Contra estigma de ‘favelado’, Dia da Favela em MS quer promover orgulho de onde se tira sustento
Para município, perspectiva é de melhoria na desfavelização, mas falta de recursos implica em 5 mil famílias morando em submoradias na Capital
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Crise financeira, desemprego, inflação e covid-19. Esses fatores, somados a um déficit habitacional que implica cerca de 42 mil famílias campo-grandenses, resultam no crescimento de aglomerados subnormais em Campo Grande — ou, em bom português, favelas. Na Capital, conforme os números atualizados da Amhasf (Agência Municipal de Habitação e Assuntos Fundiários), calcula-se que, dessas 42 mil famílias, cerca de 5 mil são de baixa renda e vivem em uma das 38 favelas contabilizadas pelo Poder Público.
Por trás desses números, há a realidade de muita gente que, por uma razão ou outra, vive em submoradias com pouca ou nenhuma infraestrutura, comumente caracterizadas como barracos, sem fornecimento adequado de água, energia elétrica ou rede de esgoto. Não bastasse isso, moradores enfrentam preconceito, sendo comumente associados à criminalidade.
Não é a toa que esta quinta-feira (4) seja nacionalmente lembrada como o Dia da Favela. A data é uma oportunidade de reflexão sobre esta condição de moradia e de luta pela desestigmatização do vocábulo. Isso porque, quando a palavra foi utilizada pela primeira vez de forma oficial, no ano de 1900, tornou-se sinônimo de locais sujos, habitados por pessoas “imorais”. A estigmatização da favela fez até com que os aglomerados subnormais — termo técnico utilizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) — também levasse a utilizar a palavra “comunidade” como eufemismo.
“No começo da nossa jornada foi muito difícil falar ‘favela’. As pessoas tinham vergonha, não gostavam do termo. Por aqui, por muito tempo, dizia-se que não havia favela, mas sempre teve. Não consideramos favela apenas as moradias feitas de barracos. Temos muita gente que vive em habitação popular nos bairros, na quebrada, na periferia, e que, mesmo assim, enfrentam muita dificuldade financeira”, conta Lívia Lopes, de 29 anos, gestora da Cufa (Central Única das Favelas) em Mato Grosso do Sul.
Empoderamento
Lopes destaca que as ações da Cufa levam os moradores a um novo entendimento sobre a condição em que vivem. “Não é motivo de vergonha, mas de resistência. Estamos percebendo que, por conta das nossas ações, mais e mais as pessoas estão tendo facilidade e conforto de falar que moram numa favela. É lá onde muitas famílias conseguem produzir, tirar sustento. E isso é motivo de orgulho”, conta.
Um exemplo é a série documental lançada em março deste ano, que retratou cinco mulheres que têm papel de liderança nas favelas campo-grandenses para compor a narrativa e mostrar esse universo, intitulada “Diário da Favela: Lideranças Femininas” gratuitamente pelo canal do YouTube. Além disso, a Central realiza ações assistenciais permanentes, da distribuição de cestas básicas a palestras e rodas de conversa.
A Cufa realiza nacionalmente, desde o dia 1º deste mês, uma série de ações pelo Dia da Favela. Em Mato Grosso do Sul, a Central deve publicar nas redes sociais um vídeo para reforçar as ações da entidade e a luta pela desestigmatização das favelas. As energias estão guardadas, porém, para um grande evento que será realizado no próximo dia 20, Dia da Consciência Negra, em alusão a maior parte dos moradores de favelas em Campo Grande.
“Além das ações sociais que fazemos, vamos focar nesse dia 20, com ações culturais para celebrar esse orgulho e essa reflexão de quem somos. Serão uma série de eventos, inclusive literários, palestras, enfim, ações que vão promover essa conscientização”, conclui Lopes.
Desfavelizada?
A ideia de uma Campo Grande desfavelizada é antiga e perdurou até 2013, quando a Prefeitura de Campo Grande, na época, admitiu a existência e crescimento de submoradias. “Mas sempre teve. A gente entende que favela não é só um grupo de pessoas que vivem em barracos. O que aconteceu é que o número aumentou, inclusive recentemente, por conta da pandemia. Está tudo muito caro, é mais fácil manter um barraco que pagar um aluguel ou comprar uma casa”, acrescenta a ativista.
A estigmatização, portanto, esconde a carência de políticas públicas nas favelas. A Constituição Federal traz garantia de moradia digna, mas há uma série de variáveis que impedem que o artigo 6º seja colocado em prática. O principal deles é a falta de recursos financeiros.
O diretor de atendimento, Administração e Finanças da Amhasf, Cláudio Marques Costa Junior, relata que a falta de dinheiro federal é o maior empecilho para redução do déficit habitacional no país. “Isso trava a resolução, mas a Amhasf tem uma série de programas que atuam para reverter isso. Nós estamos próximos a esses moradores e diante do diagnóstico, podemos levantar qual dos programas é mais adequado para converter a área irregular em uma área regularizada”, aponta.
Entre as iniciativas, estão programas de regularização na própria área ocupada, reassentamento de famílias e sorteios de lotes, além das moradias construídas pela Prefeitura. “Nosso trabalho é mais próximo às comunidades, precisa ter um levantamento mais preciso. Primeira etapa é a identificação. Vamos ao local com uma equipe, fazemos a ‘selagem’, que identifica as famílias que estão lá, numera os barracos e, a partir desse diagnóstico, a gente vai buscar a alternativa, vê em qual perfil se encaixa”, detalha o gestor.
As ações também contam com parcerias com outras secretarias, como a Sisep (Secretaria Municipal de Infraestrutura e Serviços Públicos) e com as fornecedoras de serviços de água, esgoto e de energia. A Amhasf também celebra resultados, como a entrega de moradias que, no olhar técnico, regularizará os aglomerados subnormais com o mínimo de estrutura, como na Favela do Mandela.
“Nesse local, com muita luta, conseguimos montar um projeto junto à Caixa Econômica Federal para iniciar a obra de construção das moradias”, diz Cláudio Junior.
A estratégia é considerada uma defavelização, com a regularização da área. O número comemorado pela agência é de cerca de 3 mil regularizações na atual gestão. “Além da dificuldade de recursos, a gente também enfrenta problemas nas ocupações em áreas privadas. Demora mais, pois depende de negociações, inclusive judiciais”, completa.
Origem do termo
O documento oficial que inaugurou a utilização do termo foi redigido em 1900, no Rio de Janeiro, pelo então delegado da 10º Circunscrição e o chefe da Polícia da época, Enéas Galvão, em referência ao Morro da Providência. O termo foi utilizado porque assim eram conhecidos os soldados que lutaram na Guerra dos Canudos, na Bahia: os militares ficavam com vestígios de favela — um arbusto espinhento muito comum na região do conflito, que deixava manchas na pele dos combatentes. Após a guerra, muitos deles se instalaram no Morro da Providência, conhecida como a primeira favela do país.
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