São aproximadamente 17 km e 57 minutos, apenas na ida, para sair da Moreninha III e chegar aos Altos da Avenida Afonso Pena, em Campo Grande. Tempo e distância necessários para que uma cultura fortalecida nas periferias alcance um dos lugares mais elitizados da cidade, na força do pedal de uma bicicleta modelo Monark ou Poti.

Todo fim de semana, Pedro Henrique Crisanto, de 15 anos, faz esse percurso. Na folga de suas atividades como servente de pedreiro, ele aproveita a interdição da via mais famosa de Campo Grande para encontrar amigos e treinar manobras com a bike. “Pedalo desde os 6 anos. Nós somos 5 amigos e moramos perto na Moreninha III. Gostamos de andar de bicicleta e descemos para cá no domingo”, relata o adolescente.

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Jovens da Moreninha 3 pedalam cerca de 17 km para chegar no encontro | Foto: Leonardo de França | Jornal Midiamax

Assim como ele, uma centena de outros jovens deixam seus bairros e pedalam distâncias semelhantes até o Parque das Nações Indígenas. Aos domingos, o movimento chama atenção, seja pelo contraste dos modelos de bicicleta com as Mountain Bike e Speed que normalmente circulam nas redondezas, seja pelo som das buzinas, pelas manobras chamativas, ou pelas músicas trazidas pelos visitantes nas caixinhas de som.

Este é o mais novo fruto de um movimento de desperiferização cultural e do na cidade, além da democratização de áreas públicas da Capital. O Parque das Nações Indígenas, um dos principais cartões-postais de Campo Grande, é o cenário perfeito para isso.

Frequentado por adeptos a uma rotina nos dias úteis, o parque ganha, aos fins de semana, uma vivência real de diversidade. O parque se torna a “praia” do campo-grandense, com pais que levam filhos para brincar, amigos que se reencontram e, agora, com um espetáculo de bicicletas coloridas.

Coloridas e “tunadas”

Um modelo simples de uma bicicleta Monark ou Poti já foi do tipo mais barato que havia. Hoje, esses itens de pedal urbano já não são tão pesados como décadas atrás e ainda trazem diferenciais, como cores descoladas. Mesmo que não sejam as melhores para pedalar em trilhas ou para percorrer longas distâncias, elas têm um diferencial que atrai jovens: com adesivos, peças mais resistentes, selim especial, cestinha e outros acessórios, elas garantem status e promovem integração no grupo. Um Poti simples custa em média de R$ 500 a 800. “Tunada”, um exemplar pode superar R$ 2 mil.

As Potis e Monarks também despertam o gosto dos jovens por serem aptas às manobras inspiradas nas práticas radicais com motocicletas. Grau e Wheeler são categorias de manobras — um novo dicionário urbano também chega ao Parque, partindo das periferias de Campo Grande. Nos bairros, essas práticas ganham força nas primeiras pedaladas. Nos grupos, o culto ao pedal gera a sensação de pertencimento que já não cabe nos rincões da cidade.

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“Grau” em plena Avenida Afonso Pena | Foto: Leonardo de França | Jornal Midiamax

Foi o caso de José Luiz Oliveira, de 18 anos. Ao Jornal Midiamax, ele contou que a paixão pelas manobras de bicicleta surgiu em uma praça das Moreninhas, após observar os colegas do grupo. “A gente se conheceu pela bicicleta, na pracinha das Moreninhas. Achei massa e tentei praticar”, conta.

O sonho da bicicleta foi parcelada em algumas vezes, motivado pelo prazer de fazer parte do grupo de amigos. “Comprei minha bicicleta faz um ano, paguei R$ 500, e já quero comprar uma nova, de R$ 1,7 mil. É a primeira vez que venho com eles. [Pedalar] é uma diversão, um esporte pra gente”, explica.

A hashtag #Grau244 está na maioria das postagens dos adolescentes. Ela se refere a um dos artigos do Código de Trânsito Brasileiro, que considera infração gravíssima “conduzir motocicleta, motoneta e ciclomotor fazendo malabarismo ou equilibrando-se apenas em uma roda” — o famoso grau.

A referência a uma reivindicação de quem se diverte assim com motocicletas é porque a cultura das manobras também é muito forte nas periferias. A diferença é que com as bikes a situação é mais tranquila, mesmo que, normalmente, os jovens não usem equipamentos de segurança.

‘Diferenças' em comum

É justamente nesse deslocamento ao parque que a desperiferização dos “potizeiros” ganha forma, e também dão a dimensão de que numa só Campo Grande pode haver várias. Em comum, eles trazem diferenças que contrastam com os ocupantes da região de estrato social mais alto. Isso porque, mesmo adolescentes, a maioria já tem profissão e trabalha para ajudar no sustento de casa.

