Arquitetos defendem habitação popular no centro e explicam o que está por trás do medo do ‘favelão’
Habitação popular no antigo Hotel Campo Grande, no Centro, dividiu opiniões. Mas, porque há medo de que o prédio se torne um favelão vertical?
Guilherme Cavalcante –
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Ignore o cenário político, as questões climáticas e o resultado dos jogos. O que está movimentando o debate dos campo-grandenses, no momento, é o medo de que o Hotel Campo Grande – um projeto de habitação popular no Centro que nem sequer saiu do papel – vire um “favelão vertical” e estigmatize a região.
Afinal, exemplos que sugerem esse triste fim existem de sobra, e todos ali pertinho do antigo Hotel Campo Grande: desde o descaso com o entorno da antiga rodoviária, que se tornou uma cracolândia, ao projeto fracassado da Orla Ferroviária, também reduto de dependentes químicos.
E, segundo especialistas, a descrença no projeto de habitação popular no Hotel Campo Grande está carregada de preconceitos. Reflete, também, os efeitos de um fenômeno chamado “gentrificação”.
É o que mora por trás da ideia de que o Condomínio Menino do Mato se tornaria um “favelão”.
De forma geral, a gentrificação é a saída gradativa (ou não) de determinado segmento da população – geralmente de faixas socioeconômicas menos favorecidas – em detrimento de uma mais abastada.
Em outras palavras, a região central já é gentrificada, seja em função das lojas, seja em função da especulação imobiliária que lucra, das mais variadas formas, com a expansão da cidade a áreas sem infraestrutura.
Está na Constituição
A própria Constituição Federal estabelece, no artigo 182, que toda propriedade urbana precisa cumprir com usa função social, ou seja, que tenha uso compatível com toda a infraestrutura de que dispõe. Isso também é regulamentado pelo Estatuto das Cidades, aprovado em 2001, que as regras para que isso ocorra em todas as cidades.
“Nos centros urbanos há muitos vazios, que ficam ao léu enquanto eles estão sendo valorizados. Só que todo mundo paga essa conta, já que o espaço está vazio e que só o proprietário é quem lucra, na hora de venda do imóvel”, aponta a arquiteta e urbanita Neila Janes Viana Vieira, da Central de Projetos da Prefeitura. Ela integra uma equipe que está imersa no desenvolvimento de políticas que façam o artigo constitucional valer em Campo Grande.
Foi nesse contexto que os arquitetos Regina Maura Lopes Couto Cortez e Valter Cortez, da empresa que idealizou o primeiro projeto de Requalificação do Centro de Campo Grande – saíram em defesa da ocupação do centro, sendo a moradia apenas uma das formas.
“Nossa visão é que muitas vezes as comunidades periféricas não se sentem no direito de reivindicar a ocupação dos espaços, mas a cidade é de todos”, aponta Valter Cortez em entrevista ao Jornal Midiamax em 2018.
“Eu costumo dizer que tudo que não é usado é, na verdade, mal usado. Então, a cidade que não explora seu potencial – como Campo Grande, que é uma capital – perde oportunidades. Financeiras, inclusive. Quando a gente não revindica os espaços da cidade, a gente faz com que ela não funcione, não desenvolva”, apontou Regina Maura.
Segundo os arquitetos, gestores têm papel importante nisso. “Somos ainda uma capital com comportamento provinciano, mas temos uma responsabilidade de promover desenvolvimento regional. Isso começa pela exploração do potencial por meio das políticas públicas”, destaca Maura.
A arquiteta Neila Janes complementa. “É importante que o centro continue sendo ocupado, é o local com a maior infraestrutura e precisamos usar ao invés de ficar criando infraestrutura nova em, locais distantes. A ocupação por habitação popular é fundamental e sustentável. Comércios e serviços fecham às 18h e acaba a vida no local. E a moradia é a melhor forma de fazer isso ser revertido”, explica.
Preconceitos
A ideia do “favelão” está abraçada em alguns preconceitos bem claros, que são subprodutos da gentrificação. O primeiro deles é de que pessoas de baixa renda são subcidadão e não “merecem” usufruir da infraestrutura que o Centro já dispõe.
Na fantasia das pessoas, quem integra as faixas sociais ou de baixa renda não consomem e promovem estagnação da economia. Só que é justamente o contrário: são as menores faixas socioeconômicas que mais movimentam mercados locais – desde a compra de itens do dia a dia, como aquilo que é vendido no Centro – roupas, eletrodomésticos e serviços.
“É de profundo mal gosto chamar esse projeto de habitação popular de ‘favelão’. As pessoas estão maldosas na rede. O projeto é acertado, ele é perfeito. É uma ideia coerente e concordante com a proposta de revitalização do Centro, que é levar mais pessoas para lá, para usufruírem daquela estrutura”, descreve o arquiteto e urbanista Angelo Arruda, ex-professor do curso de Arquitetura da UFMS.
