Cicatrizes eternas: mais de 130 pessoas morrem por ano no trânsito de Mato Grosso do Sul
Número pode ser maior, já que dados do Ministério da Infraestrutura são subnotificados; Estado registrou 695 vítimas fatais nos últimos cinco anos
Thalya Godoy –
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É manhã de 6 de abril de 2023 e um carro Chevrolet Prisma segue pela BR-080 com Ilza Gertrudes Schleich Vollkopf, de 66 anos, como condutora. Ela perde o controle da direção quando as rodas deixam de ter contato com a pista devido ao asfalto molhado, o veículo roda e bate em um caminhão boiadeiro. Ilza se foi, deixando amigos, alunos e familiares.
Noite de 10 de março deste ano. Um Fiat Argo com cinco amigas colide de frente com uma caminhonete Hilux na BR-163, entre Campo Grande e Jaraguari. Carolina Peixoto dos Santos, Lais Moriningo Paim, Leticia de Mello da Silva e Kaena Guilhen Fernandes, todas ocupantes do Argo, morrem no local, com idades entre 28 e 29 anos. Daquele dia em diante, restaram sonhos inacabados e a saudade dilacerante por quem partiu ainda na juventude.
Em Campo Grande, a menos de uma semana para o Natal, em 19 de dezembro de 2022, o motociclista Osmar Aparecido de Oliveira Santana, de 28 anos, foi morto atropelado por um caminhão na Avenida Salgado Filho, que furou a preferencial. O motorista fugiu do local, sem prestar socorro. Osmar deixou a esposa, uma filha de sete anos e familiares marcados pelo sentimento angustiante de justiça.
Os acidentes de trânsito deixam cicatrizes eternas, seja na saudade do familiar ou literalmente na pele de quem sobreviveu. Samuel Ferreira carrega até hoje na perna as marcas da colisão que tirou a firmeza nos membros, a autonomia financeira, o trabalho e a saúde (veja abaixo mais detalhes dessa história).
Esta matéria encerra o ciclo de reportagens sobre o trânsito que o Midiamax iniciou nesta semana. Desde a última segunda-feira (10), mostramos que os Fusquinhas ainda são queridos pelos sul-mato-grossenses, que os idosos comandam a direção no Estado, quais autoescolas são líderes de aprovação e quais são as “barberagens” mais comuns.
Mortes no trânsito são subnotificadas
As histórias dos acidentes de trânsito que abriram esta matéria ilustram o fim trágico dessas colisões: as vítimas fatais. Atualmente, o número de mortes no trânsito é subnotificado no sistema do Registro Nacional de Acidentes e Estatísticas de Trânsito, do Ministério da Infraestrutura, que pode dar uma visão completa desses casos em todo país.
O sistema revela a quantidade de vítimas fatais em todos os estados entre 2018 e 2022, contudo não foi alimentado devidamente nos anos de 2020, 2021 e no ano passado. Em relação a 2022, os dados vão somente até novembro.
Assim, Mato Grosso do Sul vive uma queda no número de mortes no trânsito, porém ao mesmo tempo um “apagão de dados”. Em 2022, o Estado registrou 26 vítimas fatais, o que representa 2,1 óbitos por mês.
Já em 2021, 79 pessoas morreram em acidentes de trânsito e em 2020 outros 137. Nos anos em que o sistema do Minfra foi alimentado devidamente, os números saltaram para 187 óbitos em 2019 e para 266 em 2018.
Motocicleta (43,4%) e automóvel (31,2%) lideram a lista de tipos de veículos envolvidos em acidentes com óbitos em Mato Grosso do Sul. Campo Grande (204) e Dourados (59) foram as cidades com mais vítimas fatais. A Capital representa quase um terço do total de 695 mortes registradas no Estado entre 2018 e 2022.
Assim, Mato Grosso do Sul registra, em média, 139 mortes no trânsito por ano ou 11 vítimas fatais todos os meses.
Os homens são os que mais morrem no trânsito, sendo 70,4% dos casos, enquanto a faixa etária dos 30 aos 39 anos representa a maior parte das vítimas fatais.
Sobre a condição da pista em que ocorreram os acidentes, 52,37% foram em via seca, 39,87% não foi informado, em 7,38% foi registrado como desconhecido e apenas 0,32% aconteceu em via molhada.
O Midiamax solicitou ao Ministério da Infraestrutura uma nota sobre quais são as bases de dados usadas no “Registro Nacional de Acidentes e Estatísticas de Trânsito”, o motivo da falta de alimentação no caso de óbitos e quando devem ser feitas as atualizações.
Em resposta, a pasta informou que as estatísticas de acidentes de trânsito têm como base os registros enviados pelos Detrans de cada estado, responsáveis pela consolidação dos dados.
Sobre a falta de atualização dos óbitos, a informação é que a base estatística seja atualizada em breve e que os números mais recentes estão sob avaliação da Senatran (Secretaria Nacional de Trânsito), do Ministério dos Transportes. “No período entre 2018 a 2021, alguns estados estão com dados incompletos”, disse em nota. A atualização completa do sistema deve ser feita até o fim de abril.
Rodovias
Quando se realiza o comparativo entre as bases de dados é possível ver a discrepância entre o número de óbitos por acidentes de trânsito nas rodovias. No sistema do Minfra, que reúne dados de rodovias federais, estaduais e municipais, são apontados 242 óbitos entre 2020 e 2022.
De acordo com a PRF (Polícia Rodoviária Federal), no mesmo período foram registrados 449 óbitos nas rodovias federais, o que já é 53,89% acima do sistema do Minfra.
Mato Grosso do Sul é o 12º Estado com as rodovias federais mais perigosas do país, com as BRs 162, 262 e 060 com mais colisões. Nas primeiras colocações ficam Minas Gerais, Santa Catarina e Paraná.