Pedro Henrique Almeida, de 14 anos, é auxiliar de mecânico. Quando não suja as mãos de graxa e troca peças de veículos, é nas manobras que ele encontra escape da vida trabalhadora. Para ele, a bicicleta é um instrumento de libertação. Descer para o centro, mal sabe ele, é engrenagem de um movimento necessário de ocupação da cidade, de um estatuto orgânico de democratização de espaços públicos.

“Sempre andei a pé e via os guris na praça. Gostei e comprei a minha Monark”, diz, sem lamentar a distância percorrida. “Cansa, mas nós damos uma parada e vamos de novo. O que importa são os amigos e a diversão em andar de bike”, acrescenta.

As bicicletas são “tunnadas” e atraem a atenção de outros visitantes do Parque das Nações Indígenas | Foto: Leonardo de França | Jornal Midiamax

 

Interdição e reabertura

A retomada da ocupação do Parque das Nações é uma conquista, que foi afetada por diversos fatores, entre eles, a pandemia da Covid-19. Antes do vírus circular, parte do espaço foi interditado devido a obras para recuperação do lago maior. A pá de cal foi jogada no início da pandemia, quando o parque fechou as portas e os lockdowns começaram a ocorrer. Reaberto em outubro, demorou um pouco para que o uso fosse normalizado ao que costumava ser. No último fim de semana, o espaço estava lotado.

Os trechos da avenida Afonso Pena, assim como da avenida do Poeta, no Parque dos Poderes, são interrompidas desde 2017 para prática esportiva aos domingos. É mais ou menos o que é feito em São Paulo, com a interdição para lazer da avenida Paulista, a mais famosa da cidade, também aos domingos.

 
 
 
 
 
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Uma publicação compartilhada por Monark' & Poti club CG (@mpccg_oficial)

 

“Na época que a situação da Covid tava pior, mandei no grupo que estava proibido fazer rolê. A gente ficou parado um tempão. Só marcamos o rolê por agora porque a situação está melhor. Foi quase todo mundo”, conta Lucas David, de 20 anos, que trabalha no ramo de adesivagem veicular e é um dos mobilizadores dos rolês.

A mágica acontece por volta das 16h do domingo, quando o fluxo de carros na avenida está interrompido. Nesse horário, a reportagem já contava aproximadamente 100 jovens de diversas regiões de Campo Grande reunidos. Eles aproveitam o espaço generoso da via livre para treinar manobras. É um novo rolezinho. A diferença é que o espaço é público e ninguém pode restringir o acesso até ali, como ocorria em shoppings da cidade, em meados da década passada.

Nas redes sociais

Tem gente que gosta de fazer selfie. Nas redes sociais dos grupos de bicicleta, eles gostam de postar as bicicletas. O grupo mais popular está no Instagram, é o Monark' & Poti Club Campo Grande – MPCCG. Com quase 1,8 mil seguidores, o perfil é uma das vitrines para divulgar os equipamentos e rolês. Nos grupos de WhatsApp, com mais de 200 usuários, os encontros são organizados.

Polaco é um dos administradores. Morador do Jardim Seminário, ele conta que o grupo surgiu em 2015. “Sempre teve o grupo, só não tinha nome. Depois criamos um, o primeiro foi Expobike, em 2018. A gente organizava o rolê e tinha até troféu, premiação. Mudamos o nome porque copiaram, daí virou Bikefest, depois, Rolê Roletando, até o nome atual”, detalha.

Nem o organizador esperava essa explosão de popularidade no grupo. “Não sei te explicar como teve esse crescimento. Foi indo. Mulecada começou a mandar mensagem, a página cresceu, quando a gente viu, tinha o nosso rolê. E não é só no parque. Tem uma galera na Orla, no Aeroporto. Mas, o maior é esse da Afonso Pena”, explica.

 

 
 
 
 
 
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Polaco detalha à reportagem que a aceitação no parque é grande. “Vai muita família dos bairros. Eles curtem, elogiam, pedem para tirar foto. Também tem quem reclame, acho que é porque os movimentos chamam atenção, opina, referindo-se às manobras. Mas, no geral, ninguém incomoda a gente. É claro que, no meu grupo, eu vou orientando o pessoal a não parar na ciclovia, essas coisas, mas tem gente que reclama”.

Ele também conta que o movimento veio para ficar. “É muito satisfatório. A gurizada gosta muito de lá, tanto é que todo mundo foi na última vez. Não sei nem o que dizer sobre isso, mas é muito bom ver todo mundo reunido e se divertindo”, conclui.