia acompanha casos de aborto, óbito fetal e neonatal, fornecendo suporte e contando com um grupo de apoio.

Santa Casa investe em abordagem lúdica para confortar as mães

Maternidade da Santa Casa (Foto: Divulgação)

Desde 2019, a Santa Casa de Campo Grande também implementou protocolos específicos para humanizar o tratamento dado às gestantes. Diretor Técnico, William Lemos explica que, apesar de não dispor de alas separadas para casos de perda gestacional, o hospital oferta enfermarias isoladas, sendo de livre escolha da mãe ficar ou não na maternidade.

“Ofertamos às gestantes que sofreram a perda a possibilidade de ficar em um andar separado da maternidade. Quando ficam no mesmo andar elas acabam tendo contato com as mães que estão com seus bebês, o que pode ser doloroso para elas”, afirma.

No entanto, William ressalta que na maioria das vezes as mães optam por permanecer na ala de maternidade mesmo em meio a perda do filho.

“Esse outros andares são locais compartilhados por outras pessoas, como homens, idosos, pacientes com doenças. Por isso, elas costumam preferir ficar no andar da maternidade mesmo”.

Bebê prematuro (divulgação)

O hospital assegura que mesmo em caso de aborto precoce, as mães tem plenos direitos de o contato pele a pele com o bebê, sem que haja um tempo limite para a despedida.

“As vezes ocorrem abortos na 19° semana, quando os bebês tem pouco mais de 20 cm, mesmo assim possibilitamos que a mãe fique com o filho pelo tempo que ela desejar”.

William Lemos ressalta que em casos de aborto precoce em que o feto ainda não está totalmente formado, o hospital realiza uma abordagem lúdica, para explicar a mãe o processo de desenvolvimento do bebê.

“Utilizamos fotos para que a mãe entenda o que era esperado naquele bebê que nasceu antes do tempo. Atendemos muitos casos de alto risco em que há má formação grave, por isso tentamos sempre confortá-las nesse momento, para elas isso é um ritual de passagem”, afirma.