Para ele, investir no Centro para morar é algo acertado no mundo inteiro, uma tendência. “Além disso, estamos falando de cerca de 120 famílias morando no mesmo prédio. Isso não vira favela nunca. Já morei em condomínios com mais famílias que isso e nunca virou um ‘favelão’”, complementa.
Ocupação no Centro é necessária
Além de promover acesso a pessoas que nunca conseguiriam morar na região se não fosse por algum subsídio do poder público, fomentar habitação popular no Centro é basicamente promover ocupação – inclusive, no horário em que não tem ninguém por ali.
Ou seja: quanto mais moradias na região, mais se combate aquilo que, atualmente, as pessoas mais temem: a formação de cracolândias, a tomada do Centro por pessoas que não sabem utilizar os equipamentos públicos. À noite, o Centro de Campo Grande é morto, por assim dizer. Entra aí a regra de ouro das selvas de concreto: toda área que não é reivindicada pela população acaba esquecida, até que alguém se lembre dela, seja quem for.
Foi o que ocorreu, por exemplo, com a Orla Ferroviária. Inaugurada em 2012, as gestões municipais “esqueceram” de promover uso e ocupação da região. Tornou-se um desastre. Um desastre que custou R$ 4,8 milhões, que não serviu de nada a não ser pontos de depredação e insegurança.
“Ninguém vai lá. Quando inauguraram tinha uma grande expectativa. Mas a verdade é que nem depois que inaugurou as pessoas queriam ir. Ninguém sai da periferia para dar uma volta numa rua que não tem nada numa terça-feira à noite. Se tivesse mais gente morando aqui, ali seria um passeio público. Mas não tem, somos poucos, comenta o estudante universitário Lúcio Alves, que mora próximo da região há 23 anos.
“Nossa maior queixa é essa. Quando não tem quem use, outros se apropriam. Acho que essa obra tinha potencial, mas ela se antecipou. Sem gente morando no Centro até a [Rua] 14 [de Julho] vai ser dinheiro no lixo”, considera a costureira Rosita Marais, de 69 anos, moradora do Centro há 33 anos.
Ideia inovadora
O diretor de Habitação e Programas Urbanos da Emha (Agência Municipal de Habitação), o arquiteto e urbanista Gabriel Gonçalves, destaca que a ideia – quando sair do papel – é uma espécie de projeto-piloto de uma política de estímulo às moradias nas regiões centrais.
“É uma intervenção que muitos centros urbanos tem feito. Uma tendência, realmente. São Paulo e Porto Alegre, por exemplo, já contam com isso. A periferização é uma tendência perigosa, no sentido que há alguns prejuízos urbanísticos. A gente tem muitas construções na periferia que não tem infraestrutura, gente que vai morar em rua sem asfalto e esgoto, por exemplo. E levar isso para lá tem um custo muito alto. Por que não morar onde já tem todo esse aparato?”, defende o arquiteto.
O foco é atender a baixa renda e as moradias sociais. A gente não pode deixar que todo esse investimento fique na mão de quem é abastado. A gente tem que dar acesso às pessoas que não teriam condição se não fosse com intervenção do poder público.
Ele cita o próprio Plano Diretor de Campo Grande, o documento com as diretrizes do desenvolvimento da cidade. Segundo o Plano, o direcionamento do adensamento prioritário da Capital é o Centro. “E em todas as discussões a Emha saiu em defesa dessa proposta”, aponta.
Morar no Centro é bom, mas é caro, devido à valorização dos imóveis e, consequentemente, o preço do IPTU (Imposto Predial de Território Urbano). Para subverter essa lógica de que só gente com grana consegue morar ali é que entra a proposta do “aluguel social”, ainda inédita em Campo Grande.
A proposta consiste basicamente em cobrar uma porcentagem salarial de pessoas de baixa renda como contrapartida do aluguel, além de subsídios sociais, tais como isenção do imposto predial. Além disso, o morador também paga uma taxa simbólica de condomínio. Em troca, o morador ganha o direito de habitar no local, conforme as determinações contratuais.
Parece mesmo um negócio da China: morar no Centro pagando no máximo R$ 200 e sem gastar com transporte público. Mais tempo livre, menos stress, mais qualidade de vida.
“Quando a gente começou a discutir isso em Campo Grande, precisamos ir onde já havia [moradias com aluguel Social]. Visitamos um projeto em São Paulo que deu destinação a um prédio antigo. Achamos que é muito compatível com o que queremos fazer aqui”, detalha Gonçalves.
“Sustentabilidade e mobilidade urbana são conceitos cruciais nessa ideia de habitação popular. Não vamos ter vagas de carro em nenhum projeto justamente porque não será necessário. Estamos quebrando vários paradigmas com essas propostas, fomentando formas diferente de ver a cidade”, conclui o arquiteto (Colaborou Ana Paula Chuva).
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