Os dias mais letais no trânsito de Mato Grosso do Sul caem no final de semana, sendo sábado e domingo.
Já a Polícia Estadual de Mato Grosso do Sul atendeu 2.699 ocorrências de acidente de trânsito rodoviário, sendo 269 com vítimas fatais, o que se aproxima dos números do sistema nacional, mas não são exatos.
Cicatrizes para sempre
Samuel Pereira Santos, atualmente com 29 anos, pilotava a moto em direção a casa da mãe, em 6 de fevereiro de 2021. Era um sábado, por volta das 11h, e tinha a intenção de almoçar com a família quando a vida dele mudaria para sempre devido a um acidente de trânsito.
“Lembro que estava descendo a rua, de ver o carro batendo, a minha moto e corpo sendo arremessados […] a dor era muita e eu estava com dificuldade para ficar consciente”, relembra o homem.
A ansiedade e o susto com o acidente foram tão grandes que Samuel não sentiu imediatamente a dor de ter a fíbula esmagada e tíbia quebrada com o impacto e tentou ficar em pé após um carro ter arremessado seu corpo e moto. O veículo invadiu a preferencial para entrar em um condomínio, na região norte de Campo Grande.
Aquele sábado de manhã mudou a vida de Samuel para sempre. A rotina naquele ano virou idas e vindas ao hospital, cirurgias e remédios fortes, que abalaram a saúde do estômago e de outros órgãos. Foram 15 operações em dois anos para não perder a perna, que ganhou profundas cicatrizes.
O homem que trabalhava como eletricista hoje está na fila pelo BPC/LOAS (Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência), enquanto o processo contra o motorista corre na Justiça. Sem ajuda do condutor do carro e contando com o auxílio de familiares, já desembolsou cerca de R$ 15 mil para remédios e o tratamento nesses dois anos.
“Eu carrego muitas sequelas na minha perna esquerda. Ela é bem imóvel, eu não tenho mobilidade, tive perda de ossos e também tenho problemas de inchaço, circulação, dores, problemas linfáticos. Sem contar outros problemas que me acarretaram por causa dos remédios. Tenho problemas renais, fígado, no estômago, por conta do remédio muito forte. Sequela é o que não falta”, elenca o homem.
Trânsito em Campo Grande
O episódio com Samuel é um dos 68.420 acidentes de trânsito registrados em Mato Grosso do Sul, entre os anos de 2018 e 2022, de acordo com o sistema do Minfra. Foram 101.183 veículos envolvidos, que resultaram em 102.183 pessoas que saíram feridas ou ilesas das colisões.
Em mais da metade dos 68 mil acidentes de trânsito no Estado não foi informado o tipo de colisão (42.274). Entre os que tiveram o dado preenchido, colisão transversal (7.800) fica em primeiro lugar, seguido por colisão lateral (5.880), colisão traseira (4.628) e colisão frontal (2.093).
Além disso, em 67,28% dos acidentes de trânsito no Estado há suspeita de motoristas alcoolizados.
Já em Campo Grande, foram registradas 58.490 colisões entre os anos de 2018 e 2022, de acordo com o BMPTran (Batalhão de Polícia Militar de Trânsito). De janeiro até 26 de março deste ano, o número de colisões chega a 2.520.
O ano de 2020, o primeiro da pandemia, foi o único que registrou menos de 10 mil colisões no período.
As maiores causas de acidentes são excesso de velocidade, dirigir embriagado e condutor sem habilitação.
A Avenida Afonso Pena, Duque de Caxias, Presidente Ernesto Geisel, Mato Grosso e Avenida Guaicurus são consideradas as mais perigosas e registraram boa parte dos sinistros da Capital.
Poucas vítimas se recuperam totalmente
O fisioterapeuta e pesquisador Talmir Nolasco, de 36 anos, entrevistou 100 acidentados no trânsito internados no setor de ortopedia na Santa Casa de Campo Grande, em 2016, para a dissertação de mestrado pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul).
Na pesquisa foi observado que os ferimentos mais recorrentes das vítimas de trânsito da Capital eram traumas em membros inferiores (morbidades gravíssimas), que levaram os indivíduos a incapacidades funcionais permanentes ou temporárias.
O doutor em Ciências Pneumológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul afirma que metade dos hospitalizados eram homens, na faixa etária de 18 a 31 de anos. Uma população relativamente jovem, que parava de trabalhar e ainda dependia de terceiros para realizar as tarefas do dia a dia. Além dos danos físicos no corpo, o emocional era totalmente abalado.
“A parte emocional era causada pela ‘incerteza’ do futuro; pelo fato de estarem no auge de suas carreiras e se encontram incapacitados de retornar ao trabalho. Dessa forma, não conseguiam levar o sustento para suas casas”, analisou o doutor pela UFRGS.
Entre os entrevistados, o pesquisador notou que a recuperação era difícil, especialmente devido às condições financeiras dos pacientes que não conseguiam permanecer no tratamento.
“A reabilitação dos indivíduos era extremamente escassa. Eles moravam nas periferias, em regiões geograficamente distantes dos centros de fisioterapia. Infelizmente, o Estado também não oferecia atendimento de fisioterapia domiciliar a essa população. Dessa forma, os indivíduos eram levados a sequelas permanentes, que impactam nas rotinas laborais do dia a dia e elevando os gastos públicos”, afirmou Nolasco ao Midiamax.
Além disso, acrescenta que o tempo médio para a reabilitação varia de acordo com cada paciente: grau de lesão, continuidade do tratamento e acesso imediato à fisioterapia.
Você pode conferir as outras matérias da série do Jornal Midiamax abaixo:
Carros mais comuns rodando em MS
Idade dos condutores
Aprovação e reprovação nas autoescolas
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